
Quando crian�a, os filmes da s�rie Jurassic Park encantaram R�mulo, ajudando-o a saber, j� aos 13 anos, que gostaria de ser bi�logo no futuro.
Hoje, aos 27 anos, R�mulo Neris n�o estuda dinossauros gigantescos extintos no passado — na verdade, ele est� arrega�ando as mangas para investigar o coronav�rus microsc�pico respons�vel pela atual emerg�ncia global na sa�de, uma pandemia que j� infectou mais de 6 milh�es de pessoas, matando mais de 380 mil delas.
Nascido e criado em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Neris voltou no final de maio da Calif�rnia, nos Estados Unidos.
Doutorando em imunologia e inflama��o na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele estava desde agosto de 2019 fazendo um doutorado sandu�che na University of California Davis, estudando o arbov�rus chikungunya, tema da sua tese.
Mas al�m de terminar de escrever sua tese sobre o chikungunya para defesa neste ano, Neris est� apenas esperando acabar seu isolamento no quarto anexo de um amigo, por conta da viagem internacional, para pesquisar tamb�m o novo coronav�rus.
Ele foi um dos sete pesquisadores brasileiros selecionados para estudar a covid-19 com uma bolsa da Dimensions Sciences, uma organiza��o fundada nos Estados Unidos pela brasileira Marcia Fournier, executiva na �rea de biotecnologia residindo em Washington.
Com a bolsa, que tem dura��o de tr�s meses, Neris vai atuar em duas frentes. Uma, a mais imediata, colocando a m�o na massa e ajudando a processar testes moleculares que est�o sendo feitos no Centro de Triagem Diagn�stica para covid-19 criado pela UFRJ — afinal, a capacidade de fazer e analisar testes tem sido um dos principais gargalos em todo o pa�s no combate ao coronav�rus.
"Temos uma grande defasagem de testes no Brasil. Os casos est�o sendo subnotificados, j� n�o conseguimos nem mais estimar muito o qu�o subnotificada � a situa��o no pa�s", diz o jovem, em entrevista � BBC News Brasil por telefone.
Na outra frente, o pesquisador, graduado em ci�ncias biol�gicas e mestre em microbiologia pela UFRJ, vai se debru�ar sobre o coronav�rus em laborat�rio.
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"Vou estudar a gen�tica do v�rus e suas muta��es, mas tamb�m altera��es observadas no indiv�duo durante a infec��o, como metab�licas e pulmonares. A ideia � entender como o v�rus infecta c�lulas de diferentes tecidos e por que h� quadros t�o diversos e �s vezes t�o graves — em alguns, sem nenhum tipo de comorbidade."
"Uma das linhas mais prov�veis � que a infec��o pelo coronav�rus levaria a uma exacerba��o da resposta imune. Ou seja, a infec��o poderia causar uma inflama��o muito grande, principalmente no tecido pulmonar, e esta inflama��o seria extravasada para outros tecidos, causando diferentes manifesta��es."
Bolsa no ensino fundamental e escola p�blica no m�dio

Muito antes de procurar como cientista respostas sobre o novo coronav�rus, R�mulo se divertia na inf�ncia com os paleont�logos dos filmes e tamb�m catando bichos no quintal de casa.
Com pai ferrovi�rio e m�e auxiliar administrativa, que se formou mais tarde em pedagogia, ele lembra que dentro de casa a conversa sempre foi franca sobre as condi��es para o investimento financeiro na educa��o dele e da irm�, hoje formada em direito.
No ensino fundamental, R�mulo estudou em uma escola particular com bolsa e, no ensino m�dio, foi para o Col�gio Estadual C�rculo Oper�rio, em Caxias. E, em rela��o ao incentivo dos pais � leitura e ao estudo em casa, este sempre foi integral, lembra.
De uma parceria entre a Secretaria de Educa��o local e o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), veio a oportunidade de fazer, durante o ensino m�dio, um curso t�cnico em metrologia e qualidade industrial em um turno, enquanto continuava frequentando normalmente a escola estadual no outro.
"Um amigo da fam�lia recomendou este curso t�cnico, eu li sobre e gostei bastante porque vi que ter�amos aulas diversas, de f�sica, qu�mica, el�trica, mec�nica. E o curso me ajudou muito no preparo para entrar na faculdade, porque na minha �poca o pr�-vestibular popular n�o era t�o comum e minha fam�lia n�o tinha condi��es de pagar um curso preparat�rio", conta Neris, que passaria ent�o no vestibular regular da UFRJ.
