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Estado de Minas

Uso desenfreado de antibi�ticos na pandemia pode levar a 'apag�o' contra bact�rias resistentes

Mesmo sem efic�cia ou necessidade comprovada para a COVID-19, antibi�ticos foram amplamente usados contra o coronav�rus e pesquisadores acreditam que 'pre�o' disso ser� cobrado nos pr�ximos anos com piora na resist�ncia microbiana


19/10/2020 18:06 - atualizado 19/10/2020 19:51

Antibióticos foram muito usados no tratamento para covid-19 para evitar coinfecções de bactérias e fungos %u2014 mesmo que estas não tenham sido constatadas(foto: Getty Images)
Antibi�ticos foram muito usados no tratamento para covid-19 para evitar coinfec��es de bact�rias e fungos %u2014 mesmo que estas n�o tenham sido constatadas (foto: Getty Images)
Um problema declarado h� anos como uma das maiores amea�as para a sa�de global se depara agora com uma pandemia.

 

O resultado, como � de se imaginar, dever� ser altamente preocupante.

 

Pesquisadores e m�dicos atentos ao problema da resist�ncia de bact�rias e fungos acreditam que o uso desenfreado de antibi�ticos no tratamento de COVID-19 tornar� ainda mais dr�stico o cen�rio atual, em que j� h� falta de antibi�ticos capazes de combater certas doen�as e micro-organismos — que, por v�rios fatores, t�m se mostrado fortes e h�beis em driblar esses medicamentos.

 

Antes da pandemia, a situa��o j� era preocupante: no cen�rio mais dr�stico, at� 2050, a chamada resist�ncia microbiana (doen�as resistentes a antibi�ticos) poder� estar associada a 10 milh�es de mortes anuais, afirmou a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) em 2019. Hoje, acredita-se que pelo menos 700 mil pessoas morrem por ano devido � essa resist�ncia microbiana.

 

Muitos problemas comuns de sa�de, como pneumonia e infec��o urin�ria, j� t�m seus tratamentos dificultados por conta da resist�ncia. H� tamb�m condi��es de sa�de mais graves afetadas pelo problema, como a tuberculose multirresistente (com resist�ncia a pelo menos dois antibi�ticos, isoniazida e rifampicina).

 

Mas in�meros estudos pelo mundo t�m mostrado que, mesmo sem efic�cia e necessidade comprovadas para combater a COVID-19, antibi�ticos foram amplamente usados durante a pandemia — e a "conta" poder� ser cobrada nos pr�ximos anos com uma resist�ncia microbiana ainda mais aumentada.

 

"J� t�nhamos o problema da resist�ncia microbiana antes. Em virtude da COVID-19, muitos antibi�ticos foram receitados. Em um futuro n�o muito distante vamos ter um problema mais s�rio do que j� ter�amos", resume Victor Augustus Marin, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e pesquisador na �rea de biologia molecular.

 

"Vamos ver efeitos daqui a seis meses, daqui a um ou dois anos, quando pacientes com outras doen�as chegarem ao hospital. O m�dico vai prescrever um antibi�tico que pode n�o funcionar naquele paciente, ou vai aumentar a resist�ncia (de micro-organismos presentes no grupo da pessoa)", prev� Marin, respons�vel pelo Laborat�rio de Controle Microbiol�gico de Alimentos da Escola de Nutri��o (Lacomen) da universidade.

 

Preocupada com esse futuro, a OMS publicou em maio um guia para tratamento de COVID-19 que, entre outros pontos, recomendou expressamente a n�o utiliza��o dos antibi�ticos no tratamento da nova doen�a em casos suspeitos ou leves. Mesmo para casos moderados, a entidade indicou que o uso s� deve ser feito ap�s ind�cios de uma infec��o bacteriana.

 

"O uso generalizado de antibi�ticos deve ser desencorajado, uma vez que sua aplica��o pode levar a taxas maiores de resist�ncia bacteriana, o que vai impactar o volume de doen�as e mortes durante a pandemia de COVID-19 e al�m", diz o documento da OMS.

 

M�dico do Hospital S�rio-Liban�s, em S�o Paulo, Luciano Cesar Pontes de Azevedo explica que o que se observa nos hospitais e tem sido documentado em pesquisas cient�ficas pelo mundo � o uso de antibi�ticos com a justificativa n�o de tratar a infec��o causada pelo coronav�rus diretamente — mas sim uma eventual infec��o concomitante por alguma bact�ria.

