
A maioria dos leitores conhece Andr� de Leones, Fabr�cio Corsaletti, Jos� Luis Peixoto, Mia Couto, Miriam Leit�o e Ronaldo Correia de Brito pelos romances e ensaios. S�o autores de refer�ncia na produ��o liter�ria e no pensamento contempor�neos, acostumados a escrever para adultos e que, nos �ltimos anos, se aventuraram tamb�m pelo universo infantil. Todos, recentemente, lan�aram livros infantis cujas tem�ticas encontram ecos em suas produ��es para adultos, confirmando que n�o h� temas que n�o possam ser tratados na literatura infantil.
A morte � um deles. Andr� de Leones queria explorar a tem�tica da perda a partir da perspectiva infantil depois de trabalhar com personagem crian�a em Terra de casas vazias, romance lan�ado em 2013. Daniel est� viajando � o resultado. No livro, o menino precisa enfrentar a solid�o e a incompreens�o diante da perda. “Acho que a literatura deve apresentar a morte (e outros temas dif�ceis) da forma mais direta poss�vel para as crian�as. N�o se deve subestimar a intelig�ncia das crian�as, sufocar sua curiosidade, ignorar sua viv�ncia e desprezar sua imagina��o”, acredita o autor. Ele conta que procurou atentar para o vocabul�rio durante a escrita do livro, mas evitou a estrutura cronol�gica t�pica de seus romances. Manter a narrativa linear e direta foi um compromisso com os pequenos leitores.
Foram v�rios n�os at� Andr� conseguir publicar Daniel est� viajando. Durante os seis anos entre o in�cio do projeto e seu rec�m-lan�amento, ele ainda escreveu dois romances. Para ilustrar o livro, ele contou com o trabalho de Lina Nestorova. “Gosto de pensar que Daniel est� viajando, em grande parte gra�as �s estupendas ilustra��es de Lina Nestorova, tem algo a dizer �s crian�as, � capaz de estabelecer um di�logo muito proveitoso com elas”, diz.
Um dos momentos mais emocionantes da palestra dada por Mia Couto na embaixada de Portugal durante uma passagem por Bras�lia para participar da Semana Universit�ria da UnB, em setembro �ltimo, n�o teve a ver com o universo dos romances do mo�ambicano, e sim com o mundo das crian�as. Duas delas estavam na plateia para ouvir o autor, que acabou falando sobre A �gua e a �guia, o livro infantil que estava escrevendo e que acaba de chegar �s livrarias.
Quinta narrativa infantil de Couto, A �gua e a �guia traz uma hist�ria tr�gica e conectada com os dias de hoje. No livro, as aves do planeta se deparam com um problema seri�ssimo: n�o h� mais �gua e a sede se instala. Desesperadas, as �guias estipulam algumas solu��es que at� d�o certo nos primeiros momentos, mas acabam por se mostrar ineficientes. Ao final, � uma combina��o entre o conhecimento e a aten��o para a natureza a respons�vel por salvar a Terra da seca. Para o autor, que contou com a ilustradora Danuta Wojciechowska para criar o universo imag�tico de A �gua e a �guia, n�o h� distin��o entre escrever para crian�as ou adultos. A oralidade, no caso dos pequenos, � o mais importante para atra�-los. Quanto �s hist�rias, Couto explicou, durante a palestra, que s�o as mem�rias da pr�pria inf�ncia as respons�veis por traz�-las.
O portugu�s Jos� Luis Peixoto, que j� ganhou o Pr�mio Jos� Saramago e o Oceanos, come�ou a sentir vontade de escrever livros para crian�as quando passou a ler esse tipo de literatura. “Ao mesmo tempo, comunicar com as crian�as, tentar pensar pelas suas cabe�as, � aceder a uma parte de mim que n�o quero abandonar completamente, apesar de j� ser adulto h� bastante tempo”, conta.
Autor de A m�e que chovia e Todos os escritores do mundo t�m a cabe�a cheia de piolhos, ele acredita que n�o h� muita diferen�a entre escrever para crian�as e para adultos. “Um livro para crian�as precisa de um trabalho s�rio, coerente, tal como acontece com os livros destinados a adultos. Creio que � preciso dar tudo o que temos. A diferen�a talvez dependa da ideia que cada um tem das crian�as, o que depender� das crian�as que conhece, da crian�a que foi e do estado da sua mem�ria. Pela minha parte, tento escrever livros que sejam edificantes, que transmitam humanidade”, explica.
