
Ferreira Netto tinha uma grande fortuna: 3 mil contos de r�is (cerca de R$ 400 milh�es em valores atuais), distribu�dos em in�meras fazendas, armaz�ns comerciais, sociedade em empresas lucrativas, e centenas de pessoas negras escravizadas em suas propriedades.
Em uma linha de seu testamento, publicado em um jornal um ano antes, o comendador fez um pedido comum entre grandes propriet�rios de escravos da �poca: depois de sua morte, ele gostaria que todos fossem libertados. A "alforria post mortem" era vista como uma esp�cie de "reden��o moral e de consci�ncia", pois, ao final da vida, os escravocratas tamb�m queriam garantir um espacinho no c�u.
Ao ler a not�cia, Luiz Gama procurou saber se a vontade do morto havia sido cumprida: as 217 pessoas escravizadas pelo comendador tinham sido libertadas como determinava o testamento? Logo descobriu que n�o, como ocorria com frequ�ncia em documentos do tipo. A fam�lia e alguns s�cios brigavam pelos bens, mas os cativos continuaram na mesma situa��o.
O advogado, em in�cio de carreira, decidiu acionar a Justi�a para que a liberdade e a vontade do empres�rio fossem respeitadas. O processo judicial que se seguiu, conhecido nos jornais da �poca como "Quest�o Netto", � apontado por historiadores consultados pela BBC News Brasil como a maior a��o coletiva de liberta��o de escravizados conhecida nas Am�ricas. Por ora, n�o h� registro de processo que envolva mais pessoas, segundo eles.

Essa a��o de Luiz Gama foi encontrada recentemente pelo historiador Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em Hist�ria e Teoria do Direito pelo Max Planck Institute, em Frankfurt, na Alemanha.
A pe�a de mais de mil p�ginas - toda escrita � m�o - estava armazenada no Arquivo Nacional e n�o h� registros de que ela tenha sido analisada em profundidade. "N�o h� grandes registros desse processo na historiografia sobre Luiz Gama. Encontrei cita��es nas d�cadas seguintes ao processo e uma uma nota de rodap� num livro dos anos 1990", diz Lima, que h� mais de uma d�cada pesquisa a vida e a obra do abolicionista.
Lima fez uma c�pia do processo e a levou para a Alemanha, onde passou meses decifrando as v�rias caligrafias presentes no calhama�o. "Logo identifiquei a letra de Gama, que era de mais f�cil leitura. Mas havia v�rias outras, como a de escriv�es, promotores e ju�zes", explica.
A an�lise do processo agora far� parte da tese de doutorado que o historiador vai apresentar ao final deste ano sobre a obra jur�dica do abolicionista. Al�m desse, a tese contar� com dezenas de outros processos ainda desconhecidos, diz.
A 'Quest�o Netto'
Lima conta que o processo passou a correr em Santos, litoral sul de S�o Paulo, por causa de uma pendenga judicial do comendador Ferreira Netto com um s�cio da cidade. Inicialmente, Luiz Gama se apresentou ao juiz da comarca apenas como um interessado no caso.
"Ele fez uma peti��o ao juiz de maneira bastante escorregadia, porque ele n�o era parte naquela briga judicial pela heran�a. Ele entra no processo como um cidad�o que queria saber o que aconteceu com os escravizados. O juiz respondeu que eles precisavam de um representante", diz.
A princ�pio, Gama n�o foi nomeado "curador" dos interesses do grupo, mas, depois de outros cidad�os se recusarem a participar da a��o, ele foi indicado pelo pr�prio juiz para assumir a tarefa.
O abolicionista n�o sabia quem estava representando de fato, mas mandou emiss�rios para descobrir os nomes, idades e h� quanto tempo pertenciam ao comendador.
No total, havia 217 escravizados nas propriedades do fidalgo - gente de Angola, Mo�ambique, Congo, entre outras na��es africanas. "Gama recebe informa��es com nome, idade, naturalidade, hist�rias de vida. Havia fam�lias inteiras nas fazendas", diz Lima.
Mas como garantir que o direito � liberdade, rec�m-conquistado com a morte do comendador, fosse garantido? Lima acredita que a "Quest�o Netto" tenha sido o primeiro grande processo de liberdade de Luiz Gama, que, na �poca, havia sido demitido de um cargo na pol�cia.
Quem era Luiz Gama?
Nascido em 1830 em Salvador, Luiz Gama teve de lidar com a escravid�o desde cedo. Sua m�e era uma mulher negra e seu pai, um fidalgo de origem portuguesa.

