
Essas mortes, apesar de raras, s�o resultado de uma combina��o de baixa testagem, falta de diagn�stico adequado e m�s condi��es socioecon�micas, dizem especialistas e m�dicos ouvidos pela BBC.
O filho da professora cearense Jessika Ricarte, Lucas, de um ano, foi uma das v�timas do coronav�rus.
Um m�dico se recusou a test�-lo para covid-19, dizendo que seus sintomas n�o se encaixavam no perfil dos doentes. Dois meses depois, ele morreu de complica��es da doen�a.
Lucas foi uma crian�a muito esperada. Chegou ap�s dois anos de tentativas e tratamentos de fertilidade malsucedidos. Jessika e seu marido, Israel, quase desistiram de ter uma fam�lia. Ent�o, ela engravidou.
"O nome Lucas quer dizer 'iluminado'. E ele foi uma luz em nossa vida. Lucas mostrou que a felicidade era muito maior do que imagin�vamos", diz ela � BBC News Brasil.

Jessika primeiro suspeitou que algo estava errado quando Lucas, que nunca teve problemas para se alimentar, perdeu o apetite.
A princ�pio, pensou que seu filho estava tendo problemas de denti��o. A madrinha de Lucas, uma enfermeira, sugeriu que o menino poderia estar com a garganta inflamada.
Mas depois que Lucas desenvolveu febre, fadiga e dificuldade para respirar, Jessika o levou ao hospital e pediu que seu filho fosse submetido a um teste de covid.
"O m�dico colocou um ox�metro nele. Os n�veis de oxigena��o de Lucas estavam em 86%. Agora sei que isso n�o � normal", diz Jessika.

Mas Lucas n�o estava com febre, e o m�dico disse: "Minha querida, n�o se preocupe. N�o h� necessidade de fazer o teste de covid. Provavelmente � apenas uma pequena dor de garganta."
Ele explicou a Jessika que a covid-19 era rara em crian�as, deu alguns antibi�ticos ao menino e mandou m�e e filho de volta para casa. Jessika suspeitou do diagn�stico, mas n�o havia outra op��o para testar Lucas na �poca.
Jessika diz que alguns dos sintomas desapareceram no fim do curso de antibi�ticos de 10 dias, mas o cansa�o permaneceu - assim como suas preocupa��es com o coronav�rus.
"Mandei v�rios v�deos para a madrinha dele, meus pais, minha sogra, e todos falaram que eu estava exagerando, que deveria parar de assistir ao notici�rio, que estava me deixando paran�ica. Mas eu sabia que meu filho estava diferente, que ele n�o estava respirando normalmente", lembra.
Era maio de 2020 e a epidemia de coronav�rus se alastrava pelo Brasil. Duas pessoas j� haviam morrido em sua cidade, Tamboril, no Cear�. "Todo mundo se conhece aqui. A cidade estava em choque."

O marido de Jessika, Israel, temia que outra visita ao hospital aumentasse o risco de ela e Lucas serem infectados com o v�rus.
Mas as semanas se passaram e Lucas foi ficando cada vez mais sonolento. Em 3 de junho, Lucas vomitou v�rias vezes depois de almo�ar, e Jessika sabia que precisava agir.
Eles voltaram para o hospital local, onde o m�dico testou Lucas para covid, para descartar a possibilidade da doen�a.
A madrinha de Lucas, que trabalhava l�, deu ao casal a not�cia de que o resultado do exame foi positivo.
"Na �poca, o hospital n�o tinha nem ressuscitador", conta Jessika.
Lucas foi transferido para uma unidade de terapia intensiva pedi�trica em Sobral, a mais de duas horas de dist�ncia, onde foi diagnosticado uma doen�a chamada S�ndrome Inflamat�ria Multissist�mica (SIM).
A SIM � uma resposta imunol�gica extrema ao v�rus, que pode causar inflama��o de �rg�os vitais.
Especialistas dizem que a s�ndrome, que afeta crian�as em at� seis semanas ap�s a infec��o pelo coronav�rus, � rara, mas F�tima Marinho, m�dica epidemiologista e especialista s�nior da consultoria Vital Strategies, afirma que, durante a pandemia, os casos de SIM aumentaram, embora n�o sejam respons�veis por todas as mortes.