Foi o Natal que jogou Ronaldo Correia de Brito, vencedor de pr�mios como o S�o Paulo de Literatura e o Biblioteca Nacional, para o universo da literatura infantil. Irritado com a falta de conex�o entre renas, neve, Jingle bells e a cultura brasileira, ele, em parceria com o compositor Antonio Madureira e com o escritor Assis Lima, resolveu criar o Baile do Menino Deus, pe�a ilustrada por Fl�vio Fargas e reeditada recentemente pela Companhia das Letrinhas. Pensada para o teatro, a hist�ria traz elementos da cultura nordestina para o que pode ser descrito como um auto de Natal. A primeira vers�o da pe�a saiu em 2003 e, desde ent�o, o Baile segue sendo reeditado. Brito tamb�m � o autor de O pav�o misterioso, publicado em 2018 e fruto de parceria com Assis Lima.
O auto � apenas a primeira hist�ria da Trilogia de festas brasileiras, que se completa com Bandeira de S�o Jo�o e Arlequim de carnaval. “N�s nos queix�vamos da invas�o de renas, Jingle bells e neve falsa no Natal brasileiro, e resolvemos criar uma brincadeira para os nossos filhos cantarem e representarem durante o ciclo natalino”, conta Brito. “Tivemos a sorte de viver em meio a reisados, lapinhas e bois, a heran�a do Natal ib�rico assimilada no Nordeste do Brasil pelas popula��es rurais e urbanas, incorporada �s culturas �ndia e negra. Escrever para crian�as requer mais cuidado, mais aten��o. � um p�blico exigente, que n�o se deixa tapear. Nossa inten��o era mostrar um pouco do Brasil que se perde todos os dias.”
Autora de livros densos sobre a realidade brasileira, como Tempos extremos e Hist�ria do futuro, Miriam Leit�o encontra na escrita para o p�blico infantil um respiro da aridez dos temas econ�micos. Nesse mundo, n�o h� prazos e a hist�ria vem carregada de espontaneidade e refer�ncias pessoais. No rec�m-lan�ado As aventuras do tempo, a inf�ncia na fazenda dos av�s e um pedido da sobrinha-neta conduziram a autora pelo universo da pequena personagem Mel. “Escrever para crian�a � bem de- licado. Tenho o cuidado de sempre trabalhar cada palavra e o significado de cada frase”, explica Miriam, que tamb�m n�o deixa de fora das narrativas os temas do cotidiano que considera relevantes, como o meio ambiente. “Acho muito importante porque essa gera��o, se n�o tiver a consci�ncia ambiental, pode ver um futuro muito terr�vel, ent�o tenho feito isso em v�rios livros”, conta.
Ronaldo Correia de Brito

“� preciso ter respeito pela intelig�ncia e sensibilidade”
Como surgiu o Baile do Menino Deus? E como o Brasil est� representado nessa hist�ria natalina?
Tudo nasceu de um esbo�o de representa��o teatral, que o parceiro Assis Lima mandou de S�o Paulo para mim pedindo que eu o encenasse com minhas irm�s, num Natal do Crato. Primeiro veio a m�sica, o disco. Em 1981, come�amos a entregar a Antonio Madureira as letras do futuro Baile do Menino Deus. Sem internet, nem skype, nem WhatsApp, com liga��es telef�nicas caras e prec�rias, a comunica��o com Assis Lima era feita pelo correio. Aprontamos nove composi��es e juntamos a elas tr�s pe�as de reisado, com escrita e arranjos nossos: Jaragu�, Burrinha e Boi. T�nhamos 12 m�sicas, o bastante para um long-play. Madureira conseguiu a produ��o com o selo Eldorado, mas tivemos de gravar tudo em Recife, no velho e decadente Studio Rozenblit, com apenas oito canais. Enquanto isso, Assis Lima e eu apront�vamos o texto teatral. Em outubro de 1983, lan�amos o disco e, em novembro, estreamos a pe�a, que ficou oito anos em cartaz. Sonhamos com uma Trilogia das festas brasileiras, que se completou com Bandeira de S�o Jo�o e Arlequim de carnaval.
Houve alguma altera��o na reedi��o? Pode contar como foi fazer a reedi��o?
A primeira edi��o do Baile do Menino Deus saiu no Recife, pela Baga�o. Era uma vers�o do teatro adaptada para prosa, com ilustra��es de Rosinha. Foram 15 anos em cat�logo e muitas vendas. Em 2003, a Objetiva editou o original em teatro, ilustrado por Pinky Wainer, e concorreu ao FNDE/PNBE, do Minist�rio da Educa��o. Venceu a concorr�ncia e tivemos uma aquisi��o de 500.000 exemplares, que foram distribu�dos a bibliotecas e escolas p�blicas de todo o pa�s, tornando-se umas das pe�as teatrais mais populares e encenadas. Em 2010, a Alfaguara lan�ou um belo livro ilustrado por Fl�vio Fargas, que depois ganhou o selo Companhia das Letrinhas e manteve a vers�o original para teatro.