"A vida dele foi singular em todos os aspectos. Muitos historiadores acreditam que ele era filho de Luiza Mahin, uma guerreira que participou de v�rias revoltas negras na Bahia", diz Zulu Ara�jo, presidente da Funda��o Pedro Calmon e ex-presidente da Funda��o Palmares durante o governo Lula.
"Mas n�o h� certeza de que Mahin era sua m�e mesmo ou se foi uma hist�ria inventada por Gama. O fato � que a m�e dele desapareceu, e ele foi criado pelo pai."
Aos 10 anos, Gama foi vendido pelo pr�prio pai a um contrabandista do Rio de Janeiro, que logo o repassou a um fazendeiro paulista. O dinheiro da venda serviria para o pai saldar uma d�vida de jogo. Na adolesc�ncia, ele foi escravizado, mas, com 18 anos, conseguiu provas de sua liberdade e fugiu do cativeiro.
Aprendeu a ler e escrever, foi poeta e trabalhou como jornalista, tip�grafo e escriv�o de pol�cia, onde passou a lidar diariamente com a legisla��o.
Autodidata, o jovem tentou cursar Direito na tradicional Faculdade do Largo S�o Francisco, mas foi rejeitado pela elite que comandava a institui��o. Ele s� ganharia o t�tulo oficial de advogado, dado pela OAB, em 2015, quando sua morte completou 133 anos.
"Gama era uma pessoa 'improv�vel' para a �poca, porque era negro e pobre. Ele aprende o Direito na pr�tica, trabalhando na pol�cia e frequentando a biblioteca particular de Furtado de Mendon�a, chefe da pol�cia e amigo que o protegia", explica T�mis Parron, professor de Hist�ria do Brasil da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Commun (N�cleo de Estudos de Hist�ria Comparada Mundial).
"A grande sacada dele foi perceber a centralidade do Direito na luta abolicionista e como estrat�gia para destruir a escravid�o. O ativismo jur�dico tinha sido muito importante para o abolicionismo na Inglaterra e nos Estados Unidos. Ele o trouxe para o Brasil. Gama percebeu que a pr�pria legisla��o podia ser usada contra os senhores", diz Parron.
Estima-se que o advogado tenha conseguido libertar centenas de escravizados com a��es na Justi�a - h� centenas de processos de liberdade com seu nome no arquivo do Tribunal de Justi�a de S�o Paulo, material em boa parte desconhecido da historiografia. Muitas vezes, ele trabalhava de gra�a.
Mas como ele conseguia libertar tantas pessoas?
Primeiro, � preciso voltar um pouco no tempo. Em 7 de novembro de 1831, pressionado pela Inglaterra, o Imp�rio brasileiro assinou uma lei que proibia o tr�fico de africanos ao Brasil. Ou seja, a partir daquele momento, qualquer africano trazido ao pa�s deveria ser libertado imediatamente.

Mas isso n�o aconteceu na pr�tica. Embora embarca��es inglesas patrulhassem a costa brasileira em busca de navios negreiros, o contrabando era bastante comum no pa�s - essa discrep�ncia entre o que estava na lei e a vida real fez com que a norma ganhasse o apelido de "lei para ingl�s ver".
Estima-se que mais de 700 mil africanos foram trazidos ilegalmente para o Brasil entre 1831 e 13 de maio de 1888, quando a escravid�o foi finalmente abolida pela Lei �urea. Em todo o per�odo de escravid�o, foram cerca cinco milh�es de pessoas.
Luiz Gama passou a atuar em casos de pessoas contrabandeadas ao pa�s depois dessa legisla��o. "Ele reunia provas para demonstrar que, se a pessoa tinha nascido na �frica e foi trazida ao Brasil depois de 1831, ela fatalmente foi traficada e sua condi��o de escravizada era ilegal. Esse foi um dos argumentos que ele utilizou para conseguir libertar centenas de pessoas", conta Bruno Lima.
Segundo T�mis Parron, o tr�fico negreiro ocorria com o consentimento e a participa��o do Imp�rio, que dependia da economia escravista. "Para existir e atuar, o crime organizado precisa da participa��o ou da anu�ncia de alguma esfera da burocracia estatal", diz.
"O que Gama fez com seu ativismo foi escancarar que o Estado e o escravismo brasileiros, al�m de roubarem os direitos naturais e inalien�veis do homem, eram literalmente ladr�es e criminosos, pois burlavam a lei que eles pr�prios criaram", completa Parron.

Liberdade, vidas perdidas
Luiz Gama apresentou uma tese jur�dica bastante simples, por�m in�dita, para tentar ganhar a a��o contra a fam�lia e os s�cios do comendador Ferreira Netto, que queriam manter a propriedade de seus 217 cativos.
