
Para muitas brasileiras, a ideia de engravidar na atual pandemia de covid-19 � t�o assustadora quanto foi no auge da epidemia de zika.
Este � um dos resultados preliminares de uma pesquisa ainda in�dita da Universidade do Texas em Austin, que entrevistou 2.380 mulheres de 18 a 34 anos no Estado de Pernambuco, um dos mais afetados pelo surto de zika entre 2015 e 2016.
A pesquisadora Leticia Marteleto, professora do Centro de Estudos de Popula��o da Universidade do Texas em Austin, vem pesquisando as consequ�ncias demogr�ficas da epidemia de zika desde 2016.
Seus estudos, assim como os de outros grupos de pesquisa, constataram que houve um decl�nio do n�mero de nascimentos no Brasil aproximadamente nove meses depois que o v�rus foi associado ao nascimento de beb�s com microcefalia.
No in�cio de 2020, Marteleto e seus colegas estavam se preparando para entrevistar 4 mil mulheres em idade reprodutiva no estado de Pernambuco, que seriam acompanhadas ao longo do tempo para investigar as consequ�ncias de longo prazo da epidemia de zika no que diz respeito � fertilidade. A pesquisa recebeu financiamento dos Institutos Nacionais de Sa�de dos Estados Unidos (NIH, na sigla em ingl�s).
"Est�vamos prontos para ir a campo para iniciar esse painel em mar�o quando a pandemia come�ou", diz Marteleto.
A equipe teve de decidir, ent�o, se aguardava o fim da emerg�ncia ou se mudava tudo para se adequar � nova realidade. Transformar o projeto se provou a escolha mais acertada. As entrevistas que seriam face a face passariam a ser feitas por telefone com uma metodologia de discagem aleat�ria.
O projeto incluiu ainda uma s�rie de 56 entrevistas em profundidade via Zoom. Al�m disso, os question�rios foram alterados para incluir perguntas sobre o impacto do novo coronav�rus nas percep��es e decis�es das mulheres sobre se deveriam ter filhos.
Dados preliminares levantados pelos pesquisadores evidenciam medo e inseguran�a de engravidar no contexto da pandemia. De todas as entrevistadas, 1.880 (79,9%) concordam que as mulheres devem fazer todo o poss�vel para evitar uma gravidez durante a atual pandemia de covid-19.
Trata-se de uma porcentagem maior do que as que concordam que as mulheres deveriam ter feito todo o poss�vel para evitar uma gravidez na epidemia de zika (76,1%).
Das 1.342 mulheres que disseram que ainda querem ter filhos, 28,17% mudaram de ideia sobre engravidar em 2020 devido � pandemia. Das 863 mulheres que disseram n�o ter mais inten��o de ter filhos, 19,12% disseram que tomaram essa decis�o justamente por causa do novo coronav�rus. Al�m disso, 76,88% das mulheres disseram que t�m medo de engravidar e ter algum problema com o beb� ou com a gravidez devido � covid-19.

Mem�ria da zika ainda est� presente
Uma das quest�es que o projeto busca investigar � o efeito dessas duas graves crises de sa�de p�blica muito pr�ximas uma da outra nas mulheres em idade reprodutiva.
"Ser� que as mulheres que engravidaram na �poca do zika, ou que suspeitaram que tinham zika s�o as que mais querem mudar o comportamento reprodutivo agora? Ser� que s�o essas que tem mais medo?", pergunta Marteleto.
As cenas de hospitais lotados com beb�s nascidos com microcefalia e outros problemas graves de desenvolvimento associados � zika ainda s�o bastante presentes na mem�ria de brasileiras como a psic�loga Mariana Ducatti Horiquini de Almeida, de 31 anos.
Ela e o marido pretendiam ter filho este ano, mas optaram por adiar os planos por causa da pandemia.
"Na epidemia do zika foi comprovada a transfer�ncia do v�rus pela placenta. E levantou-se a possibilidade de associa��o com a microcefalia. A gente ficou com medo porque a gente n�o sabia se o covid tamb�m poderia ocasionar algo nesse sentido", diz Mariana.

At� o momento, estudos t�m mostrado que beb�s nascidos de m�es infectadas por covid-19 tendem a se desenvolver bem. Por outro lado, mulheres gr�vidas com covid-19 t�m se mostrado mais vulner�veis a quadros graves da doen�a do que mulheres n�o-gr�vidas.
Outro fator que pesou na decis�o foi o fato de tanto ela quanto o marido, o fisioterapeuta Everton Horiquini Barbosa, trabalharem em um hospital.
