
Valdirene Ferreira Fraz�o, de 48 anos, mudou-se para l� em maio. Carpiu e limpou o terreno acompanhada dos filhos, um rapaz de 25 anos e uma menina de 12.
Com o dinheiro do aux�lio emergencial dado pelo governo federal, levantou em dois dias um barraco de madeira com cobertura de lona.
"Foi um sofrimento. Era um frio desgra�ado ou um sol infernal sem ter onde se abrigar. A primeira noite passamos em claro porque chovia muito e entrava �gua dentro de casa. Agora, j� est� bonitinha, com telhas e piso", conta Valdirene.
Mas, em julho do ano passado, a Prefeitura, que � a dona do terreno, pediu na Justi�a a reintegra��o de posse da �rea.
"Hoje tenho um abrigo, ser� que vou ter a semana que vem? Hoje, tenho comida pra alimentar minha fam�lia, ser� que vou ter no pr�ximo m�s?", diz Valdirene. "Se eu tiver que sair daqui, n�o tenho qualquer outra perspectiva."

Justi�a pode julgar pedido de remo��o a qualquer momento
Hoje, vivem no local 840 fam�lias, segundo a �ltima contagem feita pela associa��o de moradores. A maioria � chefiada por mulheres.
O terreno pertence � SP Urbanismo, empresa da Prefeitura de S�o Paulo. A �rea e seus arredores foram incorporados a um projeto municipal que pretende construir empreendimentos residenciais e n�o residenciais em parceria com empresas privadas.
A Prefeitura diz que os terrenos ser�o destinados � constru��o de 1.580 unidades habitacionais, das quais 71% ser�o destinadas a fam�lias de baixa renda, al�m de "infraestrutura p�blica, equipamentos p�blicos, empreendimentos n�o residenciais privados (visando gerar emprego e renda na regi�o) e presta��o de servi�os".
O Minist�rio P�blico de S�o Paulo enviou na �poca para a Prefeitura um documento no qual defendeu que as remo��es e outras medidas administrativas e judiciais poderiam colocar nas ruas milhares de pessoas vulner�veis, contrariando as determina��es de autoridades de sa�de no combate � pandemia.
"N�o se trata aqui de legitimar ocupa��es de �reas p�blicas, mas de salvaguardar vidas em tempos de epidemia letal de larga escala", disse o �rg�o na �poca.
Foi tamb�m o que recomendou o especialista da Organiza��o das Na��es Unidas em direitos para moradia, Balakrishnan Rajagopal.
"A atual crise de sa�de exige medidas de emerg�ncia, incluindo uma morat�ria imediata em todos os despejos e remo��es", afirmou ele.
Em agosto, a Prefeitura pediu o adiamento da reintegra��o de posse da �rea, devido � gravidade da pandemia de covid-19.
Mas, h� um m�s, o poder p�blico pediu de novo � Justi�a a remo��o dos moradores. O caso pode ser julgado a qualquer momento pela ju�za Celina Kiyomi Toyoshima, da 4ª Vara da Fazenda P�blica, no pior momento da pandemia no pa�s.
O que diz a Prefeitura
A advogada Fabiana Alves Rodrigues, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, representa os moradores da ocupa��o e diz que v�rias a��es de reintegra��o de posse foram suspensas em 2020.
Mas depois elas foram cumpridas, quando a cidade de S�o Paulo saiu da fase vermelha do plano de combate � pandemia, a etapa que prev� as medidas mais r�gidas, para quando o surto est� cr�tico.
A cidade voltou para a fase vermelha no in�cio de mar�o, junto com todo o Estado. "Isso talvez fa�a com que as reintegra��es sejam suspensas, assim como a recente decis�o do Conselho Nacional de Justi�a, que recomendou evitar despejos de vulner�veis durante a pandemia", diz Rodrigues.
"Mas j� existe decis�o do Tribunal de Justi�a de S�o Paulo para o cumprimento de liminar de reintegra��o de posse durante a pandemia, ent�o acho dif�cil a ju�za ir contra essa decis�o."
A Prefeitura de S�o Paulo disse � BBC News Brasil que n�o far� a reintegra��o de posse do Jardim Julieta enquanto durar a situa��o emergencial causada pela pandemia, per�odo estabelecido por decreto municipal e sem prazo para ser extinto.
Em nota, afirmou que os moradores do Jardim Julieta foram orientados sobre a desocupa��o pac�fica da �rea e que h� fam�lias em "situa��o de extrema vulnerabilidade" aguardando a constru��o das unidades habitacionais.
"A ocupa��o n�o gera prioridade de atendimento habitacional em detrimento de outras fam�lias que aguardam moradia", disse a Prefeitura.
Debora Ungaretti, pesquisadora do Observat�rio de Remo��es, projeto mantido por pesquisadores para monitorar remo��es em diferentes regi�es metropolitanas do pa�s, avalia que as unidades habitacionais que ser�o constru�das n�o atendem a popula��o removida.
"S�o para v�rias faixas de renda, inclusive de renda alta", afirma Ungaretti. Muitos im�veis ter�o que ser adquiridos por meio de empr�stimos banc�rios com requisitos que impedem o acesso da maioria da popula��o que mora ali, diz a pesquisadora.
"A PPP leva esse carimbo da habita��o, de interesse p�blico, para viabilizar outros projetos que n�o t�m interesse p�blico, como a concess�o de �reas p�blicas para a concession�ria definir qual o uso mais lucrativo. O edital � amplo, ent�o, pode ser a constru��o de um shopping, por exemplo", argumenta.
Remo��es na pandemia

