
Ele era intelectual, f� de arquitetura e arte, doutor em filosofia, teologia e direito. Quando o italiano Fabio Chigi (1599-1667) se tornou o papa Alexandre 7º, nem em seus piores pesadelos poderia vislumbrar que teria de enfrentar uma epidemia de peste. A resposta dele, no entanto, foi contundente.
Embora a ci�ncia s� tenha descoberto o bacilo causador da peste em 1894 — gra�as ao bacteriologista Alexandre Yersin (1863-1943) —, o papa decretou medidas sanit�rias que, para pesquisadores, contribu�ram para que a letalidade da doen�a fosse muito menor na popula��o romana do que em outros lugares afetados pela mesma doen�a.
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De acordo com levantamento realizado pelo historiador italiano Luca Topi, professor da Universidade de Roma La Sapienza, entre 1656 e 1657 a peste matou 55% da popula��o da Sardenha, metade da popula��o de N�poles e 60% dos que habitavam G�nova.
Em Roma, contudo, foram 9,5 mil mortos em um universo de 120 mil pessoas — menos de 8%. Essas conclus�es foram publicadas em uma revista cient�fica italiana em 2017.
Calcula-se que a peste tenha dizimado cerca de metade da popula��o europeia, em diversas ondas. Fazia um ano que Alexandre VII havia sido eleito papa quando come�aram a chegar relatos de mortes pela doen�a no ent�o reino de N�poles.
Alexandre 7º n�o era somente o l�der do catolicismo. Se hoje o papa � soberano de um estado diminuto encravado em Roma, o Vaticano, na �poca comandava os chamados Estados Pontif�cios que compreendiam Roma e boa parte dos arredores — praticamente todo o centro da It�lia atual.
A fascinante hist�ria a seguir mostra como medidas que geram controv�rsia no Brasil da pandemia de COVID-19, como proibi��o de circula��o de pessoas, fechamento de fronteiras e de templos, rastreamento de casos, aux�lio emergencial, debates sobre jejuns religiosos e outras, foram aplicadas h� mais de 400 anos — e tiveram bons resultados.
Quais foram as medidas do papa?
Nos dom�nios papais, esse surto ocorreu de maio de 1656 a agosto de 1657.
Assim que as primeiras not�cias da peste chegaram a Roma, Alexandre 7º colocou em alerta a ent�o Congrega��o da Sa�de, que havia sido criada em um surto anterior.
As medidas de conten��o foram implementadas gradualmente, conforme a situa��o se tornava mais perigosa.
Em 20 de maio, foi promulgado um decreto que suspendia toda atividade comercial com o reino de N�poles — j� fortemente afetado. Na semana seguinte, o bloqueio se estendeu: ficava proibido tamb�m o acesso a Roma de qualquer viajante vindo de l�.
No dia 29, a cidade de Civitavecchia, dentro dos dom�nios dos Estados Pontif�cios, registrou a chegada da peste e foi imediatamente colocada em quarentena.
"Nos dias e meses seguintes, muitas outras localidades dos Estados Papais foram colocadas em isolamento", detalha o historiador Topi, em seu artigo. Em Roma, a decis�o foi radical: quase todos os port�es que ent�o davam acesso � cidade foram fechados. Apenas oito permaneceram abertos, mas eles eram protegidos 24 horas por dia por soldados, supervisionados por "um nobre e um cardeal".
A partir de ent�o, qualquer entrada tinha de ser justificada e registrada.
Em 15 de junho, Roma teve o primeiro caso: um soldado napolitano que morreu em um hospital. As normas passaram a endurecer cada vez mais. Em 20 de junho, uma lei passou a obrigar que todo aquele que soubesse de um doente informasse autoridades.
Na sequ�ncia, um novo dispositivo papal passou a obrigar que todo p�roco e seus ajudantes visitassem, a cada tr�s dias, todas as casas de suas circunscri��es para identificar e registrar os doentes.
Era a maneira, na �poca, de rastrear os infectados.
A� veio a not�cia de mais uma morte, um pescador que estava hospedado na regi�o de Trastevere. "Toda a fam�lia que teve contato com essa v�tima tamb�m se infectou e muitos foram a �bito", conta Raylson Araujo, membro do N�cleo de Di�logo Cat�lico-Pentecostal e estudante de teologia da Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP), que tamb�m pesquisou o assunto.
A primeira ideia foi tentar isolar a regi�o. Na noite do dia 22 para o dia 23 de junho, sob as ordens de tr�s cardeais, trabalhadores ergueram um muro de conten��o ap�s nove horas de trabalho.

"O papa era tamb�m a autoridade civil. Conforme a doen�a come�ou a se espalhar, ele passou a implementar medidas de isolamento. Depois que proibiu o com�rcio com N�poles, passou a decretar outros meios de distanciamento social: foi proibindo encontros, prociss�es, todo o devocional mais popular", pontua Araujo.
O endurecimento das regras foi gradual at� o lockdown completo.