"Ele teve a sacada de usar a voz do senhor de escravos como argumento jur�dico contra ele pr�prio. O testamento havia sido publicado em vida na imprensa.
Ent�o, a estrat�gia dele foi a seguinte: se o pr�prio comendador escreveu que gostaria que os escravizados fossem libertados, por que eles ainda n�o estavam livres?", conta Bruno Lima.
Ou seja, o advogado argumentou que, quando Ferreira Netto morreu, os cativos ficaram livres imediatamente, pois o testamento assim o pregava. Para Gama, o papel da Justi�a no caso n�o seria conceder a liberdade aos escravizados, mas devolv�-la a eles.
"Ele para de usar a palavra 'escravo' no processo, chama-os de libertandos. Na �poca, havia o crime de redu��o de uma pessoa livre � condi��o de escravizado. Isso n�o era permitido pela lei. Ent�o, Gama inverte o jogo, mostrando ao juiz que a fam�lia do comendador estava cometendo um crime ao escravizar pessoas que j� eram declaradas livres. � um argumento meticuloso e muito bem pensado", explica Lima.
Os herdeiros da heran�a, temendo perder um bem t�o valioso, contrataram um advogado renomado para represent�-los no tribunal: Jos� Bonif�cio, poeta rom�ntico, professor de Direito no Largo S�o Francisco, conhecido como "o Mo�o".
Segundo o historiador, a ideia da fam�lia era ter como defensor um advogado que n�o fosse identificado com a escravid�o. Bonif�cio era um pol�tico liberal e abolicionista. De fato, anos depois do caso, ele participaria como senador da campanha pelo fim do regime. No processo do comendador, por�m, defendeu os escravocratas.
Curiosamente, o argumento jur�dico de Bonif�cio, que contestou o trecho do testamento que libertava os cativos, come�ava de maneira um pouco culpada: "Sem opor-me � liberdade, mas…".

Para Lima, ao longo do processo, Bonif�cio "jogou sua imagem de abolicionista no lixo". "Se ele come�ou escrevendo que n�o se opunha � liberdade, no restante da a��o agiu como um escravocrata confesso, defendendo de maneira ensandecida a fam�lia do comendador", aponta o historiador.
No auge do processo, quando a causa ganhou repercuss�o em jornais da corte, Luiz Gama contou estar sofrendo amea�as de morte. Mencionou o fato em dois textos escritos em uma mesma semana de setembro de 1870, quando houve uma audi�ncia importante do caso:
Ao jornal Correio Paulistano, revelou uma trama da chefia da pol�cia para mat�-lo. J� em uma carta ao filho, que tinha apenas 11 anos na �poca, escreveu o seguinte: "Lembra-te de escrevi essas linhas em momento supremo, sob amea�a de assassinato."
Por�m, apesar da press�o da elite escravocrata, o juiz de Santos deu ganho de causa ao argumento de Gama, em tese libertando os 217 cativos. Mas Bonif�cio apelou a outras inst�ncias no interior de S�o Paulo, numa chicana jur�dica que prolongou o processo e adiou a liberta��o das v�timas.
Em 1872, o julgamento do m�rito finalmente chegou ao Supremo Tribunal de Justi�a, a �ltima inst�ncia, no Rio de Janeiro. No tribunal, Gama foi representado por um amigo, o advogado Saldanha Marinho, pois a corte n�o aceitava sua atua��o fora de S�o Paulo. O abolicionista escreveu a sustenta��o final, apresentada por Marinho, e acompanhou o julgamento no pal�cio da Justi�a.
Os ministros concordaram com a tese de Gama, mas a vit�ria n�o foi completa. Eles determinaram um prazo de 12 anos para a liberta��o dos 217 escravizados a partir da feitura do testamento, de 1866. Ou seja, os cativos tiveram que prestar servi�os for�ados para os herdeiros do comendador at� 1878, quando finalmente foram libertados.

"Essa liberdade condicional foi uma derrota para Gama, mas a vit�ria dele no m�rito da causa, uma alforria coletiva, foi uma coisa escandalosa para a �poca. Isso nunca tinha acontecido no Brasil. S�o rar�ssimas as liberta��es coletivas no sistema escravocrata das Am�ricas, o que dir� de uma alforria de 217 pessoas", explica Lima.
A vit�ria hist�rica de Gama na maior corte do pa�s n�o foi noticiada com destaque na imprensa paulista, bastante ligada a fazendeiros escravocratas. Temia-se que a repercuss�o da hist�ria pudesse gerar novos processos. "Saiu apenas uma pequena nota em um jornal, e ela s� informava o final da causa", diz o historiador.