"A gente continuou trabalhando durante toda a pandemia. Apesar de n�o ser um hospital geral, mas um hospital de c�ncer, cheguei a atender muitos pacientes com covid, por isso acabamos ficando preocupados e optando por postergar." Al�m disso, ambos lecionam em uma faculdade que pode retomar as atividades presenciais a qualquer momento.
Para o casal, esse per�odo de inseguran�a n�o deve acabar t�o cedo. "A gente toma todos os cuidados, mas a gente n�o pensa em retomar os planos t�o em breve. Talvez no final do ano que vem."
Inseguran�a financeira
No caso de Mariana e Everton, a quest�o econ�mica n�o pesou na decis�o. Mas, para muitas mulheres, a inseguran�a financeira atrelada � pandemia tem tido um impacto contundente. Cerca de 70% das entrevistadas pela pesquisa da Universidade do Texas relataram que a renda do domic�lio caiu durante a pandemia.
Enquanto o zika era uma amea�a maior para o beb�, o covid-19 tem se mostrado uma amea�a para toda a fam�lia. "Elas articulam que agora a situa��o � pior porque pode afetar os pais, os empregos e a quest�o financeira de forma mais abrangente. Dizem que � pior engravidar agora porque � mais incerto, mais inseguro", conta Marteleto.
Luciana (nome fict�cio) estava come�ando um planejamento para engravidar quando perdeu o emprego e o conv�nio m�dico logo no in�cio da pandemia.
Ela pediu para ter sua identidade preservada porque ainda n�o tinha compartilhado os planos com toda a fam�lia. "Por causa da minha idade, mais de 40 anos, saiba que seria um processo em que iria precisar de algum tratamento de fertilidade", conta.
As economias que estavam reservadas para esses procedimentos acabaram sendo usadas para a subsist�ncia.
"Os planos foram para 2021. N�o passou a vontade de ser m�e", diz.
Pandemia exacerba desigualdade
Outro aspecto que Marteleto e seus colegas pretendem examinar � at� que ponto as mulheres est�o conseguindo realizar o que elas desejam em termos de gravidez e fecundidade.
A hip�tese � que, quanto menor a renda, mais as mulheres est�o � merc� de fatores como falta de acesso a m�todos contraceptivos ou a servi�os de sa�de, por exemplo.
Os dados do estudo mostram ainda que mulheres negras tiveram uma probabilidade maior de reportar que n�o conseguiram acessar servi�os de sa�de em compara��o a mulheres brancas ou pardas.
Para a epidemiologista Emanuelle G�es, doutora em Sa�de P�blica pela UFBA e p�s-doc pelo Cidacs/Fiocruz, situa��es preexistentes de desigualdade em acesso � sa�de reprodutiva t�m se exacerbado durante a pandemia. No Brasil e tamb�m em outras partes do mundo, o acesso aos m�todos contraceptivos e a servi�os de pr�-natal foram prejudicados, sendo as mulheres negras as mais afetadas.
"A gente observa, por exemplo, que estudos mostram que mulheres pretas morreram mais do que mulheres brancas por conta da covid-19. E isso foi por conta da diferen�a em rela��o ao acesso � UTI, � ventila��o mec�nica", diz G�es. Presume-se que as mulheres negras tamb�m se saem prejudicadas quanto ao acesso a servi�os de sa�de reprodutiva.
A consequ�ncia da falta de acesso a m�todos contraceptivos � o aumento de gesta��es n�o previstas e de abordos inseguros. "A gente n�o tem como medir porque s�o abortos clandestinos, mas a gente pressup�e que isso deva estar acontecendo", diz G�es.
Decl�nio de nascimentos?
Se a epidemia de zika resultou em um decl�nio tempor�rio na curva de nascimentos no Brasil, ser� que o mesmo pode ocorrer em rela��o � atual pandemia de covid-19?
Ainda � cedo para avaliar e existem algumas nuances a serem consideradas. Al�m da falta de acesso a m�todos contraceptivos, o que pode fazer com que mulheres engravidem mesmo sem querer, situa��es de crise �s vezes t�m efeitos inesperados sobre a natalidade.
"Meus colegas que trabalham com o impacto da Aids nos pa�ses africanos encontraram que naquele contexto as mulheres relataram que queriam engravidar justamente porque um beb� traria alento no meio daquela incerteza toda", relata Marteleto.
Nesta sexta-feira, 11 de dezembro, completam-se 9 meses do dia em que a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) declarou que viv�amos uma pandemia do novo coronav�rus. Somente os dados de nascimentos dos pr�ximos meses poder�o responder se a pandemia, que j� levou mais de 179 mil vidas no Brasil, tamb�m far� com que tantos outros deixem de nascer.
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