"Conforme o tempo foi passando, ele [o papa] foi adotando novas proibi��es. Congrega��es [da Igreja] foram suspensas, todas as visitas diplom�ticas tamb�m, encontros religiosos e reuni�es p�blicas… Estradas foram vigiadas", enumera Araujo. "Todas as aglomera��es civis acabaram suspensas."
"Foram banidas v�rias atividades econ�micas e sociais. Festas e cerim�nias p�blicas, civis e religiosas foram canceladas", diz o seminarista Gustavo Catania, fil�sofo pelo Mosteiro de S�o Bento de S�o Paulo. "Mercados foram suspensos e algumas pessoas que moravam na rua foram retiradas, porque podiam ser causas de cont�gio. A travessia noturna do Rio Tibre foi proibida."
"Com quase toda a cidade fechada, os cultos inevitavelmente se transformaram em privados. Quase todos tinham algu�m da fam�lia com a doen�a", completa Catania.
O papa tamb�m determinou que naquele per�odo ningu�m deveria fazer jejum, numa tentativa de que as pessoas n�o se privassem de alimentos e, assim, se mantivessem mais saud�veis para o caso de serem infectadas.
Todos aqueles que tinham pelo menos um contaminado na fam�lia eram proibidos de sair de casa. Para garantir a assist�ncia, Alexandre 7º separou os padres e os m�dicos em dois grupos — aqueles que teriam contato com os doentes e os que n�o teriam, encarregando-se de zelar pelo restante da popula��o.
"Havia uma preocupa��o que os padres n�o se transformassem em vetores da doen�a", diz Araujo.
"Os m�dicos foram proibidos [por lei] de fugir de Roma", atenta Catania, lembrando que muitos tinham receio de se contaminarem com a peste. Como os doentes eram isolados, foi montada uma rede de apoio assistencialista. "Houve a previs�o de ajuda financeira �s fam�lias que n�o podiam sair de casa e algumas pessoas recebiam comida pela janela", diz o seminarista.
Nos meses de outubro e novembro, quando a incid�ncia da doen�a foi maior, chegou-se a prever pena de morte para quem descumprisse as regras.
Negacionistas e fake news
Mas nem todos acreditavam na gravidade da situa��o.
Havia quem desdenhasse e at� as hoje chamadas fake news foram espalhadas. "O papa chegou a ser acusado de ter inventado a doen�a em benef�cio pr�prio, para ganhar popularidade", conta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de hist�ria do catolicismo na Pontif�cia Universidade Gregoriana de Roma.
"[Muitos] n�o queriam que o pont�fice adotasse tais medidas [de restri��o] para n�o alarmar a popula��o", complementa. "At� seus colaboradores mais pr�ximos o aconselharam a n�o faz�-lo. Temiam que, a partir do momento em que ele levasse a p�blico a gravidade da situa��o, por meio de decretos e divulga��o, a economia passasse a sentir os efeitos desse tipo de postura. No entanto, ele [o papa] foi firme e seguiu com sua pol�tica sanit�ria."
Talvez Alexandre 7º possa ser considerado uma esp�cie de padroeiro do lockdown.
Ara�jo compara o acontecido no s�culo 17 com o "movimento de hoje, com a resist�ncia das pessoas" a aceitarem a gravidade da pandemia de COVID-19. "[Na �poca,] primeiro os comerciantes quiseram aconselhar o papa para que ele n�o adotasse as medidas, pois [o fechamento] iria prejudicar o com�rcio, a colheita", comenta o pesquisador. "Parte do povo foi murmurar contra as decis�es do papa."
"Grupos procuraram o papa, aconselhando-o para n�o decretar medidas de isolamento. Queriam que ele acobertasse, maquiasse um pouco a doen�a para que o p�nico n�o se espalhasse e o com�rcio n�o fosse fechado", prossegue.
H� relatos de que um m�dico teria divulgado fake news acerca das reais motiva��es do lockdown. "Ele espalhou que essas decis�es do papa escondiam interesses pol�ticos", diz o historiador Victor Missiato, professor do Col�gio Presbiteriano Mackenzie Bras�lia, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Bras�lia) e pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"Foi acusado de cal�nia e acabou condenado a trabalhar em um hospital voltado para a cura da peste."
Outro caso emblem�tico foi o do religioso Gregorio Barbarigo (1625-1697). Quando foi eleito, o papa Alexandre VII nomeou-o prelado da Casa Pontif�cia, conselheiro e, em seguida, referend�rio do Supremo Tribunal da Assinatura Apost�lica. Isso tudo em 1655, mesmo ano em que Barbarigo havia se tornado sacerdote.
Mas o conselheiro acabou sendo uma voz contr�ria ao lockdown de Alexandre 7º. "Ele questionava as medidas, dizia que elas provocavam mais mortes do que a peste, porque causavam mortes pela fome e pelo medo. Mesmo pr�ximo ao papa, ele tinha um olhar cr�tico", frisa Araujo.
