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Estado de Minas

Novo estudo de professora da UERJ analisa cr�nicas, contos e romances de Lima Barreto

Lan�amento da editora mineira Relic�rio, o livro busca tra�ar poss�veis entradas na obra dele, com a expectativa de que a gente se anime a estender a explora��o


postado em 27/12/2019 06:00 / atualizado em 27/12/2019 08:02


E penso no passado... Mas o passado � um veneno! Fujo dele, de pensar nele e corro para o smartphone, deslizo na timeline. Logo vejo a ignor�ncia enfatuada ganhar likes, propagar-se na imprensa, desdenhar do conhecimento cient�fico, alastrar-se como um c�ncer pelo organismo republicano. Ent�o, de novo me lembro de Lima Barreto (1881-1922), dos seus (nossos) “homens que sabiam javan�s”, da mediocridade truculenta de seus (nossos) l�deres pol�ticos...

A atualidade – ou atualidades v�rias – do escritor carioca � real�ada em Lima Barreto em quatro tempos, com ensaios de Carmem Negreiros, doutora em teoria liter�ria, professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e autora de trabalhos incontorn�veis para quem quiser se aprofundar na obra do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma. Lan�amento da editora mineira Relic�rio, o livro busca tra�ar poss�veis entradas na obra dele, com a expectativa de que a gente se anime a estender a explora��o.
Os quatro tempos-cap�tulos podem ser lidos em separado e se interpenetram, um enriquecendo o outro. Nos tr�s primeiros, aborda-se a atividade de Lima nos g�neros cr�nica, conto e romance. O cap�tulo restante se volta para uma esp�cie de n�o g�nero: os recortes de jornais e as anota��es coligidos em cadernos n�o publicados durante a vida do autor. Negreiros chama esses cadernos de “retalhos”, termo com que o pr�prio colecionador se refere aos peda�os colados no arquivo ins�lito. Entre a bibliografia de Lima, a pesquisadora analisa alguns itens, sem pretender delimitar e sistematizar conjuntos atribu�veis aos g�neros examinados. Ficou de fora a abundante epistolografia do carioca, cujo rol de correspondentes inclui um dos mais importantes escritores e editores das primeiras d�cadas do s�culo 20, Monteiro Lobato (1882-1948).

Inven��es e saberes

O cap�tulo “Cr�nica” passeia por temas e p�ginas de Lima Barreto, ressaltando o cronista como participante das articula��es, mais ou menos conflituosas, que constroem a cidade. Tr�nsitos, ruas, pra�as s�o medidos e concretizados por administradores, urbanistas, engenheiros, oper�rios, m�quinas – mas a “pedra” tamb�m � moldada por narra��es, experi�ncias, sentimentos... Nesse jogo, a desigualdade de for�as justifica que Negreiros separe, nas representa��es textuais forjadas pelo autor, o “espa�o f�sico da cidade” (ordenado pelo “poder econ�mico e pol�tico”) e a “paisagem humana” (usu�ria, nem sempre d�cil, do que se lhe imp�e).

“Observador em deslocamento constante, Lima Barreto fez da viagem urbana – de trem, bonde ou a p� – estrat�gia para ver a cidade e sua gente por meio de m�ltiplas perspectivas”, comenta Negreiros. Mencionando partes do Rio de Janeiro, Lima n�o somente documentava a cidade, mas propunha modos – avessos, muitas vezes, ao que pretendiam as elites dirigentes – de sentir, distinguir e interligar tais peda�os. A cr�nica, inclusive por ser veiculada na imprensa (como � habitual ainda hoje), gerava “elos para a compreens�o da vida moderna”, constata a pesquisadora. Os textos-viagens de Lima, compondo diversos ritmos, combatiam esquecimentos, evocavam e geravam camadas de mem�ria coletiva, destaca a professora.

Por seu turno, o cap�tulo “Conto” analisa quatro textos, entre os quais O homem que sabia javan�s (1911) – uma das mais conhecidas obras de Lima – e Um m�sico extraordin�rio (1920). Para a autora, ambas narrativas, em uma mesma problematiza��o sobre o conhecimento, exaltam a pot�ncia da inven��o. Nelas, o saber n�o teria como eixo a dualidade verdadeiro/falso, mas se legitimaria enquanto imagina��o ficcional. Por exemplo, o “professor de javan�s”, Castelo, n�o seria mentiroso, mas uma esp�cie de artista.

