
Crist�o que se tornou soldado com a ideia de ser uma esp�cie de agente-duplo, ou seja, para ajudar outros crist�os condenados pelo Imp�rio Romano, acredita-se que ele tenha sido desmascarado e martirizado — n�o uma, mas duas vezes.
Da primeira, com as tais flechadas que acabaram se tornando caracter�sticas de suas representa��es sacras, acabaria sobrevivendo.
Recuperado, teria decidido tomar satisfa��es com o imperador. Que, novamente, determinou sua execu��o, opera��o esta que ent�o se realizaria de forma exitosa.
Eternizado por relatos hagiol�gicos antigos, logo passou a ser venerado pelos crist�os. Acredita-se que popula��es se livraram de epidemias pelo menos tr�s vezes gra�as a intercess�o dele.
Em 1567, foi num dia de S�o Sebasti�o, 20 de janeiro, que portugueses expulsaram os franceses que dominavam a regi�o do Rio de Janeiro. Da� o santo ter se tornado padroeiro do lugar.
Mais recentemente, o santo foi apropriado por comunidades LGBT, que o transformaram em uma esp�cie de �cone gay.
Quem foi?
Autor do livro S�o Sebasti�o: o M�rtir Que Desafio o Imperador Ao Se Declarar Soldado de Cristo, o padre Jeferson Mengali explica que Sebasti�o foi "um dos muitos soldados romanos" que acabaram "martirizados por sua f� em Jesus". "� uma pena que tudo o que temos sobre esse santo � o que est� nas atas de seu mart�rio, escritas dois s�culos mais tarde", lamenta ele.
"Conta-se que os escribas tinham ordens de colocarem nessas atas detalhes do mart�rio, dando pouca �nfase a hist�ria do martirizado. E isso acontecia para assustar os crist�os, pois essas atas eram colocadas na cidade onde ocorria no mart�rio, para que todos pudessem conhecer as hist�rias e, assim, fosse desestimulada a ades�o ao cristianismo" , explica o sacerdote.

Mengali conta que h� tr�s documentos antigos que fundamentam o que se sabe a respeito da vida de Sebasti�o: a 'Legenda Aurea', o 'Martirologio'— em registro que teria sido feito no ano de 354 — e as 'Acta Santorum'.
Nesses textos, afirma-se que Sebasti�o teria nascido no ano de 250 em Narbonne, cidade do imp�rio romano situada no atual sul da Fran�a. "[Diz-se tamb�m que ele] tinha feito muitos atos de amor e caridade para com os irm�os crist�os", enfatiza o padre bi�grafo.
Conforme pontua Mengali, "os detalhes do mart�rio de Sebasti�o foram elaborados" posteriormente. A primazia do relato � atribu�da a Aur�lio Ambr�sio (340-397), influente religioso que foi arcebispo de Mediolano, atual Mil�o.
Atribui-se a Ambr�sio a autoria de um texto registrado como serm�o de n�mero 20, em que ele analisa o Salmo 118 e inclui a narrativa da morte de Sebasti�o.
"Sebasti�o foi um dos soldados romanos m�rtires e santos, cujo culto nasceu no s�culo 4o. e atingiu seu auge por volta dos s�culos 14 e 15", afirma Mengali.
"Embora os seus mart�rios possam provocar algum ceticismo junto aos estudiosos atuais, certos detalhes s�o consistentes com atitudes de m�rtires crist�os seus contempor�neos."
Ele teria se alistado ao ex�rcito romano no ano de 283, quando vivia onde hoje � MIl�o. "Ascendeu na carreira militar at� se tornar capit�o da guarda do imperador", conta o estudioso de hagiografias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
Segundo Maerki, a "finalidade do ingresso no ex�rcito era justamente ajudar os crist�os que vinham sendo aprisionados". "Ele trabalhava para auxiliar os perseguidos que estavam presos e se tornariam m�rtires", comenta o pesquisador. "A fama de santidade de Sebasti�o come�ou a partir disso."
Era um per�odo em que ser soldado significava muito em termos de status social. "Ele se tornou uma esp�cie de modelo de soldado crist�o, com uma �tica, uma moral verdadeira no aux�lio aos perseguidos e, numa atualiza��o contempor�nea, aux�lio �queles que sofrem", analisa Maerki.
As hagiografias antigas atribuem ao imperador Diocleciano (244-311) a descoberta da f� de Sebasti�o e sua condena��o � morte. "Segundo a ata do mart�rio do santo, escrita entre os s�culo 4o. e 5o., Diocleciano teria afirmado algo como 'eu o tive entre os grandes no meu pal�cio e voc� agia contra mim'", relata Maerki. "Sebasti�o escondia isso, que era crist�o, do imperador. Ele ajudava os crist�os prisioneiros �s escondidas."
