
Quem diria que aquele moleque, nascido em Salvador, f� de Elvis Presley, e que se contorcia quando estava no palco, chegaria � Cidade Maravilhosa e compraria um Corcel 73? Pois �, Raul Santos Seixas deixou registradas 312 m�sicas, e conseguiu, como ningu�m, transitar em diversos estilos, desde o rock, passando pelo bai�o, o samba, o brega, o i�-i�-i� e muitos outros.
Um sujeito � frente do seu tempo, e que (quase) ningu�m, na �poca, entendia o que dizia. E boa parte dessa trajet�ria, ao longo de 44 anos de vida, metade deles nos palcos ou est�dios, agora ganha luz no livro N�o diga que a can��o est� perdida, de Jotab� Medeiros. “Raul � um personagem rico, misterioso e cuja obra analisa profundamente a identidade nacional”, frisa o autor.
Tudo bem, a vida de Raul Seixas � recheada de idas e vindas, mist�rios, hist�rias malucas ou “mal contadas” (algumas, inclusive, viraram letras de m�sicas). Abandono de show, pactos com o al�m, encontro com John Lennon, candidatura a deputado federal, e por a� vai. Mas o caub�i fora da lei, que manda recado a Al Capone e carimba o passaporte para o espa�o, viveu momentos fant�sticos. “Era um homem de grande interesse nas coisas n�o explic�veis, na possibilidade da vida em outros planetas, na f� universal, al�m das religi�es.”
Nascido em Salvador, em 28 de junho de 1945, Raul, depois de fazer sucesso na capital baiana, se muda para o Rio de Janeiro, em 1968, juntamente com seus companheiros da ent�o banda The Panthers (Os Panteras), “passando fome por dois anos na Cidade Maravilhosa.” Surge a amizade com Chico Anysio e Jerry Adriani, e o sucesso Let me sing, let me sing.
No ano seguinte, com o fim dos Panteras e deprimido com o fracasso, Raul volta para Salvador, e em 1970, a� sim, definitivamente, desembarca no Rio, mas como produtor. Ao lado da ent�o esposa Edith Wisner, vai morar no Leblon. E em maio de 1972, conhece o parceiro que mudaria o rumo de toda esta hist�ria: Paulo Coelho.
Ao lado do Mago, escreveu alguns de seus maiores sucessos, que at� hoje povoam o imagin�rio popular. No ano seguinte ao que se conheceram, Raul lan�a aquele que seria seu primeiro disco solo, Krig-h�, bandolo!, com v�rias m�sicas em parceria com Paulo Coelho, e a adora��o de ambos pelo ocultista brit�nico Aleister Crowley. E � a� que o livro chega ao seu ponto mais pol�mico.
DESGASTE PSICOL�GICO
Em maio de 1974, conforme relata Jotab� Medeiros, Raul � chamado para depor no Departamento de Ordem Pol�tica e Social (Dops). Ele teria chamado Coelho para ir junto. O ‘papo’ com as autoridades teria girado em torno das cinco m�sicas compostas pelos dois para o disco lan�ado no ano anterior e que j� alcan�ava a marca de 100 mil c�pias vendidas.
No livro, o autor descreve os momentos que se passaram a seguir. Raul deixou o local com menos de meia hora, enquanto Coelho, que se preparava, tranquilamente para ir embora, sem que esperasse por isso, foi chamado para uma sala escura onde, ap�s tr�s longas horas de espera, foi submetido a um extenso interrogat�rio, no qual, quase sem perceber, cita o nome de sua ent�o esposa, Adalgisa Rios, coautora do encarte do disco.
O desgaste psicol�gico n�o parou por a�. Liberado, ele foi novamente conduzido, na sequ�ncia, desta vez juntamente com a esposa, e ambos foram torturados. Depois desse epis�dio, as rela��es azedaram, de Paulo com Raul e do Alquimista com a esposa. Com o cantor, a pendenga era uma suposta entrega. “Procuro os amigos, procuro o cantor, e ningu�m responde aos meus telefonemas”, relata Coelho. J� Adalgisa passa a consider�-lo um completo inimigo.
Pelo Twitter, Paulo Coelho deixou no ar o mist�rio que sempre os acompanhou: “N�o confirmei e n�o confirmo nada. Eu apenas vi o documento e me senti abandonado na �poca”, postou. O tal documento, que est� no Arquivo P�blico do Rio e aparece descrito no livro, relata que a pol�cia chegou at� o escritor e sua esposa “por interm�dio do cantor”. Ou seja, teoricamente, Raul j� sabia que Coelho seria detido e interrogado, quando o ‘convidou’ a acompanh�-lo.