Um levantamento da campanha Despejo Zero aponta que ao menos 9.155 fam�lias foram removidas durante a pandemia no Brasil e mais de 64.546 est�o sob essa amea�a.
Os n�meros s�o referentes apenas a remo��es coletivas, como comunidades e ocupa��es, e n�o inclui casos individuais de despejo, como por falta do pagamento de aluguel, por exemplo.
O Estado com maior n�mero de remo��es foi o Amazonas, com 3.004 fam�lias. Isso porque em mar�o de 2020 houve a desocupa��o do Monte Horebe, ocupa��o onde viviam 2.260 fam�lias na Zona Norte de Manaus. Em segundo lugar vem S�o Paulo, com 2.852 fam�lias.
A engenheira Talita Gonsales, uma das participantes da Despejo Zero, destaca que apenas Rio de Janeiro e Paran� conseguiram aprovar leis estaduais que suspendem as reintegra��es.
Ainda de acordo com o levantamento, ao menos 31 comunidades tiveram as remo��es suspensas, mas elas podem ser retomadas a qualquer momento.
Andreia Aparecida Castilho da Silva, de 46 anos, hoje vive no Jardim Julieta com as quatro filhas e o neto. Ela diz que n�o consegue cogitar a possibilidade de ter de sair dali.
"N�o temos pra onde ir", diz Andreia. Ela conta que estava em depress�o quando foi viver na ocupa��o. Cabeleireira h� 25 anos, ficou sem trabalho na pandemia porque os sal�es fecharam. Pouco antes, o marido morreu de um infarto.
Andreia diz que gastou o que n�o tinha para enviar o corpo ao Piau�, onde a fam�lia do marido vive. "Eu n�o tinha um real. Estava no desespero de n�o saber se teria comida para dar pras minhas filhas no dia seguinte."
Ela morava de favor na casa de familiares e decidiu ir para a ocupa��o. Nos primeiros dias, Andreia diz que ficou sem comer e tomar banho.
"S� bebia caf� e �gua. Perdi 15 kg em 5 dias. Dormia num colch�o com um cobertor ao relento enquanto constru�a a casa. Foi uma dificuldade conseguir madeira: se sa�sse pra pegar, outra pessoa j� estava no terreno."
Depois de nove meses, construiu um banheiro. At� ent�o, fazia as necessidades num balde e tomava banho de canequinha. "O que mais senti falta por meses foi de ter um chuveiro, lavar a cabe�a, sentir a �gua correndo", conta.
Hoje, ela sobrevive com os R$ 130 que ganha do Bolsa Fam�lia e com salgadinhos e refrigerantes que vende.
Convive tamb�m com o temor da pandemia. "Minha fam�lia s� tem a mim, a fortaleza de todos sou eu. Eu n�o posso ficar doente, sen�o tudo desmorona."

Inc�ndios, p�ssimas condi��es sanit�rias e medo de pegar covid
Conforme mais gente foi chegando e o Jardim Julieta cresceu, come�ou a faltar espa�o para tanta gente. A solu��o foi passar a acomodar nos terrenos de 50 m² duas fam�lias em vez de uma como antes.
A ocupa��o do Jardim Julieta j� teve dois inc�ndios: um por causa de uma vela e que atingiu tr�s barracos, e outro por um curto circuito em uma fia��o e que destruiu duas casas com tudo que havia dentro.
"Foi t�o triste, justo na v�spera do Natal. S� n�o foi pior porque os barracos ao redor eram de alvenaria e seguraram o fogo", conta Valdirene, que faz parte da associa��o de moradores.
"Foi um desespero total. Ligamos pros bombeiros, mas eles n�o vinham. E n�o temos �gua forte o suficiente para apagar o fogo. Come�amos a pegar areia do pessoal que estava construindo casa."
Valdirene diz que outra dificuldade � a infesta��o de animais pe�onhentos, como aranhas e escorpi�es. Ela conta ao menos seis pessoas at� agora que foram hospitalizadas por causa de picadas de escorpi�o.
Apesar das condi��es sanit�rias prec�rias, Valdirene diz n�o ter not�cia de contaminados pela covid-19 na ocupa��o. Os moradores receberam 50 testes do posto de sa�de mais pr�ximo em outubro. Todos deram negativo.
Ela diz sentir muito medo de se infectar. Valdirene e o marido s�o diab�ticos e t�m press�o alta, dois fatores de risco para a covid-19. A isso se soma � incerteza quanto ao futuro.
"Temos centenas de crian�as aqui, fora os idosos, transplantados e deficientes f�sicos. Se fizerem a reintegra��o de posse, o que far�o com essas quase 2 mil pessoas?"
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