 

"Isso (uso de antibi�ticos no tratamento de COVID-19) vem muito do fato de que � uma doen�a nova, e ningu�m conhecia a taxa de coinfec��o (por bact�rias). Para influenza, a gripe comum, pode ter coinfec��o em 30 a 40% dos casos. Para COVID-19, estudos t�m sugerido de 5 a 7,5% de coinfec��o", explica Azevedo, que trabalha com medicina intensiva e medicina de emerg�ncia e tem doutorado pela Universidade de S�o Paulo (USP) e p�s-doutorado pelo Instituto Nacional do C�ncer (Inca).

 

"Quando se sabe que a taxa de coinfec��o � baixa, n�o precisa passar antibi�tico para todo mundo com COVID— como quem est� em ambulat�rio, ou se tratando em casa."

 

A conduta de m�dicos e hospitais deve ser receitar antibi�ticos apenas ap�s uma infec��o por bact�rias ou fungos realmente ser constatada, preferencialmente por exame de cultura bacteriana e ainda exames que permitem detectar genes de resist�ncia a certos antibi�ticos.

 

Diversas pesquisas mostram que essa prud�ncia n�o foi adotada por muitos profissionais e hospitais.

Um estudo envolvendo 38 hospitais do Estado de Michigan, nos Estados Unidos, mostrou que 56,6% de 1.705 pacientes hospitalizados com COVID-19 logo receberam antibi�ticos como terapia "emp�rica" — quando n�o h� identifica��o de qual bact�ria ou fungo est� causando infec��o. Dessas pessoas, apenas 3,5% tiveram uma coinfec��o bacteriana confirmada por exames.

 

Outro estudo, com dados de 99 pacientes tratados no hospital Jinyintan de Wuhan (cidade chinesa onde come�ou a pandemia), mostrou que 71% deles receberam antibi�ticos, mas apenas 1% teve coinfec��o por bact�ria constatada por exames e 4% por fungos.

 

Com respostas de 166 m�dicos de 23 pa�ses, outra pesquisa constatou que apenas 29% dos profissionais escolheram n�o receitar antibi�ticos para pacientes com COVID-19 hospitalizados em leitos (menos graves do que aqueles na UTI).

 

J� na UTI, o antibi�tico mais prescrito foi a associa��o piperacilina/tazobactama. Esta combina��o � um antibi�tico do tipo inibidor de beta-lactamase, uma classe inclu�da pela OMS na categoria mais urgente ("criticamente importante") na busca por medicamentos substitutos que consigam driblar a resist�ncia.


Klebsiella pneumoniae faz parte de categoria 'crítica' das bactérias contra as quais o desenvolvimento de novos remédios é mais urgente, segundo lista da OMS(foto: Divulgação)
Klebsiella pneumoniae faz parte de categoria 'cr�tica' das bact�rias contra as quais o desenvolvimento de novos rem�dios � mais urgente, segundo lista da OMS (foto: Divulga��o)

H� diversas pesquisas pelo mundo mostrando que bact�rias originalmente alvos deste antibi�tico, como a Escherichia coli e a Klebsiella pneumoniae, est�o ficando resistentes a ele. Um tipo da Klebsiella pneumoniae, a KPC — sigla para Klebsiella pneumoniae produtora de carbapenemase — ficou conhecida como "superbact�ria" por produzir uma enzima capaz de combater os medicamentos mais potentes para tratar de infec��es graves, com destaque para os chamados carbapen�micos.

 

Na pandemia de coronav�rus, foi relatado um uso variado de antibi�ticos, incluindo tamb�m a moxifloxacina, medicamentos da classe dos carbapenemas, quinolonas, entre outros.

Antibi�tico associado � cloroquina


A azitromicina teria utilidade no controle do sistema imunológico, mas estudo de cientistas brasileiros afastou sua eficácia para covid-19(foto: Getty Images)
A azitromicina teria utilidade no controle do sistema imunol�gico, mas estudo de cientistas brasileiros afastou sua efic�cia para covid-19 (foto: Getty Images)

Enquanto muitos antibi�ticos foram usados para evitar coinfec��es — independentemente se elas existiam de fato ou n�o —, houve um antibi�tico espec�fico muito usado na pandemia e que teria uma outra fun��o, a de fortalecer o sistema imunol�gico no combate ao coronav�rus.

 

A azitromicina foi o segundo medicamento mais receitado no tratamento da COVID-19 por m�dicos de todo o mundo que participaram de um levantamento da Sermo, uma plataforma mundial usada por estes profissionais. O antibi�tico foi prescrito por 41% dos 6,2 mil entrevistados contra o novo coronav�rus, atr�s apenas dos analg�sicos.