Alexandre 7º n�o parece ter guardado rancor. Tanto que, anos mais tarde, em consist�rio de abril de 1660, fez de Barbarigo cardeal.
Vit�ria contra a doen�a
Quando esse surto foi vencido em agosto de 1657, a celebra��o foi � altura.
Alexandre 7º demonstrou o renascimento da Igreja com monumentos que marcam o Vaticano at� hoje, como o conjunto de colunas da Pra�a de S�o Pedro, obra do escultor e arquiteto Gian Lorenzo Bernini (1598-1660).

"Era muito comum, nesse per�odo, que os papas tornassem vis�veis a sua soberania e o seu poder. Os grandes monumentos de Roma, nesse per�odo, foram constru�dos a partir dessa motiva��o", contextualiza Medeiros.
"� o caso das Quattro Fontane da Piazza Navona, Fontana di Trevi, entre outros."
A embaixada brasileira em Roma fica em frente �s esculturas da famosa Piazza Navona.
"Alessandro 7º era apaixonado pela arte, amigo de Bernini. O in�cio de seu pontificado foi marcado, justamente, pela peste", explica.
"A forma que ele encontrou, de certa forma, de apagar aquele per�odo sombrio, foi investindo em obras colossais. As colunatas que ele mandou construir representam os bra�os abertos da Igreja. A catedral do ap�stolo Pedro foi restaurada, o s�mbolo do poder temporal, n�o s� espiritual."
Outros casos
N�o foi este o �nico momento hist�rico em que a Igreja, no passado, fechou suas portas por conta de surtos e epidemias. Mas, como destaca Medeiros, foi o �nico de forma oficial "e contando com uma estrutura de Estado para tal".
"Ocorreram [em outros momentos] casos isolados em algumas dioceses da It�lia, sobretudo no s�culo 19 durante a epidemia de c�lera", lembra ela. "Nesses lugares, adotaram-se medidas restritivas semelhantes."
Por outro lado, Medeiros lembra que no surto de peste do s�culo 14, ocorreu "totalmente o contr�rio".
"O papa Clemente 6º, isolado no pal�cio pontif�cio de Avignon, na Fran�a, n�o parecia muito preocupado com o que ocorria fora dos muros da sua casa", aponta a vaticanista. "Como na mentalidade do homem da �poca a doen�a nada mais era do que um castigo divino, prociss�es e outras formas de aglomera��o aconteciam, na tentativa, segundo a mentalidade religiosa da �poca, de extirpar aquele mal."
"Mas j� nessa �poca, assim como na �poca de Alexandre 7º, existiam os dormit�rios para isolar os infectados. Esses 'lazarettos', como eram chamados, estavam sob a responsabilidade dos [religiosos] franciscanos", contextualiza. "Os viajantes, seguindo as normas sanit�rias de alguns lugares, deveriam evitar o conv�vio com outras pessoas por 40 dias — da� que surge o termo quarentena."
No s�culo anterior, a regi�o de Mil�o foi fortemente acometida pela peste. O cardeal arcebispo de l�, Carlo Borromeo (1538-1584), tamb�m estabeleceu medidas sanit�rias r�gidas em sua circunscri��o.
"Ele fez a proposta de uma quarentena geral, que foi adotada [pela regi�o]", diz Araujo. "Foi publicado um decreto que determinava que as pessoas se mantivessem em casa at� que a situa��o fosse controlada. S� podiam sair os que estavam cuidando espiritual e materialmente da popula��o."
O pesquisador conta que at� as missas foram realizadas em um formato "� dist�ncia", conforme as possibilidades da �poca. "Um padre ia para a esquina e celebrava na rua. Os fi�is assistiam de suas janelas, de dentro de casa", explica ele.
F� e ci�ncia
Ao analisar esses epis�dios do passado — muitas vezes semelhantes ao vivenciados hoje — dois pontos precisam ser levados em conta.
Este era um mundo em que a ci�ncia ainda n�o era valorizada como hoje. E no qual religi�o e pol�tica estavam intrinsecamente mesclados.
"No s�culo 17, absolutismo era muito forte na Europa e estava ligado ao poder da Igreja. Poder pol�tico e poder religioso, naquela �poca, ainda estavam muito misturados", explica Missiato.
"Naquele per�odo, a Revolu��o Cient�fica ainda n�o havia sido difundida nas diversas sociedades do mundo europeu. A cren�a no divino enquanto ente definidor da paz e do caos ainda era vista como o caminho para a salva��o."
Por isso, o lockdown imposto por Alexandre 7º se torna ainda mais interessante.
"[O ocorrido] mostra um alinhamento entre f� e ci�ncia", diz Araujo. "Uma f� que tem os p�s no ch�o. Com base no que Roma j� havia sofrido com a peste em outros momentos, [a experi�ncia faz com que] eles passam a saber que essas medidas s�o importantes. Existem pastores sens�veis."
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