Quando Lucas foi intubado, Jessika n�o teve permiss�o para ficar no mesmo quarto. Ela ligou para a cunhada para tentar se distrair.
"Ainda pod�amos ouvir o barulho da m�quina, o apito, at� que a m�quina parou e emitiu aquele apito constante. E sabemos que isso acontece quando a pessoa morre. Depois de alguns minutos, a m�quina voltou a funcionar e eu comecei a chorar. "
Os m�dicos disseram a ela que Lucas havia sofrido uma parada card�aca, mas eles conseguiram reanim�-lo.
A m�dica pediatra Manuela Monte, que cuidou de Lucas por mais de um m�s na UTI de Sobral, disse que ficou surpresa com a gravidade do estado do menino, pois ele n�o apresentava fatores de risco.

A maioria das crian�as afetadas pela Covid tem comorbidades - doen�as existentes como diabetes ou doen�as cardiovasculares - ou est� acima do peso, de acordo com Lohanna Tavares, infectologista pedi�trica do Hospital Infantil Albert Sabin em Fortaleza.
Mas esse n�o foi o caso de Lucas.
Durante os 33 dias em que Lucas ficou na UTI, Jessika s� teve permiss�o para v�-lo tr�s vezes. Lucas precisava de imunoglobulina - um medicamento muito caro - para desinflamar seu cora��o, mas felizmente um paciente adulto que comprou a sua pr�pria doou uma ampola restante para o hospital. Lucas estava t�o doente que recebeu uma segunda dose de imunoglobulina. Ele desenvolveu uma erup��o cut�nea e estava com febre persistente. O menino precisava de ajuda para respirar.

Ent�o, Lucas come�ou a melhorar e os m�dicos decidiram tirar seu tubo de oxig�nio. Eles ligaram para Jessika e Israel para que ele n�o se sentisse sozinho ao recuperar a consci�ncia.
"Quando ele ouviu nossas vozes, come�ou a chorar", diz Jessika.
Foi a �ltima vez que o casal viu o filho. Durante a videochamada seguinte, "ele tinha uma apar�ncia paralisada". O hospital solicitou uma tomografia computadorizada e descobriu que Lucas havia sofrido um derrame.
Mesmo assim, Jessika e Israel foram informados que Lucas se recuperaria e logo seria transferido da UTI para uma enfermaria geral.

'� importante que m�dicos fa�am teste'
Quando Jessika e Israel foram visit�-lo, o m�dico estava t�o esperan�oso quanto o casal, conta ela.
"Naquela noite, coloquei meu celular no modo silencioso. Sonhei que Lucas veio at� mim e beijou meu nariz. E o sonho foi um grande sentimento de amor, gratid�o e acordei muito feliz. A� acordei e vi as 10 liga��es que o m�dico fez."
O m�dico disse a Jessika que a frequ�ncia card�aca e os n�veis de oxig�nio de Lucas ca�ram repentinamente, e ele morreu pela manh�.
Jessika tem certeza de que, se Lucas tivesse feito um teste para diagnosticar covid quando ela o solicitou, no in�cio de maio, seu filho teria sobrevivido.
"� importante que os m�dicos, mesmo que acreditem que n�o seja covid, fa�am o exame para eliminar essa possibilidade", argumenta.
"Um beb� n�o diz o que est� sentindo, ent�o dependemos de testes."