Os dois contos afirmam a imagina��o como coorganizadora do mundo, mas, a meu ver, tamb�m preservam o verdadeiro como par�metro. Castelo se sabe embusteiro, admite-se ignorante em javan�s, classifica hist�rias suas como mentirosas, zomba da ingenuidade alheia. J� Ezequiel, autoproclamado “artista” e “celebridade”, reconhece nada saber de m�sica, e sua biografia fict�cia sugere que o “m�sico extraordin�rio” ser� logo substitu�do por outro “sonho”. Por um lado, Castelo e Ezequiel denunciam um Brasil vicioso: o primeiro n�o se dilui no ramerr�o “imbecil e burocr�tico” (adjetiva��o presente no respectivo conto); o segundo, aventureiro, evita agarrar-se ao funcionalismo p�blico. Por outro lado, ambos conservam tal Brasil: Ezequiel, com seus dons grandiosos e apenas idealizados; Castelo, sendo mais um a triunfar com a ignor�ncia disfar�ada de saber.

Mem�rias e novidades

A imagina��o como for�a criadora de mundos retorna no cap�tulo “Romance”, na reflex�o acerca de Triste fim de Policarpo Quaresma. Todo espa�o tido por real, mesmo o “natural”, � em alguma medida criado quando a gente – servindo-se de no��es, mem�rias, desejos etc. – o percebe e o demarca. Essa premissa parece orientar Carmem Negreiros, para quem v�rias refer�ncias construtoras do Brasil (inclusive liter�rias) s�o questionadas no referido romance. O protagonista, major Quaresma, se refaz enquanto duvida da p�tria destinada ao progresso, f�rtil em si mesma.

O outro romance analisado pela professora � a estreia de Lima Barreto, Recorda��es do escriv�o Isa�as Caminha (1909), que teria introduzido novidades nesse g�nero liter�rio. N�o fica claro, no texto de Negreiros, se tais inova��es se dariam em rela��o � literatura brasileira, especificamente, ou � “universal”. Uma novidade seria a configura��o de uma “zona amb�gua entre narrador e autor”: a narrativa misturaria dados (auto)biogr�ficos e uma autobiografia simulada, relativizando “os limites do ficcional”. Por�m, quais limites pressup�e a pesquisadora? As m�scaras de Lima-Caminha reiteram uma interroga��o cl�ssica: qual limiar separaria autobiografia e fic��o?.

Carmem Negreiros desaprova que se tente estabelecer, a partir de informa��es pessoais espalhadas por Lima Barreto em suas obras, uma imagem do escritor em sua privacidade. Nos vest�gios (auto)biogr�ficos, o privado e o p�blico se interpenetrariam, inclusive nos cadernos parcialmente publicados, em 1953, com o t�tulo Di�rio �ntimo. No �ltimo cap�tulo de Lima Barreto em quatro tempos, exp�em-se linhas de pesquisa a respeito desses cadernos, “retalhos” que, indica a pesquisadora, registram a subjetividade do colecionador e “temas hist�rico-culturais e liter�rios”. Descont�nuos, os “retalhos” se abrem a associa��es e dissocia��es, realizando e incitando “a recupera��o de aspectos virtuais da mem�ria”. A autora parece enxergar no Lima desses fragmentos um protobenjaminiano – veja-se a (re)articula��o do passado proposta por Walter Benjamin (1892-1940) em no��es como a da “imagem dial�tica”.

Aproveitando trilhas abertas pelas reflex�es de Carmem Negreiros, alcan�amos em Lima Barreto algumas ideias que inspiram um ben�fico anacronismo. Aderir � nossa �poca implica resistir a algumas das tend�ncias mais luzentes – eis algo a se aprender com o autor, descendente de escravos, morto h� quase 100 anos.

*Tiago de Holanda � doutorando do programa de p�s-gradua��o em letras: estudos liter�rios da UFMG

Especialista no autor

O curr�culo de Carmem Negreiros inclui, al�m de artigos acad�micos sobre a obra do autor, os livros Lima Barreto e o fim do sonho republicano (1995), Trincheiras de sonho: fic��o e cultura em Lima Barreto (1998) e Lima Barreto, caminhos de cria��o (2017, em parceria com Ceila Ferreira).


Lima Barreto em quatro tempos
Carmem Negreiros
Relic�rio
172 p�ginas
R$ 39,90


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