 

O m�dico Luciano Cesar Pontes de Azevedo explica que, normalmente, a azitromicina � usada com antibi�tico contra infec��es bacterianas nas chamadas vias a�reas superiores, como no nariz e na garganta.

 

Entretanto, para algumas doen�as, j� foi sugerido que o antibi�tico poderia ter tamb�m efeito anti-inflamat�rio, controlando uma rea��o exagerada do sistema imunol�gico — que, na COVID-19, � um dos principais caminhos para quadros mais preocupantes.

 

Para Azevedo, um grande impulsionador da azitromicina no tratamento de coronav�rus foi um estudo da Fran�a que mostrou o que seriam resultados ben�ficos da associa��o deste antibi�tico com a hidroxicloroquina, envolvendo cerca de 30 pacientes.

 

Divulgado em maio na plataforma medRxiv (em que s�o postados trabalhos sem a chamada revis�o dos pares), o trabalho foi dias depois retirado do ar a pedido dos pr�prios pesquisadores, com a seguinte justificativa: "Por conta da controv�rsia sobre a hidroxicloroquina e da natureza retrospectiva desse estudo, os autores pretendem revisar o manuscrito ap�s a revis�o dos pares".

 

Em setembro, Azevedo fez parte de uma coaliz�o de cientistas brasileiros que publicou na prestigiada revista cient�fica Lancet um estudo cl�nico refutando os benef�cios da azitromicina para pacientes graves com COVID-19. O mesmo grupo de pesquisadores j� tinha afastado antes, com outro trabalho, a utilidade da hidroxicloroquina associada � azitromicina.

 

Esta faz parte da classe dos macrol�deos, que est� na categoria de maior urg�ncia na classifica��o da OMS. A resist�ncia � azitromicina pode afetar o tratamento de doen�as como otite e gonorreia.

Representando empresas nacionais e internacionais do setor, a Associa��o da Ind�stria Farmac�utica de Pesquisa (Interfarma) respondeu � BBC News Brasil por e-mail que o uso off label (diferente daquele que est� documentado na bula) de medicamentos � "de inteira responsabilidade do m�dico, que pode achar necess�rio de acordo com as necessidades cl�nicas de seu paciente, mesmo sabendo que essa indica��o ainda n�o foi aprovada".

 

Entretanto, a associa��o reconheceu tamb�m a excepcionalidade da crise sanit�ria atual, afirmando que "n�o tendo vacina ou um tratamento eficaz contra a COVID-19, alguns protocolos t�m adotado o uso off label de antibi�ticos e outros medicamentos".

 

A Interfarma n�o respondeu como avalia o uso emp�rico de antibi�ticos (sem constata��o do micro-organismo causando infec��o) e destacou que a OMS "promove o princ�pio do uso racional de medicamentos, ou seja, que o paciente receba tratamento apropriado para suas necessidades cl�nicas".

Como uso desenfreado de antibi�ticos para covid-19 teria efeitos negativos, na pr�tica?


Aumento de resistência microbiana após covid-19 pode ter efeitos individuais, como comunitários %u2014 em hospitais e vizinhanças(foto: Getty Images)
Aumento de resist�ncia microbiana ap�s covid-19 pode ter efeitos individuais, como comunit�rios %u2014 em hospitais e vizinhan�as (foto: Getty Images)

Os pesquisadores entrevistados pela reportagem explicam que os efeitos preocupantes do amplo uso de antibi�ticos na pandemia poderiam se expressar tanto nos pacientes individualmente como a n�vel comunit�rio, como em hospitais e vizinhan�as.

 

Segundo Victor Augustus Marin, receber um antibi�tico sem um diagn�stico preciso pode acabar desestabilizando a comunidade de micro-organismos que existe naturalmente em nosso corpo, como na flora intestinal — formando uma "microbiota".

 

"Em condi��es normais, nossa microbiota est� em simbiose. Quando voc� ingere um antibi�tico, o que causa? A disbiose: alguns micro-organismos s�o eliminados, enquanto outros crescem. Crescem aqueles que t�m resist�ncia, e antes estavam inibidos pelo resto da microbiota", explica o pesquisador da Unirio.

 

"Dar um antibi�tico sem diagn�stico � como dar um tiro de bazuca em uma mosca — pode at� matar a bact�ria, mas pode criar resist�ncia em outras que j� estavam no organismo (naturalmente). � preciso dar um tiro de chumbinho primeiro para ver se funciona."