Jessika acredita que a demora no tratamento adequado agravou seu quadro. "Lucas tinha v�rias inflama��es, 70% do pulm�o estava comprometido, o cora��o aumentou 40%. Era uma situa��o que poderia ter sido evitada".
Manuela Monte, que tratou de Lucas, concorda. Ela diz que embora a SIM n�o possa ser evitada, o tratamento tem muito mais sucesso se a doen�a for diagnosticada e tratada precocemente.
"Quanto mais cedo ele tivesse recebido cuidados especializados, melhor", diz ela. "Ele chegou ao hospital j� gravemente doente. Acredito que o resultado poderia ter sido diferente se pud�ssemos t�-lo tratado mais cedo."
Jessika agora quer compartilhar a hist�ria de Lucas para ajudar outras pessoas que podem n�o perceber os sintomas cr�ticos da doen�a em crian�as.
"Todas as crian�as que eu conhe�o foram salvas por algum aviso e a m�e diz: 'Eu vi seus posts, levei meu filho para o hospital e ele est� em casa agora.' � como se fosse um pouquinho do Lucas", diz ela.
"Tenho feito por essas pessoas o que gostaria que tivessem feito por mim. Se eu tivesse informa��es, teria sido ainda mais cautelosa."

Para Marinho, da Vital Strategies, h� um equ�voco de que as crian�as s�o "imunes" � covid. Ela coordenou um estudo que mostrou um n�mero assustadoramente alto de crian�as e beb�s afetados pelo v�rus.
Entre fevereiro de 2020 e 15 de mar�o de 2021, a covid-19 matou pelo menos 852 crian�as brasileiras de at� nove anos, incluindo 518 beb�s menores de um ano, segundo dados do Minist�rio da Sa�de. Mas Marinho diz que esse n�mero �, na verdade, muito maior - foram pelo menos 2 mil. A culpa das subnotifica��es recai na falta de testes da covid, assinala.
Marinho calculou o excesso de mortes por s�ndrome respirat�ria aguda n�o especificada durante a pandemia e descobriu que havia 10 vezes mais mortes por s�ndrome respirat�ria n�o-especificada do que nos anos anteriores. Ao somar esses n�meros, ela estima que o v�rus de fato matou 2.060 crian�as menores de nove anos, incluindo 1.302 beb�s.

Por que isso est� acontecendo?
Especialistas dizem que o grande n�mero de casos de covid no pa�s - o terceiro maior n�mero do mundo - aumentou a probabilidade de beb�s e crian�as pequenas no Brasil serem afetadas.
"Claro que quanto mais casos tivermos e, por consequ�ncia, mais hospitaliza��es, maior � o n�mero de mortos em todas as faixas et�rias, incluindo crian�as. Mas se a pandemia estivesse controlada, esse cen�rio poderia evidentemente ser minimizado", diz � BBC News Brasil Renato Kfouri, presidente do Departamento Cient�fico de Imuniza��es da Sociedade Brasileira de Pediatria.
Essa alta taxa de infec��o sobrecarregou todo o sistema de sa�de brasileiro. Por todo o pa�s, o suprimento de oxig�nio est� diminuindo, h� uma escassez de medicamentos b�sicos e em muitas UTIs por todo o pa�s simplesmente n�o h� mais leitos.

O presidente Jair Bolsonaro continua a se opor ao lockdown e a taxa de infec��o est� sendo impulsionada pela variante P.1 que surgiu em Manaus, no Amazonas, no ano passado, e � considerada muito mais contagiosa. Duas vezes mais pessoas morreram no m�s passado do que em qualquer outro m�s da pandemia, e a tend�ncia de aumento continua.
Outro problema que impulsiona as altas taxas em crian�as � a falta de testes.
Marinho diz que para as crian�as muitas vezes o diagn�stico de covid chega tarde, quando j� est�o gravemente doentes. "Temos um problema s�rio na detec��o de casos. N�o temos exames suficientes para a popula��o em geral, menos ainda para as crian�as. Como h� um atraso no diagn�stico, h� um atraso no atendimento � crian�a", afirma.
Isso n�o ocorre apenas porque h� pouca capacidade de testagem, mas tamb�m porque � mais f�cil n�o perceber, ou diagnosticar erroneamente, os sintomas de crian�as que sofrem de covid-19, j� que a doen�a tende a se apresentar de forma diferente em pessoas mais jovens.