Das escolas pelas quais passou, Neris lembra de professores "inspiradores" que o incentivavam a seguir a carreira cient�fica, e tamb�m de est�mulos no col�gio estadual como aulas de refor�o para o ensino t�cnico e olimp�adas internas de matem�tica.
Fora do col�gio, ele tamb�m participou de competi��es, ficando entre os melhores colocados da Olimp�ada Brasileira de Astronomia e da Prova Brasil em 2009.
Esfor�o pessoal como 'catalisador'
Dos incentivos, bolsas e premia��es em sua trajet�ria, Neris aponta que estes tiveram um papel motivacional, mas tamb�m material, para seguir estudando.
"Eu fiz uma prova de matem�tica organizada pelo governo estadual do Rio que premiava com um notebook os 1.000 alunos com melhores notas, e eu fiquei entre os melhores colocados. E esse notebook foi o que eu usei para estudar nos meus dois primeiros anos de faculdade."
"No final do ensino t�cnico, eu tive uma bolsa de est�gio — a minha primeira bolsa. Lembro que usei esse dinheiro para pagar o transporte, o almo�o e outras despesas com a faculdade."
E sobre o debate recorrente na educa��o sobre m�ritos pessoais e incentivos externos, o cientista aponta que a equa��o � complexa.
"Quando comento minha trajet�ria, tem tanta coisa, tanto detalhe e evento paralelo que confluiu para onde estou que � imposs�vel que eu atribua s� ao meu m�rito. Para come�ar, desde pequeno lembro dos meus pais investindo na minha educa��o da maneira que podiam, me incentivando a ler..."
"Tenho consci�ncia de que, se eu comparar minha trajet�ria com a de pessoas que cresceram comigo, estou numa posi��o singular considerando as oportunidades que eu tive. Mas eu n�o atribuo a maior parte desta minha hist�ria a meu m�rito pessoal, nem de perto."
"Posso dizer que de certo modo o sucesso � proporcional ao esfor�o... O sucesso � consequ�ncia do esfor�o, na verdade. Mas n�o � o esfor�o que vai determinar o tamanho desse sucesso — este � completamente proporcional ao contexto. Isso � algo que muita gente n�o considera nessa equa��o, as pessoas acham que o esfor�o leva diretamente ao sucesso"
"Penso meu esfor�o como um catalisador, mas o sucesso � completamente dependente do contexto. Voc� pode ser fisicamente muito forte e trabalhar na constru��o civil a vida inteira, ou ser um lutador. Isso n�o depende do esfor�o da pessoa, mas do contexto."
Cientista no Brasil como 'eterno estudante'
Se no passado bolsas e pr�mios contribu�ram com passagens de �nibus e um notebook, para um doutorando, elas s�o como um sal�rio.
Entretanto, ap�s sua experi�ncia nos Estados Unidos, onde foi bolsista do programa Fullbright, financiado pelo governo americano, Neris voltou com a impress�o que o p�s-graduando brasileiro � encarado como um "eterno estudante".
"O Brasil ainda lida, principalmente na ci�ncia, de um jeito muito amador com os pesquisadores. Quem faz mestrado, doutorado, quem est� produzindo em laborat�rio, � visto como um eterno estudante — e isso n�o � dem�rito aos estudantes, mas fazer ci�ncia tamb�m � uma profiss�o."
"Para muitos de n�s, a bolsa que recebemos � o nosso sal�rio. Ent�o, quando algu�m me pergunta: 'como � estar sem bolsa'? Digo: � o equivalente a um jovem de 27 anos, a minha idade, que tem um emprego mas n�o recebe um sal�rio."

No in�cio do doutorado, o pesquisador conta ter recebido por um per�odo uma bolsa da Coordena��o de Aperfei�oamento de Pessoal de N�vel Superior (Capes), do Minist�rio da Educa��o. Mas, tendo sido contemplado com a bolsa nos Estados Unidos, a bolsa do Brasil foi remanejada dentro de seu programa.
Consultada pela reportagem, a Capes informou que o programa de p�s-gradua��o em Imunologia e Inflama��o da UFRJ, do qual Neris � discente, teve em 2020 acr�scimo de oito bolsas de doutorado e tr�s de mestrado.
Hoje, de volta ao Brasil, o pesquisador comemora a sele��o para a bolsa da Dimensions Sciences, que envolve reuni�es e relat�rios peri�dicos sobre o andamento dos seus estudos. Com a pandemia de coronav�rus, ele tamb�m tem participado com sua orientadora, Iranaia Assun��o Miranda, e seu grupo de pesquisa, de projetos especificamente sobre a nova doen�a, em parceria com outros laborat�rios e grupos da UFRJ.