Duplo mart�rio
Os documentos antigos narram que a sua condena��o teria sido morrer por flechadas. "A hist�ria � que o imperador mandou que ele fosse pendurado em um poste de madeira para ser torturado com flechadas at� a morte", diz o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontif�cia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma.
"Da� vem a imagem popular at� hoje, de um santo com as flechas pelo corpo", acrescenta ele.
"A imagem de S�o Sebasti�o, t�o conhecida de todos n�s, revela um momento importante do mart�rio deste grande santo", complementa Mengali. "A reprodu��o do mart�rio de S�o Sebasti�o, amarrado a uma �rvore e atravessado por flechas, � uma imagem milhares de vezes retratada em quadros, pinturas e esculturas por artistas de todos os tempos."
� poss�vel tra�ar uma analogia, portanto, com a pr�pria crucifica��o de Jesus. Nesse sentido, Sebasti�o teria sofrido tamb�m uma "paix�o", como se diz no meio religioso - isto �, um sofrimento que deveria resultar em morte. "Mas ele n�o morreu nessa tortura", conta Domingues.
"O supl�cio das flechas n�o lhe tirou a vida, resguardada pela f� em Cristo. As flechas de S�o Sebasti�o nos revelam a primeira fase das torturas que o santo enfrentou. Tendo como carrasco seus companheiros de ex�rcito, S�o Sebasti�o suportou v�rias flechadas em seu corpo sem renegar a f�", diz ainda o padre Mengali. "Quando todos pensaram que ele estivesse morto, deixaram-no amarrado para ser devorado pelos animais e aves de rapina."

Mas, fato ou lenda consolidada pelo cristianismo, o soldado teria sobrevivido. "Irene de Roma [uma mulher crist� que depois tamb�m se tornaria santa] acabou recolhendo seu corpo com a finalidade de sepult�-lo. Mas ela percebeu que ele ainda estava vivo", narra Maerki.
"Ela o levou para a casa e come�ou a cuidar dele, tratando as feridas. E ele foi curado, uma cura considerada milagrosa", diz o pesquisador.
Sebasti�o foi ent�o aconselhado por seus amigos a fugir de Roma. "No entanto, ele decidiu procurar o imperador para reafirmar sua f�", relata. "Acabou condenado novamente, desta vez para ser a�oitado at� a morte. Foi um santo que sofreu muito, praticamente um duplo mart�rio." Isso teria ocorrido em 20 de janeiro de 286, da� a data que passou a ser celebrada pelo cristianismo.
Domingues afirma que, para ter certeza de que desta vez ele seria morto, Diocleciano ordenou que o corpo dele fosse jogado na chamada cloaca m�xima, o sistema de esgoto de Roma. "A tradi��o diz que isso foi feito mas que o corpo teria ficado preso numa parte espec�fica e, depois, recuperado pelos crist�os, acabou enterrado nas catacumbas fora do centro da cidade, onde costumavam sepultar alguns crist�os", conta o vaticanista.
"Pouco antes do mart�rio, S�o Sebasti�o teria dito que 'antes de ser oficial do imperador, sou um soldado de Cristo'", diz Maerki. "A frase revela coragem, bravura. Mas � importante ressaltar que assim como a hist�ria de muitos m�rtires dessa �poca, sua vida est� repleta de lendas que se misturam com os fatos e dados ver�dicos."
Protetor contra epidemias
"H� toda uma constru��o [de sua biografia]. H� quem diga, por exemplo, que ele nunca sofreu flechadas, mas sim que a morte teria ocorrido por espancamento. Outras vers�es atestam que ele morreu j� na primeira das condena��es. � muito dif�cil afirmar o que � verdade e o que � lenda", prossegue o hagi�logo. "H� muitas controv�rsias."
O vaticanista Domingues v� uma import�ncia no simbolismo do ocorrido frente � pr�pria evolu��o urban�stica de Roma. "Segundo a tradi��o, ele foi martirizado no Palatino, que naquela �poca era o centro de Roma, a colina onde ficava o pal�cio do imperador", comenta. "Hoje ali est�o as ru�nas do imp�rio e uma igreja dedicada a S�o Sebasti�o, ainda em p�."
"Ou seja: de um lado, o fim daquele poder romano, de outro, a Igreja que resiste por causa do sangue de seus m�rtires", compara o vaticanista.

