
Os alvos de Ward - um dos comediantes mais populares de Quebec, vencedor de v�rios pr�mios e conhecido por material muitas vezes ousado - eram o que ele descrevia como "os intoc�veis", ou "vacas sagradas", figuras famosas da prov�ncia canadense das quais, segundo ele, n�o se podia debochar.
Gabriel nasceu com s�ndrome de Treacher Collins, doen�a rara que causa deformidades no rosto e no cr�nio. Ele tamb�m nasceu surdo, e usa um implante auditivo. O cantor iniciou sua carreira ainda crian�a e ficou conhecido como "O Pequeno J�r�my".
Na apresenta��o, Ward ridicularizava a voz e a apar�ncia de Gabriel, descrito por ele como "o menino com um subwoofer na cabe�a", em refer�ncia ao implante auditivo. Em determinado momento, o humorista dizia que pesquisou na internet a doen�a do menino e descobriu que ele s� era "feio" mesmo.
Em parte da piada, Ward dizia que sempre defendeu Gabriel quando as pessoas reclamavam que ele era p�ssimo cantor, porque achava que o menino tinha uma doen�a terminal, mas que, quando percebeu que ele n�o estava � beira da morte, tentou afog�-lo.
O show foi um sucesso, e Ward repetiu a apresenta��o mais de 200 vezes nos tr�s anos seguintes. Em v�deos dispon�veis na internet, � poss�vel ouvir o p�blico rindo sem parar.
Mas a piada sobre Gabriel acabou virando alvo de uma longa batalha judicial que agora chegou � Suprema Corte, a mais alta inst�ncia da Justi�a canadense, em um caso que vem dividindo opini�es e que poder� redefinir os limites da liberdade de express�o no pa�s.
Discrimina��o
Segundo Gabriel, que hoje tem 24 anos de idade, a piada, amplamente divulgada online, o tornou alvo de bullying na escola, em um momento em que ele estava come�ando o ensino m�dio.
A defici�ncia do ent�o adolescente era motivo de risada enquanto outros estudantes repetiam as piadas contadas por Ward. Gabriel entrou em depress�o e chegou a pensar em suic�dio.
Em 2012, a fam�lia de Gabriel encaminhou uma reclama��o � Comiss�o de Direitos Humanos e Direitos da Juventude, ag�ncia do governo respons�vel por fazer cumprir o c�digo de direitos humanos da prov�ncia. A comiss�o decidiu levar o caso ao Tribunal e Direitos Humanos de Quebec, que trata de casos de discrimina��o e ass�dio que ferem esse c�digo.
Em 2016, o tribunal decidiu que o show de Ward inclu�a coment�rios que configuravam discrimina��o contra Gabriel com base em sua defici�ncia, o que fere a lei. Segundo os ju�zes, o direito � dignidade do cantor, que � protegido por lei, foi violado, e o humorista "excedeu os limites" da liberdade de express�o.
O tribunal ordenou Ward a pagar 35 mil d�lares canadenses (cerca de R$ 153 mil) ao cantor e 7 mil d�lares canadenses (cerca de R$ 30 mil) a sua m�e, Sylvie Gabriel. O humorista entrou com recurso, mas, em 2019, o Tribunal de Apela��o de Quebec manteve a decis�o, descartando apenas o pagamento � m�e do cantor.

O Tribunal de Apela��o disse que sua "inten��o n�o � restringir a criatividade ou censurar as opini�es de artistas", mas que "humoristas, assim como qualquer outro cidad�o, s�o respons�veis pelas consequ�ncias de suas palavras quando estas ultrapassam certos limites".
Em declara��o ap�s a decis�o, Ward disse que "com�dia n�o � crime". "Em um pa�s 'livre', n�o deveria caber a um juiz decidir o que constitui uma piada", afirmou o humorista, que decidiu recorrer � Suprema Corte. Na semana passada, os nove ju�zes da corte ouviram os argumentos do caso.
Debate
O caso vem ganhando aten��o em um momento em que h� um grande debate, no Canad� e em outros pa�ses como o Brasil, sobre quais devem ser os limites da liberdade de express�o.
A decis�o da Suprema Corte dever� ter impacto em v�rias quest�es no pa�s norte-americano: se um humorista tem o direito de contar piadas ofensivas, quais os limites da liberdade art�stica e do humor e qual o papel de tribunais de direitos humanos em julgar quest�es relativas a liberdade de express�o.
Os apoiadores de Ward argumentam que o humor - inclusive piadas ofensivas - � protegido pelo direito � liberdade de express�o no Canad�. O advogado Julius Grey, que representa o comediante, salienta que somente discurso de �dio ou formas extremas de pornografia costumam ser exclu�dos desse direito.
Mas a lei na prov�ncia de Quebec tamb�m garante o direito � dignidade e o direito contra discrimina��o, n�o apenas com base em defici�ncia, mas tamb�m em ra�a, cor, sexo, identidade ou express�o de g�nero, gravidez, orienta��o sexual, estado civil, idade, religi�o, convic��es pol�ticas, idioma, origem �tnica ou nacional e status social.