APROPRIA��ES
Exilados nos Estados Unidos, os dois se afastaram, o relacionamento esfriou. Mas na sequ�ncia lan�aram, novamente em parceria, aquele que seria um de seus grandes sucessos, Gita (1974), o que ‘provocou’ o retorno de ambos ao Brasil. Novo aeon (1975), considerado uma obra-prima, mas que n�o repetiu o sucesso de vendas, e H� 10 mil anos atr�s (1976), de volta aos trilhos das boas vendagens, acabam sendo (quase) os �ltimos da parceria com Paulo Coelho. Foram naquele per�odo.
O dia em que a Terra parou (1977), primeiro sem seu McCartney, chega com Maluco beleza, a can��o at� hoje mais tocada de Raul. Na biografia, Jotab� ainda ressalta as v�rias ‘apropria��es’ de Raul, que pegava ritmos ou letras de outros cantores e os colocava em suas can��es.
Em 1978, Paulo Coelho volta � ativa ao lado de Raul, no disco Mata virgem, em algumas can��es. Agora sim, � o ponto final da rela��o. Ainda est� no livro a cirurgia � qual Raul foi obrigado a ser submetido para arrancar todos os seus dentes.
E, finalmente, a parceria (de grande sucesso) com Marcelo Nova, outro baiano, que tinha o “DNA” de Raul. Nova era vocalista de sucesso nos anos 80, e garantiu uma sobrevida ao veterano cantor sem, � claro, como de costume, render pol�mica. “Marcelo jamais se aproveitou de Raul. Sempre teve prest�gio suficiente para caminhar sem aux�lio. Mas era um f� de Raul Seixas desde os 10 anos de idade, queria ver o �dolo em p�, em cima de um palco, e n�o esquecido. Fez de tudo para que isso fosse poss�vel, e conseguiu”, argumenta Jotab� Medeiros. Da� nasceu o disco A panela do diabo (1989), o �ltimo de Raul, j� p�stumo.
Em 21 de agosto de 1989, Raul saiu de cena definitivamente. V�tima da conta que chegou, depois de uma vida caminhando lado a lado com a perigosa mistura de �lcool, u�sque e coca�na, o cantor teve uma morte precoce, ap�s amargar o ostracismo na carreira, antes da parceria com o vocalista do Camisa de V�nus.
Anarquista, revolucion�rio, e at� profeta para alguns... Ele foi encontrado morto em sua cama por Dalva, sua ent�o cuidadora. Um verdadeiro her�i da classe trabalhadora, o que ficou claro em sua despedida. Velado por office-boys, pedreiros e artes�os, o corpo de Raul sofreu at� uma amea�a de ser roubado, tamanha a idolatria que despertava. A l�pide, ali�s, teve que ser concretada devido �s v�rias tentativas de furto.
Tudo bem se voc� preferir ser uma metamorfose ambulante, e discutir Carlos Gardel. Ou ainda se quiser ser o tal maluco beleza, que espera o metr� linha 743 e vai ao jardim zool�gico dar pipoca aos macacos. Aquele, que nasceu h� 10 mil anos atr�s, que clama por uma carona no disco voador, ou fica im�vel na praia. Saiba que nunca se vence uma guerra lutando sozinho, que ningu�m nesse mundo � feliz tendo amado uma vez. Pois pode ser que determinada rua por onde voc� j� passou n�o tornar� a ouvir o som dos seus passos. Mas, no final, s� n�o diga que a can��o est� perdida: tente outra vez.
ENTREVISTA
Jotab� Medeiros
‘‘Havia uma suspeita de Paulo em rela��o a Raul’’
O que Raul Seixas representa no contexto do rock brasileiro?
Raul � uma figura singular por diversos motivos: foi cantor e compositor, al�m de produtor de sua pr�pria obra. Tamb�m foi m�sico muito refinado. Controlou cada passo do pr�prio processo criativo e foi influente na obra de outros artistas, como Odair Jos�, Diana, Sergio Sampaio e outros. Revelou artistas. Enfim, � maior do que um rock star, mas � tamb�m um rock star.
Voc� acredita que Raul tenha entregado Paulo Coelho � ditadura, j� que o livro sugere isso, mas deixa a d�vida no ar?
S� posso afirmar aquilo que est� no livro: que havia uma suspeita de Paulo em rela��o a Raul. Que essa suspeita � fundada em uma sequ�ncia de fatos mal esclarecidos. Que o relacionamento de Raul e Paulo nunca mais foi o mesmo depois desse epis�dio. E que � poss�vel discutir essas coisas num ambiente democr�tico sem que resvale para a agress�o e a grosseria.
Voc� esperava a grande repercuss�o do epis�dio citado com Paulo Coelho?
Esperava um debate interessante, h� muitos fatos al�m desse no livro que suscitam discuss�o. Mas a dimens�o que isso tomou foi uma surpresa para mim, n�o esperava algo t�o estrepitoso.

Raul Seixas – N�o diga que a can��o est� perdida
De Jotab� Medeiros
Todavia
384 p�ginas
R$ 69,90