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Estado de Minas ENTENDA

Cloroquina foi indicada contra chikungunya, mas n�o serve contra COVID?

Recomenda��o desse medicamento para a doen�a viral transmitida por mosquitos � usada como justificativa para apoiar o 'tratamento precoce' contra o coronav�rus


08/06/2021 15:41 - atualizado 08/06/2021 16:28


A cloroquina foi (e continua a ser) indicada para tratar alguns quadros específicos de complicação de chikungunya(foto: April Thornberg/Getty Images)
A cloroquina foi (e continua a ser) indicada para tratar alguns quadros espec�ficos de complica��o de chikungunya (foto: April Thornberg/Getty Images)

"A cloroquina foi recomendada pelo Minist�rio da Sa�de na �poca do surto de chikungunya, em 2016. Por que ela n�o pode ser usada agora, contra a COVID-19?" Esse � um dos questionamentos mais frequentes dos apoiadores do chamado "tratamento precoce".


Repetido � exaust�o desde o segundo semestre de 2020, quando as evid�ncias cient�ficas j� apontavam para a inefic�cia do medicamento contra a infec��o causada pelo coronav�rus, essa informa��o ganhou uma "sobrevida" na CPI da Covid, onde senadores e depoentes est�o repetindo o argumento.

Um dos participantes que falou sobre o assunto foi o ex-ministro da sa�de, o general Eduardo Pazuello, na sess�o do dia 19 de maio. "Na crise da chikungunya, em 2017, o Minist�rio da Sa�de criou protocolos para uso da cloroquina — eu tenho todos eles — em altas doses", afirmou.

A mensagem foi refor�ada dias depois pela m�dica Mayra Pinheiro, secret�ria do Minist�rio da Sa�de: "Ela [a cloroquina] j� foi usada em outras doen�as e o pr�prio Minist�rio da Sa�de j� recomendou para doen�as virais, para as arboviroses. Eu trouxe para o senhor um protocolo de chikungunya em que o Minist�rio da Sa�de preconiza".

No dia 1º de junho, o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) insistiu no t�pico. "Chikungunya, que vossa senhoria tamb�m sabe, � um v�rus e � combatido com hidroxicloroquina. Portanto, n�o tem por que dizer que n�o tem efici�ncia nenhuma o tratamento", declarou.

Essas e outras falas, no entanto, n�o trazem o contexto necess�rio para entender a situa��o: a cloroquina (ou hidroxicloroquina) n�o foi usada contra o chikungunya como um antiviral. O racioc�nio da prescri��o seguiu uma outra l�gica e, ali�s, o medicamento continua a ser indicado at� hoje para alguns pacientes que sofreram com essa doen�a — s� que em situa��es bastante espec�ficas.

O que � a chikungunya

A ci�ncia conhece o v�rus chikungunya desde a d�cada de 1950, quando os primeiros casos foram relatados na �frica. Ele � transmitido a partir da picada dos mosquitos Aedes aegypti ou Aedes albopictus.

A primeira epidemia foi registrada na Tanz�nia em 1953. O nome chikungunya, ali�s, vem da l�ngua maconde, que � falada no pa�s, e significa "contorcer-se" ou "dobrar-se". � uma refer�ncia direta a uma das caracter�sticas mais marcantes da enfermidade: as fortes dores nas articula��es e nos m�sculos que fazem o paciente ficar encolhido. Em muitos casos, os inc�modos podem se prolongar por meses a fio, mesmo quando a virose j� est� curada.


O vírus do chikungunya é transmitido através da picada do mosquito 'Aedes aegypti'(foto: Joao Paulo Burini/Getty Images)
O v�rus do chikungunya � transmitido atrav�s da picada do mosquito 'Aedes aegypti' (foto: Joao Paulo Burini/Getty Images)

No Brasil, os primeiros casos da doen�a foram detectados a partir de 2010. Mas o problema explodiu mesmo seis anos depois, quando o pa�s registrou mais de 265 mil casos prov�veis de chikungunya, um n�mero seis vezes maior do que o total de diagn�sticos registrado no ano anterior.

Os casos s�o considerados prov�veis porque os testes pra confirmar o diagn�stico n�o estavam amplamente dispon�veis na �poca, ent�o, a doen�a foi caracterizada a partir da identifica��o dos seus sintomas no paciente.

E essa condi��o continua a ser um tormento: segundo o boletim epidemiol�gico mais recente do Minist�rio da Sa�de, referente ao per�odo entre 3 de janeiro e 22 de maio, o Brasil registrou at� agora em 2021 um total de 32.978 casos prov�veis da infec��o.

O que o Minist�rio da Sa�de recomendou na �poca?

