Publica��es compartilhadas mais de 3 mil vezes nas redes sociais em v�rios idiomas desde, pelo menos, fevereiro de 2020 afirmam que as mulheres negras t�m um DNA mitocondrial com “todas as varia��es [gen�ticas] poss�veis para cada tipo de ser humano”, devido � exist�ncia do chamado “Eve Gene”.
“Cientificamente, a mulher negra � o �nico �rg�o que possui o DNA da mitoc�ndria que tem todas as varia��es poss�veis para todos os tipos de seres humanos nesta terra (os africanos, os albinos, os europeus, os do Oriente M�dio, etc.) Quando o DNA de uma mulher negra sofre muta��o, todos os outros tipos de seres humanos ocorrem. Isso � chamado de ‘Eve Gene’ e s� � encontrado em mulheres negras”, dizem publica��es compartilhadas no Facebook (1, 2, 3), no Instagram (1, 2) e no Twitter.
Conte�do similar circulou em espanhol, franc�s, e ingl�s.

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DNA mitocondrial
As mitoc�ndrias s�o “elementos do citoplasma da c�lula animal ou vegetal cuja fun��o essencial � assegurar a oxida��o, a respira��o celular, o armazenamento de energia por parte da c�lula e o armazenamento de certas subst�ncias”, segundo a defini��o do Larousse M�dical.Laurent Duret, diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Cient�fica (CNRS) da Fran�a e membro do laborat�rio de biometria e biologia evolutiva da Universidade de Lyon 1, explicou � equipe de verifica��o da AFP que, assim como o n�cleo de nossas c�lulas, as mitoc�ndrias cont�m �cido desoxirribonucleico (DNA), o portador da informa��o gen�tica. O estudo das mitoc�ndrias, transmitidas exclusivamente pelas m�es, de gera��o em gera��o, permite “tra�ar a genealogia dos indiv�duos por meio da compara��o de seu DNA”, detalhou.
Mas as publica��es viralizadas d�o uma interpreta��o errada, “uma mistura de coisas verdadeiras e falsas”, segundo Evelyn Heyer, professora de antropologia gen�tica no Museu Nacional de Hist�ria Natural (MNHN) de Paris e autora do livro “L'Odyss�e des G�nes” (“A odisseia dos genes”, em tradu��o livre do franc�s).
O “Eve gene” ou “gene Eva” mencionado nas publica��es n�o existe, mas parece se referir � no��o de “Eva mitocondrial”. “O DNA mitocondrial de todos os humanos do planeta descende de uma �nica mitoc�ndria: � o que � chamado de Eva mitocondrial”, explicou Heyer.
A exist�ncia dessa mulher negra, que provavelmente viveu na �frica h� cerca de 200 mil anos, foi estabelecida em 1987 por Rebecca Louise Cann, Mark Stoneking e Allan Charles Wilson em um artigo publicado na revista cient�fica norte-americana Nature.
Os autores chegaram a essa conclus�o ap�s analisar amostras de DNA mitocondrial de 147 pessoas de cinco regi�es diferentes do mundo: �frica, �sia, Austr�lia, Europa e Nova Guin�, no Oceano Pac�fico.
“Hoje em dia, ningu�m carrega as mitoc�ndrias desse ancestral, que sim existia”, disse Duret, do CNRS. “O que carregamos s�o descendentes dessas mitoc�ndrias, que, entretanto, acumularam muta��es”, acrescentou.
Confus�o
O termo “Eva mitocondrial” n�o aparece no artigo de Cann, Stoneking e Wilson. Essa denomina��o, “enganosa” segundo Laurent Duret, nasceu ap�s a publica��o de sua obra.“Foi um erro cham�-lo assim”, disse Heyer. “Se voc� olhar para as mitoc�ndrias de todo o mundo (...), nosso DNA mitocondrial pode se remontar a um ancestral comum, mas isso n�o significa que n�o havia outras pessoas [contempor�neas desse ancestral] naquela �poca”, acrescentou.
Essa mulher � “certamente a �nica que desde ent�o transmitiu suas mitoc�ndrias a todos os demais”, mas o nome de Eva sugere a ideia de um ber�o da humanidade, “sendo que n�o � assim”, resume a cientista.
Os dois cientistas consultados pela AFP destacaram tamb�m que cada fragmento dos nossos cromossomos tem sua pr�pria hist�ria e genealogia. “Cada um de n�s n�o tem apenas um ancestral, mas milhares de ancestrais”, explicou Duret. “Se olh�ssemos outros cromossomos, encontrar�amos outros ancestrais comuns”, por exemplo um “Ad�o Y”, se estiv�ssemos interessados no cromossomo sexual Y, disse.
Ra�zes africanas
Por�m, para Duret, “a inten��o da mensagem [transmitida na publica��o viral] � correta, no sentido de que o que est� claramente estabelecido [cientificamente] � que a nossa esp�cie se originou na �frica”.“Quando se observa o DNA mitocondrial de todos os seres humanos do planeta, procedentes de muitos lugares diferentes, percebe-se que a �frica tem a maior diversidade [desse DNA]”, explicou Heyer. Os tipos de DNA mitocondrial observados fora do continente representam “um subconjunto daqueles encontrados na �frica”.
“A mitoc�ndria que carregava essa ‘Eva mitocondrial’, cada vez que era transmitida de gera��o em gera��o, adquiria muta��es e diversidade gen�tica”, disse Duret. “No primeiro per�odo, nossa esp�cie estava essencialmente confinada na �frica, onde se acumulou a diversidade gen�tica no genoma mitocondrial”, acrescentou.
Em seguida, os humanos migraram para outras partes do mundo, “de forma progressiva; entre 60 mil e 40 mil anos atr�s e, mais recentemente, h� 15 mil anos, para a Am�rica”, explicou Duret.
Portanto, as publica��es viralizadas s�o enganosas: ainda que o DNA das mulheres negras de hoje n�o tenha “todas as varia��es [gen�ticas] poss�veis para cada tipo de ser humano” na Terra e que o “Eve gene” n�o exista, o DNA mitocondrial de cada ser humano descende de uma mulher africana que viveu h� cerca de 200 mil anos. Al�m disso, como a esp�cie se originou na �frica antes de migrar para outras regi�es, as popula��es desse continente t�m a maior diversidade gen�tica.