Por conta de sua hagiografia, Sebasti�o � visto hoje como "um defensor da Igreja, um proclamador da f�". "Justamente por ter sido insistente: teria sobrevivido � primeira tentativa de mart�rio, voltou e n�o fugiu, veio de novo defender aquilo em que acreditava", argumenta Domingues.
Mais tarde, foi � devo��o a S�o Sebasti�o que crist�os apelaram para sobreviver a epidemias.
"Venerado pelos fi�is desde a Antiguidade, muitos milagres s�o atribu�dos a ele, mesmo enquanto ele era vivo", pontua padre Mengali. "No ano de 680, quando suas rel�quias [seus restos mortais] foram transportadas solenemente para uma bas�lica, constru�das por Constantino [imperador romano], cidad�os romanos sofriam com uma peste. A epidemia teria desaparecido na hora da translada��o das rel�quias, e esta � a raz�o porque os crist�os veneram em S�o Sebasti�o o grande padroeiro contra a peste."
H� relatos semelhantes ocorridos em Mil�o, em 1575, e em Lisboa, em 1599, momentos em que, segundo Mengali, "outras epidemias foram debeladas a partir de quando o povo suplicou por sua intercess�o".
"Ele tem essa marca. Talvez dev�ssemos pedir ajuda para ele para sair de nossa situa��o atual", comenta Domingues.
Rio de Janeiro
O santo seria considerado padroeiro e protetor do Rio de Janeiro por conta de um epis�dio hist�rico do Brasil colonial. Quando franceses ocupavam a ba�a de Guanabara e se tornaram aliados dos �ndios tupinamb�s, colonizadores portugueses come�aram a articular uma maneira de expuls�-los.
"Em 1567, os portugueses e seus aliados, o grupo ind�gena rival dos tupinamb�s, os temimin�s, destru�ram a col�nia francesa", diz Mengali.
"Segundo a lenda espalhada oralmente, j� que n�o existe nenhum registro a respeito, S�o Sebasti�o foi visto de espada na m�o entre os portugueses, mamelucos e �ndios temimin�s, lutando contra os franceses calvinistas e ind�genas tupinamb�s, durante a batalha final que expulsou os franceses que ocupavam o Rio", conta o padre.
Batalha esta, vale frisar, que ocorreu no dia dedicado ao santo, 20 de janeiro de 1567.
A devo��o, ent�o, cresceria por l�. No mesmo ano, o militar e governador-geral Est�cio de S� (1520-1567), considerado o fundador da cidade de S�o Sebasti�o do Rio de Janeiro, mandou erguer uma igrejinha a ele, junto ao Morro Cara de C�o, atual bairro da Urca. Era pequena e simples. De taipa, coberta de sap�.
A igreja dedicada ao padroeiro seria feita entre 1578 e 1598. "Em 1922 a Igreja de S�o Sebasti�o foi transferida para uma nova Igreja na Tijuca, a Igreja de S�o Sebasti�o dos Frades Capuchinhos", conta padre Mengali. "Para l� tamb�m foram transferidos em 1931 os restos mortais de Est�cio de S�, o marco de funda��o da cidade, al�m do relic�rio com um fragmento do osso do m�rtir S�o Sebasti�o, juntamente com a imagem do santo trazida de Portugal."
O bi�grafo do santo explica que S�o Sebasti�o "sempre foi o padroeiro do Rio" e isso justifica seu "culto carinhoso por parte dos cariocas". "Nos tempos coloniais e nos da monarquia, a festa de S�o Sebasti�o era celebrada com muito entusiasmo. Havia salva de tiros das fortalezas e dos navios, parada de tropas em grande gala, cerim�nias religiosas com missa solene, repiques de sinos, foguet�rios, dan�as populares em plena rua", conta. "Atualmente, o povo do Rio comemora com missas e prociss�es a data que �s vezes � confundida com a cria��o da cidade, em 1o. de mar�o."
O vaticanista Domingues comenta que essa liga��o entre o m�rtir crist�o e a cidade brasileira � vis�vel inclusive em Roma. "Existe uma tradi��o de o arcebispo do Rio de Janeiro [atualmente, d. Orani Tempesta] celebrar na bas�lica de S�o Sebasti�o [em Roma] em ocasi�es especiais", recorda. "� uma coisa bonita, porque um lan�o concreto e vis�vel com o santo romano, com a igreja romana."