Um documento intitulado "Chikungunya: Manejo Cl�nico", publicado em 2017 pela Secretaria de Vigil�ncia em Sa�de do Minist�rio da Sa�de, traz 14 men��es � hidroxicloroquina, a primeira delas na p�gina 32:

"Apesar de inexist�ncia de estudos de compara��o de efic�cia entre metotrexato e hidroxicloroquina em chikungunya, optamos por recomendar no tratamento desta fase a hidroxicloroquina como primeira escolha, por seus conhecidos efeitos anti-inflamat�rios no controle da artrite e da dor musculoesquel�tica (BEN-ZVI et al., 2012). Tamb�m h� potencial a��o antiviral (THIBERVILLE et al., 2013,), mas principalmente por ser uma droga mais segura quando comparada ao uso de metotrexato a ser prescrita por n�o especialistas".

O f�rmaco n�o era portanto indicado na fase aguda de chikungunya, que se prolonga at� 14 dias ap�s a entrada do v�rus no organismo. A sugest�o era utiliza-lo nas fases subaguda (de 14 dias a tr�s meses) e cr�nica (que se arrasta por mais de tr�s meses). Visava-se assim combater n�o o v�rus diretamente, mas suas consequ�ncias para o organismo — especialmente aquela dor insuport�vel.


Tabela presente no documento do Ministério da Saúde, publicado em 2017, atesta que a hidroxicloroquina foi utilizada como tratamento na fase subaguda ou crônica da chikungunya(foto: Divulgação)
Tabela presente no documento do Minist�rio da Sa�de, publicado em 2017, atesta que a hidroxicloroquina foi utilizada como tratamento na fase subaguda ou cr�nica da chikungunya (foto: Divulga��o)

A reumatologista Claudia Marques, gerente de pesquisa e ensino do Hospital das Cl�nicas da Universidade Federal de Pernambuco, se recorda daquelas semanas de 2016 e 2017 e do aumento repentino no n�mero de pacientes com dores, a maioria deles v�tima de chikungunya.

Diante de uma situa��o absolutamente nova, os m�dicos precisaram apelar para a experi�ncia e o conhecimento acumulados com outras enfermidades. "A classe dos antimal�ricos, do qual a cloroquina faz parte, � usada h� d�cadas como tratamento de doen�as inflamat�rias cr�nicas, como a artrite reumatoide e o l�pus", relata.

A m�dica, que tamb�m representa a Sociedade Brasileira de Reumatologia, acrescenta que esse medicamento tem um papel imunomodulador — ou seja, ajuda a controlar o sistema de defesa do nosso corpo.

Nas doen�as autoimunes, o sistema imunol�gico sofre algum desajuste e passa a atacar estruturas do pr�prio organismo. Na artrite reumatoide, sobra para as articula��es. No l�pus, s�o as juntas, a pele, os rins, o c�rebro… Para evitar que as les�es se agravem ainda mais, os especialistas lan�am m�o das tais drogas imunomoduladoras. Na maioria das vezes, � poss�vel manter o quadro sob controle.

Mas a cloroquina n�o foi usada indiscriminadamente: do total de acometidos por chikungunya, s� 50% evoluem para a fase subaguda, em que as dores articulares s�o a principal manifesta��o — o restante se cura e n�o t�m sintomas articulares. E, mesmo dentro do primeiro grupo, o rem�dio n�o � prescrito para todo mundo.

Marques explica que, na maioria dos casos, os exames n�o encontram uma les�o espec�fica ou um motivo claro para explicar os inc�modos pelo corpo. O melhor caminho terap�utico a seguir, ent�o, � atividade f�sica, alongamento, recupera��o e fisioterapia — e n�o a cloroquina.

"Mas, em cerca de 5% dos pacientes, o v�rus funciona como gatilho para a manifesta��o de uma doen�a autoimune e o desenvolvimento de uma condi��o muito parecida ou igual � artrite reumatoide", explica. � justamente nessa turma bem espec�fica que a cloroquina pode trazer ganhos, ap�s a avalia��o e a prescri��o do m�dico que realiza o acompanhamento.

A cloroquina tem efeito nos v�rus?

No protocolo do Minist�rio da Sa�de de 2017, chama a aten��o o trecho que afirma que "tamb�m h� potencial a��o antiviral" da cloroquina. Ent�o, quer dizer que esse rem�dio pode atuar contra de doen�as causadas por esses agentes infecciosos? Infelizmente, n�o � bem assim...

Depois de entrar em nosso organismo, v�rus como o chikungunya, o zika e o pr�prio Sars-CoV-2 (o coronav�rus respons�vel pela pandemia atual) precisam para invadir nossas c�lulas e dar in�cio � infec��o.

"A cloroquina teria a capacidade de atrapalhar esse processo de entrada dos v�rus na c�lula", detalha a farmac�utica Laura Marise, doutora em bioci�ncias e biotecnologia e cofundadora do projeto de divulga��o cient�fica Nunca Vi 1 Cientista.