Uma outra percep��o que mudou na experi�ncia nos Estados Unidos foi na quest�o racial. Hoje se identificando como preto, Neris reconhece que este foi um reconhecimento seu recente, depois de muitos anos se identificando como pardo.
"Percebi l� que � um assunto tratado mais abertamente do que no Brasil. Aqui, usamos outros termos, 'moreninho', 'pardo', mas no meu caso. eu de fato me considero preto, depois de ter me inteirado de debates a respeito."
"L� (nos EUA), vi muitas pessoas debatendo sobre representatividade negra em diversos espa�os, inclusive muitas pessoas que possivelmente n�o seriam consideradas negras pelo senso comum no Brasil. Exatamente porque a gente tende a fazer mais essa separa��o, essa subsepara��o de cor."
Arboviroses e coronav�rus
Ainda nos Estados Unidos, Neris viu o coronav�rus provocar uma pandemia, e a partir da�, come�ou a estud�-lo.
� um v�rus como muitos outros, mas tamb�m diferente dos arbov�rus — aos quais se dedica h� alguns anos e que n�o configuram uma classifica��o taxon�mica, como um g�nero ou esp�cie, mas um grupo gen�rico daqueles v�rus transmitidos por insetos — como o mosquito Aedes aegypti — e aracn�deos.
"Sempre trabalhei com arboviroses: dengue, febre amarela, zika, chikungunya, o mayaro... Mas apesar de serem causadas por v�rus, as s�ndromes respirat�rias s�o muito diferentes. Ent�o, passei os �ltimos dois meses estudando bastante sobre a biologia de v�rus respirat�rios. Dentro da virologia, � todo um novo mundo."
O cientista explica diferen�as, por exemplo, nos "s�tios de replica��o" — ou seja, os locais em que o v�rus se replica.
"Nas arboviroses, na maior parte das vezes, o v�rus replica nas camadas superficiais da pele, depois alcan�ando a corrente sangu�nea e migrando para outros tecidos; j� o coronav�rus replica principalmente no epit�lio do pulm�o. Assim, o modo como as c�lulas respondem e morrem � diferente; o tempo de replica��o � outro."
"S� isso j� � o suficiente para mudar toda a nossa abordagem para tratamentos", aponta, destacando tamb�m a diferen�a entre os principais transmissores nos dois casos, o mosquito e o pr�prio ser humano, no caso do coronav�rus.
Em seu doutorado, o pesquisador foca em um conjunto de prote�nas presente em muitas das nossas c�lulas, o imunoproteassoma. Ele pode explicar por que muitos indiv�duos infectados com chikungunya continuam sentido dor nas articula��es e nos m�sculos mesmo depois do v�rus n�o ser mais detectado no corpo.
"O imunoproteassoma tem v�rias fun��es, mas uma das principais � servir como um triturador de lixo da c�lula. Temos encontrado evid�ncias de que, em uma infec��o por chikungunya, o v�rus causa uma ativa��o aberrante do imunoproteassoma, e com isso ele come�a a perder o controle do que est� degradando. Muito possivelmente come�a a degradar coisas que s�o importantes para a pr�pria c�lula infectada, mesmo depois da infec��o controlada."
A import�ncia da divulga��o cient�fica
A entrevista � BBC News Brasil n�o foi a primeira vez que o cientista precisou explicar em poucas palavras sua tese de doutorado. Em 2018, Neris foi semifinalista do FameLab Brasil, uma competi��o de divulga��o cient�fica organizada pelo British Council em que cientistas precisam explicar em poucos minutos para uma plateia conceitos cient�ficos.
Em fevereiro deste ano, Neris escreveu no Twitter sobre medidas de preven��o contra o coronav�rus e… viralizou. Suas mensagens foram retuitadas e curtidas dezenas de milhares de vezes.
"Eu n�o esperava — acordei no dia seguinte, vi que tinha viralizado e muita gente estava mandando mensagens e d�vidas. Foi uma experi�ncia muito legal."
"Foi um baque tamb�m, porque as coisas que eu escrevi nos tu�tes eram simples para mim. Surpreendeu porque grande parte do que estava ali n�o era de conhecimento geral do p�blico."
"Sempre procurei divulgar minhas pesquisas — quando tenho algum artigo publicado, fa�o alguma postagem nas minhas redes sociais resumindo o artigo de maneira simples. Mas, de dois anos para c�, tenho entendido mais a divulga��o cient�fica como um dever da minha atribui��o como pesquisador."
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