 

Luciano Cesar Pontes de Azevedo diz que "com toda a certeza" esse amplo uso de antibi�ticos durante a pandemia ter� tamb�m efeitos mais amplos na popula��o.

 

"Esses antimicrobianos que estamos usando indiscriminadamente, como a azitromicina e a claritromicina, aumentam na comunidade a chance de bact�rias resistentes, como as que causam pneumonias. Possivelmente, quando chegarem pneumonias de comunidade daqui a dois, tr�s anos, vamos precisar come�ar usando antibi�ticos mais fortes", prev� o m�dico.

 

Pesquisadores costumam falar em micro-organismos resistentes na "comunidade" para quando eles j� s�o detectados fora dos hospitais.

 

Isso porque, dentro destes ambientes, bact�rias e fungos resistentes s�o particularmente preocupantes.

Uso de antibi�ticos em casos graves de covid-19

Azevedo acrescenta que, al�m da coinfec��o por uma bact�ria ou fungo, existe tamb�m a possibilidade de uma superinfec��o.

 

"� quando, em uma fase mais tardia da COVID-19, o paciente � contaminado por germes hospitalares. Acontece fundamentalmente com pacientes de Unidades de Terapia Intensiva (UTI), graves, que j� t�m um grau de defici�ncia do sistema imunol�gico", explica o m�dico.

 

Ainda que um paciente no ambiente hospitalar possa estar sujeito a micro-organismos mais resistentes, Azevedo diz que mesmo assim o uso de antibi�ticos deve ser criterioso — sendo precedido por exames e modulado, se poss�vel, para tempos mais curtos.

 

Uma equipe do Hospital Israelita Albert Einstein, em S�o Paulo, publicou em agosto dados sobre 72 pacientes com COVID-19 que foram internados em UTIs ou receberam cuidados intensivos — mostrando que 84,7% deles receberam antibi�ticos intravenosos durante a interna��o, sendo o tipo de medicamento mais usado neste grupo de pacientes.

 

Infectologista do hospital, Fernando Gatti aponta que, enquanto para pacientes com COVID-19 em geral a coinfec��o pode ser menor que 10%, para pacientes mais graves esse percentual sobe para cerca de 30%.

"O que acontece? O v�rus tem a��o inicialmente lesiva no pulm�o. As bact�rias que fazem parte da coloniza��o do trato respirat�rio acabam tendo mais facilidade para invadir o tecido pulmonar", explica Gatti.

 

"A pneumonia pode ent�o ser complicada por uma infec��o bacteriana, o que aumenta o tempo na ventila��o mec�nica, UTI, cat�ter..."

 

Assim, ele explica que no Albert Einstein o procedimento para pacientes graves com COVID-19 � a administra��o de antibi�ticos venosos de "amplo espectro" (que atingem uma variedade de pat�genos) mesmo sem exames detalhando uma poss�vel coinfec��o por bact�ria — a chamada terapia "emp�rica".

 

Depois, com os exames de cultura bacteriana em m�os, a equipe ent�o usa antibi�ticos mais espec�ficos considerando os micro-organismos e suas resist�ncias.

 

� um cuidado tomado justamente para evitar a exposi��o longa a antibi�ticos que possam acabar fortalecendo as bact�rias e fungos.

 

Luciano Cesar Pontes de Azevedo diz que, para pacientes que tiveram quadros mais graves de COVID-19, a resist�ncia se torna um problema ainda mais delicado porque doen�as cr�nicas e sequelas podem deixar mais fraco o sistema respirat�rio — e, assim, mais vulner�vel a novas infec��es.

 

Se reconhece que para pacientes graves, a administra��o de antibi�ticos � mais "dif�cil de criticar" pois muitas vezes responde a uma quest�o de vida e morte, Azevedo diz que o uso generalizado de antibi�ticos na pandemia mostra que ainda falta ades�o a um problema que � na verdade uma amea�a global.

 

"Acho que a pauta da resist�ncia microbiana n�o foi incoporada por profissionais de sa�de e pelos governos. E se trata tamb�m de uma pauta que envolve n�o s� o ambiente hospitalar, mas tamb�m a agropecu�ria", destaca o m�dico.

 

Conforme mostrou a BBC News Brasil em 2019, pesquisadores t�m mostrado cada vez mais como micro-organismos e resqu�cios de antibi�ticos n�o t�m fronteiras — possivelmente se alastrando pelos alimentos, lixo hospitalar, rios e canais de esgotos.

 

"Infelizmente, a COVID-19 n�o veio para ajudar nisso, pelo contr�rio", lamenta Azevedo.


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