Isso tudo foi verificado nos estudos in vitro, em que cientistas analisam a a��o de diferentes subst�ncias em c�lulas isoladas, na bancada dos laborat�rios. O problema come�a quando essas observa��es iniciais s�o submetidas �s pr�ximas fases de pesquisa.

Os estudos in vitro n�o s�o suficientes para comprovar a efic�cia e a seguran�a de uma droga contra determinada doen�a. � justamente para confirmar (ou n�o) esse potencial que os cientistas fazem novos experimentos em cobaias e, posteriormente, passam para os testes cl�nicos, com seres humanos. A situa��o da cloroquina enquanto medicamento antiviral come�a a se complicar justamente nessas etapas.

Vamos usar a chikungunya como exemplo. "Apesar de ter funcionado em c�lulas de laborat�rio, o medicamento n�o conseguiu, por exemplo, diminuir a quantidade desse v�rus no organismo de macacos", informa o biof�sico e virologista R�mulo Neris, doutorando na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

"Seu uso tamb�m n�o causou uma melhora significativa dos sintomas da infec��o nos animais, nem mesmo quando administrado de forma precoce", completa o especialista, que integra a Equipe Halo, projeto da Organiza��o das Na��es Unidas (ONU) que combate a desinforma��o na pandemia.

Estudos similares, envolvendo cobaias e volunt�rios humanos, tamb�m atestaram a inefic�cia da cloroquina contra a COVID-19. � por isso que ela n�o integra as diretrizes e as recomenda��es de tratamento de institui��es como a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS), os Institutos Nacionais de Sa�de dos Estados Unidos e a Sociedade Brasileira de Infectologia.

Como explicar essa diferen�a?

Para entender por que a cloroquina tem bons resultados in vitro e, depois, acumula resultados decepcionantes conforme evolui nas pesquisas, � importante entender que se tratam de contextos completamente diferentes. Uma determinada subst�ncia funcionar em grupo pequeno de c�lulas n�o significa que ela ter� o mesmo comportamento dentro de um organismo como o nosso, cheio de vari�veis e processos intrincados.

"As culturas de c�lulas de laborat�rio n�o representam nem de perto a complexidade de nosso corpo. H� muitas vias metab�licas, e n�o sabemos ao certo se aquela quantidade de rem�dio que tomamos chegar� na concentra��o adequada aonde ele precisa agir", destrincha Neris.

Outro ponto importante: alguns agentes infecciosos, como o pr�prio coronav�rus, podem usar caminhos alternativos para invadir a c�lula que n�o s�o afetados pela cloroquina, deixando o caminho livre para o v�rus sequestrar nossas c�lulas e dar in�cio � infec��o.

Mas o que fez ent�o a cloroquina ser testada como um antiviral em quadros como chikungunya e COVID-19? A resposta est� numa estrat�gia muito tradicional na farmacologia: o reposicionamento de drogas.

Em resumo, os cientistas pegam rem�dios j� testados e aprovados para outras doen�as e avaliam se eles poderiam funcionar contra novas enfermidades. A meta � pular algumas etapas dos testes cl�nicos e acelerar a chegada de poss�veis tratamentos — algo urgente em epidemias.

Seguindo esse rito, a cloroquina foi testada em diversas pesquisas nos �ltimos meses, mas seus resultados n�o convenceram a comunidade cient�fica. Hoje em dia, � consenso entre os especialistas e as institui��es mais importantes da �rea que ela n�o funciona contra a COVID-19.

Seu uso como preventivo ou tratamento precoce nesse contexto, ali�s, pode at� prejudicar a sa�de, dizem alguns cientistas. "No in�cio da infec��o pelo coronav�rus, n�s precisamos que nosso sistema imune esteja preparado para combater o avan�o do quadro", explica Marise.

Como a cloroquina tem um efeito imunomodulador, "ela poderia at� atrapalhar a atua��o de nossas c�lulas de defesa nesse momento importante, no est�gio inicial da COVID-19", sugere a farmac�utica. Essa possibilidade, no entanto, ainda precisa ser melhor estudada e confirmada.

Num ambiente t�o polarizado, Neris lembra que as orienta��es de sa�de p�blica deveriam sempre estar alinhadas � ci�ncia. "Ningu�m odeia a cloroquina. N�s s� queremos que ela seja utilizada nas situa��es em que h� evid�ncias de sua efetividade", finaliza.

Em raz�o das falas da CPI, a BBC News Brasil entrou em contato com as assessorias do senador Luis Carlos Heinze, do Minist�rio da Sa�de e do Ex�rcito Brasileiro (por causa das declara��es de Mayra Pinheiro e Eduardo Pazuello, respectivamente), mas at� o fechamento desta reportagem n�o havia recebido nenhuma resposta.

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