"Uma crian�a com covid tem muito mais diarreia, muito mais dor abdominal e dor no peito do que o quadro cl�ssico nos adultos. Como h� um atraso no diagn�stico, quando a crian�a chega ao hospital, j� est� em estado grave e pode acabar tendo complica��es - e morrendo", diz ela.
Mas as mortes de crian�as tamb�m est�o ligadas � pobreza e ao acesso � sa�de.
Um estudo observacional de 5.857 pacientes com covid-19 com menos de 20 anos , realizado por pediatras brasileiros liderados por Braian Sousa, ligado � Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (USP), e com supervis�o de Alexandre Ferraro, identificou comorbidades e vulnerabilidades socioecon�micas como fatores de risco para as mortes de crian�as pela doen�a.
Marinho concorda que esse � um fator importante. "Os mais vulner�veis s�o as crian�as negras e as de fam�lias muito pobres, porque t�m mais dificuldade em obter ajuda. Essas s�o as crian�as com maior risco de morte".
Em sua vis�o, isso ocorre porque as condi��es de moradia superlotadas impossibilitam o distanciamento social quando infectados e porque as comunidades mais pobres n�o t�m acesso a uma UTI local.
Essas crian�as tamb�m correm o risco de desnutri��o, o que � "p�ssimo para a resposta imunol�gica", diz Marinho. Quando o aux�lio emergencial terminou, milh�es voltaram para a pobreza. "Passamos de 7 milh�es para 21 milh�es de pessoas abaixo da linha da pobreza em um ano. Portanto, as pessoas tamb�m est�o passando fome. Tudo isso est� afetando a mortalidade".
Sousa diz que seu estudo identifica certos grupos de risco entre as crian�as que devem ser priorizados para vacina��o. Atualmente, n�o h� vacinas dispon�veis para crian�as menores de 16 anos.

As visitas de familiares �s crian�as em UTI foram restritas desde o in�cio da pandemia, por medo de infec��o.
Cinara Carneiro, pediatra da UTI do Hospital Infantil Albert Sabin, diz que isso tem sido um grande desafio, n�o apenas porque os pais s�o um conforto para seus filhos, mas porque tamb�m podem ajudar no sentido cl�nico - eles podem dizer quando seu filho est� internado com dor ou sob sofrimento psicol�gico e quando precisam de calmantes em vez de medicamentos.
Ela acrescenta que essa aus�ncia acaba se tornando uma experi�ncia traum�tica para os pr�prios pais quando recebem a not�cia que a condi��o do filho piorou e eles n�o estiveram l� para testemunhar.
"D�i ver uma crian�a morrer sem ver os pais", diz Carneiro.
Na tentativa de melhorar a comunica��o entre pais e filhos, a equipe do hospital Albert Sabin se reuniu para comprar telefones e tablets para facilitar as chamadas de v�deo.
Carneiro diz que isso ajudou imensamente. "Fizemos mais de 100 videochamadas entre familiares e pacientes. Esse contato reduziu muito o estresse."
Cientistas enfatizam que o risco de morte nessa faixa et�ria ainda � "muito baixo" - os n�meros atuais indicam que 0,58% das mais de 360 mil mortes de covid no Brasil at� agora foram de 0-9 anos - mas isso significa mais de 2 mil crian�as.

"Os n�meros s�o realmente assustadores", diz Carneiro.
Quando procurar ajuda
Embora crian�as possam contrair a covid-19, raramente desenvolvem o quadro grave da doen�a.
Mas o Royal College of Paediatrics and Child Health, a associa��o de m�dicos pediatras do Reino Unido, aconselha os pais a procurarem ajuda urgente se a crian�a:
- Apresentar apar�ncia p�lida, com manchas e sensa��o de frio anormal ao toque
- Ter pausas na respira��o (apn�ias), um padr�o respirat�rio irregular ou come�arem a grunhir
- Ter dificuldade para respirar, ficando agitados ou sem resposta
- Apresentar colora��o azul na boca
- Ter espamos ou convuls�es
- Ficar extremamente angustiada (chora sem parar apesar da distra��o), confusa, muito let�rgica (dif�cil de acordar) ou sem resposta
- Desenvolver uma erup��o cut�nea que n�o desaparece com a press�o (o 'teste do copo')
- Ter dor nos test�culos, especialmente em meninos adolescentes
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!