E O pav�o misterioso, como nasceu?
Em meio �s pe�as da Trilogia das festas brasileiras, que tamb�m eram livros, discos e espet�culos, resolvemos trabalhar com o g�nero maravilhoso do cordel. Escolhemos o mais famoso de todos eles, que trata de quest�es contempor�neas, O romance do pav�o misterioso. Fizemos uma livre adapta��o, que agradou bastante. O livro saiu pela CosacNaify, ilustrado por Andr�s Sandoval, e depois pela Companhia das Letrinhas. Tamb�m teve disco e encena��o.
Como voc� decide que uma hist�ria � para crian�as ou adultos?
Todas as nossas hist�rias para crian�as tamb�m agradam ao p�blico adulto. Lembramos o que nos fascinava nos livros e brincadeiras infantis e arriscamos que h� um ponto em que as crian�as s�o iguais, em todos os tempos. Nunca se perde o encantamento pelo m�gico e pelo faz de conta.
O que n�o pode faltar em um livro para crian�as?
Uma boa hist�ria, o respeito pela intelig�ncia e sensibilidade.
Voc� est� trabalhando em algum t�tulo novo para crian�as?
J� escrevi motivado pelos filhos e agora os netos me motivam a escrever para eles. Trabalho em quatro folhetos de cordel.
E qual a import�ncia da ilustra��o num livro infantil?
Toda. Vivemos num mundo a cada dia mais visual, que valoriza as imagens. Um bom ilustrador d� vida ao texto, torna-o melhor de ser lido.
Jos� Luis Peixoto

“Privilegio as ideias ligadas � brincadeira”
O que o leva a escrever livros para crian�as? � diferente de escrever para adultos?
Comecei por sentir vontade de escrever livros para crian�as quando, j� com obra publicada, me interessei por ler livros destinados a esse tipo de p�blico. Creio que me senti atra�do pela possibilidade dessa experi�ncia. (At� os meus filhos j� s�o quase adultos.)
O que n�o pode faltar em um livro para crian�as?
Penso que, ao n�vel do trabalho liter�rio, n�o h� caracter�sticas especialmente distintas.
Como voc� encontra as hist�rias para os livros infantis?
De forma semelhante ao modo como chego a qualquer outro livro. Ainda assim, suponho que privilegio ideias que estejam ligadas � brincadeira, � experimenta��o, � descoberta do mundo.
Pode falar um pouco como surgiram A m�e que chovia e Todos os escritores do mundo t�m a cabe�a cheia de piolhos?
No primeiro caso, quis escrever sobre as m�es, uma figura t�o fundamental na vida de todos. Tentei humanizar a figura da m�e para a crian�a, mostrar o seu lado. Achei uma maneira algo paradoxal de faz�-lo, uma vez que a m�e da hist�ria � explicitamente n�o humana, � a chuva. J� no que diz respeito ao livro dos piolhos, tamb�m com um discurso bastante surreal, embora com um tom bem diferente, mais divertido, tentei humanizar a figura do escritor, tentei aproxim�-lo do leitor infantil e mostrar-lhe que tamb�m ele pode ser escritor, aproveitando para trazer algumas ideias sobre a literatura, tanto do ponto de vista da escrita, como da leitura.
Andr� de Leones
“A imagina��o � uma defesaque temos contra o mundo”

O que o levou a escrever para crian�as?
N�o foi algo planejado. No meio de outro projeto, anos atr�s, me senti atra�do por esse tipo de narrativa e decidi experimentar, ver se era capaz de desenvolver algo para crian�as. Na pr�tica, em termos de planejamento e execu��o, n�o foi diferente de escrever para adultos.
Daniel est� viajando � o seu primeiro livro infantil. Como est� conectado com sua obra para adultos, especialmente com Terra de casas vazias?
Sim, � o meu primeiro livro infantil. Em 2012, eu estava terminando de escrever um romance chamado Terra de casas vazias (lan�ado em 2013 pela Rocco). Esse livro me tomou bastante tempo (comecei a conceb�-lo em 2009), e eu senti que precisava me concentrar em outra coisa por um tempo, a fim de recarregar as energias e termin�-lo. Terra de casas vazias � formado por v�rios blocos narrativos, e um deles � protagonizado por uma crian�a. Eu gostei de trabalhar com esse universo, por assim dizer, e decidi desenvolver uma pequena narrativa aut�noma. Fiz isso entre uma revis�o e outra do romance, e acho que deu certo.