Para ser considerada discrimina��o e violar esse direito, � necess�rio que a piada ou coment�rio seja grave o suficiente para afetar a dignidade da pessoa. O Tribunal de Apela��o concluiu que a piada de Ward teve esse efeito.
"H� tr�s conceitos fundamentais que este caso poder� redefinir. Um deles � se meras palavras configuram discrimina��o", diz Grey � BBC News Brasil, ressaltando que, caso contr�rio, o Tribunal de Direitos Humanos n�o tem jurisdi��o, j� que trata somente de casos de discrimina��o, n�o de difama��o ou cal�nia.
"O segundo � o qu�o ampla � a liberdade de express�o. Mesmo se for discrimina��o, (o direito �) liberdade de express�o deve prevalecer? E o terceiro � sobre liberdade art�stica", afirma o advogado do humorista.

'Direito de n�o ser ofendido'
Grey argumenta que o caso n�o trata de discrimina��o. "Discrimina��o � relacionada a bens ou servi�os. Voc� n�o pode negar acesso a emprego, ou moradia, ou o que quer que seja (com base em discrimina��o)."
O advogado salienta que zombar de algu�m n�o priva essa pessoa de servi�os nem fere seus direitos. "Ningu�m tem o direito de n�o ser ofendido", afirma.
Mas o advogado Karim Luigi Fezzani, que, ao lado do advogado St�phane Harvey, representa Gabriel e sua m�e no caso diante da Suprema Corte, diz que se trata sim de discrimina��o, como conclu�do pelo Tribunal de Direitos Humanos e pelo Tribunal de Apela��o.
"O Tribunal de Direitos Humanos expressou claramente que, se n�o fosse por sua defici�ncia, Gabriel n�o teria sido alvo dos coment�rios de Ward", diz Fezzani � BBC News Brasil.
"Quando voc� ridiculariza uma crian�a por sua defici�ncia, quando voc� diz que ela � feia, quando voc� sugere que ela � in�til, que ela est� prestes a morrer, que todos a consideram digna de pena, voc� est� atacando a dignidade dessa crian�a por anos no futuro, diminuindo a estima que ela tem por si mesma e, consequentemente, a estima que outros t�m por ela."
Fezzani diz que o caso pode ter impacto na maneira como os direitos de pessoas deficientes s�o tratados.
"Em um momento em que pessoas com defici�ncias j� enfrentam numerosas barreiras na sociedade, como exclus�o, estigma e discrimina��o, este caso envia uma mensagem clara a todos os canadenses vivendo com defici�ncia, de que certas palavras e a��es contra eles n�o ser�o toleradas."
Autocensura
Humoristas em Quebec e outras partes do Canad� acompanham o caso com aten��o. A Associa��o dos Profissionais da Ind�stria de Humor � uma das organiza��es que participam do processo na Suprema Corte, em apoio a Ward.
"Se as san��es contra Mike Ward forem mantidas, isso ter� um efeito inibidor (sobre o humor)", opina � BBC News Brasil o advogado Walid Hijazi, advogado que representa a associa��o.
Segundo Hijazi, h� o risco de que os artistas recorram a autocensura. "Comediantes ficar�o com medo de fazer piadas pol�micas, por medo de serem sancionados, processados, de ter de pagar do pr�prio bolso. O conte�do vai ficar mais homog�neo."
Hijazi ressalta que a com�dia tem o objetivo n�o somente de fazer o p�blico rir, mas tamb�m de provocar, e sempre foi uma forma de arte pol�mica, testando os limites do que � socialmente aceit�vel.
Segundo o advogado, para permitir que os humoristas criem conte�do sem medo, a liberdade de express�o art�stica deve ser a mais ampla poss�vel.
"O limite deve ser discurso de �dio, que, disfar�ado de humor, promove viol�ncia e �dio. O resto deve ser permitido", afirma.
'Politicamente correto'
Grey, o advogado de Ward, v� problemas para a liberdade de express�o "em um mundo politicamente correto e de conformidade", e questiona o futuro da com�dia.
"A quest�o �: poder� essa forma de arte (com�dia stand-up) sobreviver se (o humorista) tiver que se perguntar, a cada vez, se algu�m vai dizer que sua dignidade foi ofendida?"
Mas Fezzani, o advogado de Gabriel, observa que, no Canad�, o direito � liberdade de express�o sempre foi razoavelmente equilibrado com outros direitos, como � dignidade.
"A promo��o do autodesenvolvimento individual em uma democracia verdadeira como o Canad�, onde a participa��o de todos � aceita e encorajada, requer o uso ocasional da lei restringindo a express�o para evitar a dor sofrida por grupos que a legisla��o decidiu proteger", afirma.
"Arte n�o significa permiss�o para fazer e dizer qualquer coisa. Os artistas devem ser sens�veis � natureza e ao alcance de seus coment�rios e n�o tentar se esconder atr�s de um manto art�stico para justificar a viola��o dos direitos dos outros."
A Suprema Corte dever� chegar a uma decis�o nos pr�ximos meses.
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