�cone LGBT
Publicado em livro, o ensaio 'Losing His Religion: San Sebastian As A Contemporary Gay Martyr' apresenta o santo como um �cone LGBT. O autor, o pesquisador norte-americano Richard Kaye, PhD pela Universidade de Princeton e professor no Hunter College de Nova York, apresenta-o como um soldado "muito amado" pelos imperadores romanos de seu per�odo, que o queriam sempre por perto.
O autor insinua que o santo poderia ter sido, mais do que guarda pessoal, amante dos imperadores.
A iconografia sacra, sobretudo a partir do Renascimento, passou a represent�-lo como um jovem atl�tico — faz sentido, posto que ele era soldado e foi executado com apenas 30 anos. E, no imagin�rio, mostrado com as flechadas em seu corpo, retratado sempre praticamente nu.
Kaye analisa que essa iconografia crist� "sustenta um ideal homoer�tico", com o personagem "em �xtase", tal e qual um s�mbolo da "natureza supostamente sadomasoquista do erotismo masculino".
Na contemporaneidade, ativistas LGBT tamb�m viram no santo a representa��o de um ideal de luta e persist�ncia — ele era um crist�o que n�o teve medo de se assumir, assim como homossexuais hoje muitas vezes precisam ter coragem para se assumir.
O pesquisador Kaye chega a firmar que os "gays de hoje em dia viram imediatamente em S�o Sebasti�o tanto o an�ncio c�lido do desejo sexual como um exemplo de gay no arm�rio que foi torturado".
Para Maerki, � importante ainda pontuar que S�o Sebasti�o "� o santo masculino mais retratado na hist�ria da arte". "E a imagem cl�ssica de seu corpo, seminu, resplandecendo beleza, se tornou s�mbolo. Historiadores e especialistas como Kaye veem nesse imagin�rio o corpo sendo retratado com um erotismo, uma esp�cie de propaganda do desejo homossexual", analisa.
Segundo ele, os relatos de que Sebasti�o mantinha "uma esp�cie de v�nculo emocional com seus oficiais" e textos que o apresentam como "muito amado pelos imperadores" refor�am essa interpreta��o.
"Talvez tenha sido a jun��o de tudo isso que fez com que a comunidade LGBT acabasse o escolhendo como uma esp�cie de m�rtir gay. E uma analogia � poss�vel: se S�o Sebasti�o foi defensor dos que eram perseguidos, os crist�os perseguidos daquele tempo, que eram torturados e mortos, ele tamb�m desponta na nossa sociedade como um s�mbolo de luta por outra causa", compara Maerki. "Sabemos que a comunidade LGBT muitas vezes � perseguida. Ele surge como um s�mbolo de defesa, de prote��o."
Padre Mengali lembra que a imagem do santo martirizado por flechas � uma constru��o posterior. "Diferente do que as pinturas mostram, S�o Sebasti�o n�o foi morto por flechas. Ele foi resgatado por Santa Irene e espancado at� a morte a mando do imperador Diocleciano, que jogou seu corpo ferido nos esgotos de Roma", enfatiza. "A imagem de seu corpo seminu perfurado por flechas e aguardando o mart�rio foi estabelecida pelos pintores do Renascimento. A propaga��o dessa imagem despertou a imagina��o de v�rios artistas, fazendo de S�o Sebasti�o o santo masculino mais retratado na hist�ria da arte."
Para o bi�grafo, contudo, a coragem que ele teve ao assumir frente ao imperador sua posi��o como crist�o � o que permite um paralelo com os homossexuais de hoje em dia, que muitas vezes tamb�m enfrentam dificuldades semelhantes para declarar sua orienta��o sexual.
Ele percebe, contudo, um curioso ponto consagrado pelo imagin�rio sacro. "Por que S�o Sebasti�o, tendo sido tamb�m soldado e guerreiro, n�o possui a mesma simbologia de virilidade e machismo que o Santo do Drag�o?", pergunta ele.
"Olhando para a imagem de Sebasti�o, vemos uma imagem de fragilidade, passividade; um homem forte, mas indefeso, amarrado a uma �rvore e cheio de flechas", explica Mengali. "S�o Sebasti�o � aquele que ganha as pessoas com a palavra, aquele que convence com o di�logo, a conversa, n�o convence com a luta, como S�o Jorge. S�o Sebasti�o, se observarmos suas biografias antigas, tem poder de persuas�o, para animar crist�os indecisos e converter pag�os.
Nesses tempos de nega��o da f� e de valores espirituais, religiosos, humanos e sociais, S�o Sebasti�o torna-se um grande modelo de ajuda para todos n�s."
Sabia que a BBC est� tamb�m no Telegram? Inscreva-se no canal.
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!