Ao final do prazo, em 1878, um jornal paulista noticiou uma grande festa em comemora��o pela liberta��o dos cativos do comendador Ferreira Netto. No entanto, das 217 pessoas representadas por Gama, apenas 130 ainda estavam vivas para gozar a liberdade finalmente conquistada, segundo a publica��o.
"No fim das contas, Gama n�o se sentiu vitorioso, talvez por isso ele pouco tenha falado dela depois. Mesmo tendo ganho o m�rito, 80 vidas foram perdidas", diz Lima.
Maior a��o coletiva
A "Quest�o Netto" foi a maior causa de liberta��o defendida por Luiz Gama. Segundo Bruno Lima, ela chegou a ser citada brevemente por historiadores nas d�cadas seguintes, mas caiu no esquecimento.
A segunda maior a��o de Gama, por exemplo, tinha 18 pessoas, e correu em Pindamonhangaba, interior de S�o Paulo. Portanto, dado que o advogado foi o maior ativista do abolicionismo jur�dico do pa�s, o caso dos 217 cativos pode ser o maior processo do tipo na hist�ria do Brasil.
O historiador T�mis Parron, da UFF, vai mais longe: o catatau encontrado e analisado por Bruno Lima pode ser a maior a��o coletiva de liberta��o de escravizados conhecida nas Am�ricas at� hoje.
"Nos Estados Unidos e no restante da Am�rica, os processos de alforria eram bem distintos. Nos EUA, por exemplo, a alforria n�o dependia apenas da vontade do senhor, como no Brasil, mas sim da autoriza��o de v�rias inst�ncias da burocracia estatal. Era dif�cil ter a��es coletivas. Nunca li nada na historiografia do abolicionismo sobre um processo que envolvesse tantas pessoas", diz.
Para Lima, a descoberta abre brechas importantes nas pesquisas sobre o abolicionismo brasileiro e sobre a trajet�ria de um de seus maiores expoentes. Em seu doutorado, ele analisa principalmente os argumentos jur�dicos das partes, mas outros aspectos da a��o ainda podem ser pesquisados.
"H� muito a se estudar ainda sobre esse processo: quem eram esses escravizados? O que aconteceu com eles depois? Outro ponto � que ele joga luz sobre a figura de Jos� Bonif�cio, visto historicamente como um grande abolicionista, mas que na a��o defendeu escravocratas de maneira bastante enf�tica", aponta o historiador.
Apagamento
Existem algumas biografias sobre Luiz Gama, mas sua obra completa e sua atua��o como advogado ainda n�o s�o de todo conhecidas. H� diversas raz�es para explicar os motivos desse esquecimento.
"Primeiro, existe um problema estrutural da pesquisa acad�mica no Brasil que � o subfinanciamento. � uma vergonha que a obra de Luiz Gama n�o esteja toda publicada. Se ele fosse americano, dada a sua import�ncia hist�rica, tudo o que ele escreveu j� estaria na vig�sima edi��o. Qualquer assunto da hist�ria do Brasil ainda � um terreno a se desbravar", diz T�mis Parron.
Para ele, outro problema afeta os estudos sobre o abolicionismo. "Com o racismo estrutural e o negacionismo em rela��o � escravid�o e �s desigualdades sociorraciais, n�o � dif�cil entender por que esse grande abolicionista da hist�ria mundial n�o tem sua obra estudada no pa�s", completa.
J� Zulu Ara�jo, ex-presidente da Funda��o Palmares e doutorando em Rela��es Internacionais pela Universidade Federal da Bahia, acredita que a elite brasileira tentou "branquear" a hist�ria ao associar o fim da escravid�o apenas � Princesa Isabel, que assinou a Lei �urea em 1888, e n�o ao trabalho incessante dos abolicionistas.
"Tentou-se apagar a escravid�o da hist�ria do pa�s com a assinatura de uma senhora da elite. Esse tipo de narrativa apaga a participa��o popular no processo abolicionista e as lideran�as que tinham origem popular, como Luiz Gama", diz. "Ele era um negro que viveu todas as inst�ncias da escravid�o: nasceu livre, foi vendido pelo pr�prio pai, tornou-se escravo e depois se libertou para defender outros escravizados."
Segundo Zulu, o movimento negro, depois dos anos 1970, escolheu Zumbi dos Palmares como seu maior s�mbolo na luta contra o racismo. "Para se contrapor � Princesa Isabel, escolheu-se uma figura guerreira como refer�ncia. Foi uma escolha hist�rica. Acredito que hoje, com o maior acesso da popula��o negra �s universidades, outras pessoas importantes voltar�o a ser estudadas. Acredito que uma das sa�das para o movimento � resgatar outros s�mbolos da nossa hist�ria, como Luiz Gama", diz.
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