O que n�o pode faltar em um livro para crian�as?
Imagina��o. H� que se buscar formas menos �bvias de abordar a realidade e a pr�pria narrativa. Em Daniel est� viajando, ao falar sobre a morte procurei brincar com as coisas que os adultos dizem para as crian�as, como: “Fulano foi para o c�u”. E se o protagonista imaginasse isso — “ir para o c�u” — acontecendo de fato, isto �, literalmente? Creio que essa imagem � uma maneira de presentificar a aus�ncia, tamb�m um meio de acessar a mente infantil ao lidar com situa��es traum�ticas. Ao escrever o livro, eu me lembrei de mim mesmo aos seis, sete, oito anos, lidando com essa coisa misteriosa que � a vida, ouvindo o que os adultos me diziam e, sem compreend�-los muito bem, deixando a imagina��o correr solta. A imagina��o � uma defesa que temos contra o mundo. N�o me refiro � fuga da realidade, mas � busca incessante por significados, imagens e formula��es que nos ajudem a viver e abra�ar o mundo, por mais espinhoso que ele seja.
Perda � um dos temas do livro. Como a literatura pode apresentar a morte para as crian�as? Que papel a literatura pode ter na descoberta da mortalidade?
Jamais. Isso talvez seja visto com estranhamento por alguns, a julgar pela maneira como certas obras liter�rias t�m sido recebidas por a�. O livro Enfim, capivaras, de Luisa Geisler, foi banido de um evento liter�rio em Nova Hartz-RS, por exemplo, por retratar de forma cr�vel um bando de adolescentes. O “linguajar” da obra seria “inadequado”, como se adolescentes n�o falassem palavr�es. Isso � absolutamente rid�culo. Nosso pa�s vive uma epidemia de desintelig�ncia, da qual s� sair� se investirmos em educa��o e cultura. A maioria dos jovens e adultos � incapaz de raciocinar ou mesmo de interpretar textos simples. N�o por acaso, s�o esses mesmos indiv�duos que andam por a� espalhando o �dio e a ciz�nia. H� uma rela��o direta entre a falta de educa��o (em todos os sentidos) e o caos pol�tico-social, de colora��es autorit�rias, que vivemos. A desintelig�ncia e a falta de imagina��o s�o formas de escravid�o. Hoje, independentemente do espectro ideol�gico e da classe social, a maioria dos brasileiros vive na escravid�o. As pessoas est�o no fundo daquela caverna da alegoria plat�nica, atirando pedras nas sombras projetadas na parede, atirando pedras umas nas outras, aparentemente satisfeitas com esse espet�culo grotesco.
Como voc� se sente escrevendo para crian�as em pa�s cujo Pisa constata que mais da metade dos estudantes de 15 anos, incluindo a� os da elite, n�o sabem ler nem escrever?
N�o acho que isso seja por acaso. Leitura � algo fundamental para o desenvolvimento do senso cr�tico, para que se tenha uma no��o m�nima de si mesmo, do outro e do lugar hist�rico que ocupamos. Penso que a m�quina p�blica brasileira sempre mirou o oposto disso, mesmo quando os investimentos em educa��o eram maiores, mas extremamente desorganizados e mal administrados. Ao Estado brasileiro interessa formar essa multid�o de zumbis iletrados, os quais est�o muito bem representados � direita e � esquerda — no Brasil, n�o me canso de dizer, a estupidez � ambidestra. Deseducadas, as pessoas passam a se fiar em bizarrices neointegralistas como Bolsonaro ou populistas como Lula, viram terraplanistas, liberais de cal�as curtas, socialistas de boteco, fascistinhas de condom�nio, apegam-se ao desconhecimento, � incultura, ao obscurantismo e aos piores preconceitos. Como me sinto escrevendo para crian�as e adultos em tal contexto? Prefiro nem pensar muito a respeito, mas apenas me concentrar no meu trabalho e tentar realiz�-lo da melhor forma poss�vel. Se eu pensasse demais, creio que seria dominado pelo des�nimo e pelo desespero. Por menor que seja a minha relev�ncia, n�o posso me dar ao luxo de parar. � preciso seguir em frente, � preciso seguir lendo, escrevendo, pensando, dialogando, criando e, acima de tudo, vivendo.