
No document�rio Lontano dagli occhi (Longe dos olhos, 2016) sobre a migra��o no Mediterr�neo, de Domenico Iannacone e Luca Cambi, a m�dica Cristina Cattaneo, durante a identifica��o de roupas de migrantes afogados no mar, descreve ao entrevistador os pertences encontrados junto aos corpos. � penosa a tarefa de vasculhar a intimidade daquelas pessoas a partir de documentos, an�is, ros�rios, fotos, sapatos: a profissional chama a aten��o para o fato de que muitos desses viajantes trazem presos dentro da roupa alguns objetos, em uma tentativa de preservar, na dura travessia, algo da vida pregressa.
Cattaneo relata que certa vez encontrou um boletim escolar costurado no bolso do casaco de uma crian�a. Esse gesto traduziria – comenta – a esperan�a de que na nova vida o estudo tivesse continuidade. N�o houve. Tratava-se de mais uma barca repleta de pessoas que naufragou no mar da Sic�lia, deixando em Lampedusa tra�os das vidas que se perderam nas �guas. A cena � uma das in�meras a indicar o que significa hoje encarar essa trag�dia – ou melhor, genoc�dio culposo, nas palavras da escritora Igiaba Scego, j� que, depois de mais de 20 anos de sucessivos naufr�gios, j� n�o se poderia mais falar de cat�strofe inesperada – alerta a escritora –, nascida na It�lia e filha de pais somali.
Longe dos olhos alerta para a impossibilidade de ignorar a extens�o do que se passa hoje na It�lia: imposs�vel n�o ver, invi�vel n�o saber. Est� nos jornais, nas paredes, nas passeatas, nos livros, em toda parte. De um pa�s de forte emigra��o (quase 30 milh�es de pessoas em tr�nsito entre 1800 e 1900 e mais de 2 milh�es nos �ltimos 13 anos), o pa�s se viu transformado em destino de imigra��o. De outro lado, � tamb�m claro que uma parcela enorme dos italianos adere ao slogan nacionalista e xen�fobo do pol�tico Matteo Salvini: “Primeiro os italianos”. O recado dado aos refugiados e migrantes – n�o queremos viver com voc�s.
� preciso lembrar que se passaram 80 anos desde a promulga��o das famigeradas leis raciais italianas, o que gerou in�meros debates em 2018 para se avaliar essa heran�a. Tribut�rias das leis de Nuremberg, decretadas pelo partido nazista em 1935 e importante passo para o crescente �dio contra os judeus na Alemanha e na Europa, essas normas vedavam aos judeus in�meros direitos, definindo a cidadania a partir do crit�rio do sangue, base do pensamento eugenista e antissemita.
“N�o podemos decidir com quem coabitar, isso � hitlerismo”, sentencia Donatella di Cesare, professora de filosofia da Universidade de Roma La Sapienza, autora de in�meras obras sobre a quest�o explosiva hoje na Europa (no Brasil, � disposi��o, seu ensaio Terror e modernidade, Editora Ayine) e importante voz no debate sobre a quest�o da migra��o. Em seu mais recente ensaio, Stranieri residenti – Una filosofia della migrazione (Estrangeiros residentes – Uma filosofia da migra��o), ela alerta para o perigo de atrelar a cidadania aos crit�rios do solo e do sangue. Afirma que s�o mitos potentes, espectros que em nada auxiliam a superar o hiato criado entre o cidad�o e o migrante.
Para a autora, alinhada ao pensamento do fil�sofo Giorgio Agamben, o direito do terceiro mil�nio seria o direito de migrar, e mais do que nunca uma pol�tica de acolhimento deveria existir na Europa. No entanto, alerta Di Cesare, uma gram�tica do �dio se instala, separando e hierarquizando: primeiro “n�s”, depois “eles”. N�o h� lugar para todos, segundo essa l�gica. Na base, presentes o medo de dividir o emprego, o p�nico da criminalidade, a imagem da desordem. O estrangeiro � o inimigo da vez.
Mas seria de fato a It�lia o destino inconteste dessa massa humana a se mover pelo planeta? N�o exatamente. O antrop�logo Andrea Staid (da Naba, de Mil�o), refuta radicalmente a certeza das invas�es b�rbaras. Reduzir o fen�meno global das migra��es a essa aritm�tica seria equivocado, j� que apenas uma parcela dessa popula��o teria a Europa como meta. Deslocamentos internos na pr�pria �frica seriam em n�mero muito maior, afirma. Segundo dados do Alto Comissariado das Na��es Unidas para os Refugiados (Acnur), n�o est�o na Europa os oitos pa�ses que mais recebem refugiados (entre eles, Turquia, Paquist�o, Uganda e Sud�o). Mas in�meros interesses pol�ticos est�o em jogo, fazendo prevalecer fortemente a ideia da invas�o na Europa e, consequentemente, o discurso anti-imigra��o.
Nesse cen�rio, inquieta pensar no oceano como palco de um drama que, se n�o � novo, atinge novas e alarmantes propor��es. Quase 2 milh�es de migrantes chegaram � Europa pelo mar entre 2008 e 2016, segundo a Acnur. Vale lembrar que Mare Nostrum era a antiga designa��o romana para o Mediterr�neo, e foi precisamente esse o nome escolhido para batizar a opera��o humanit�ria de busca e salvamento da Marinha italiana, que resgatou mais de 160 mil pessoas entre 2013 e 2014. A iniciativa foi extinta, e nos faz pensar na apropria��o da express�o, uma vez que no �mbito coletivo o mar nosso cada vez mais se apresenta como espa�o segregado e mapeado por uma geopol�tica excludente.
Vem de longe essa rela��o. A for�a do Imp�rio Romano sempre esteve ligada ao meio aqu�tico: seus primeiros aquedutos datam de 300 anos antes de Cristo. A rela��o milenar de Roma com a �gua a levou no passado ao ep�teto de Regina Aquarum, em fun��o do n�mero de art�rias a irrigar a cidade – ainda � poss�vel matar a sede nas milhares de fontanas espalhadas pela paisagem romana, caracterizada pelo som dos sinos e pelo rumor das �guas. Mas a met�fora l�quida de vitalidade infelizmente n�o pode ser dissociada do drama que se desenrola debaixo dos nossos olhos. Da generosa Regina Aquarum ao cruel Mare Nostrum, a �gua ainda sela o destino de muitos indiv�duos.
Para o migrante, a travessia do Mediterr�neo � miragem entremeada por in�meros sacrif�cios. Muitos deles nem sequer viram antes o mar, e morrem por n�o saber nadar. Mas antes de chegar ao oceano, a escassez: para diversos deles, a passagem pelo deserto � t�o ou mais dura, e morre-se de sede em meio � viagem. Como ent�o imaginar a chegada?
Igiaba Scego indaga sobre “nascer do lado errado do planeta”, o que altera radicalmente o direito de ir e vir. Scego afirma que o novo apartheid depende da cor dos passaportes, e n�o da pele, fazendo com que os indiv�duos estejam � “merc� de um destino nefasto que condena pela geografia e n�o por algo que voc� fez”. Fato � que os passaportes cada vez mais significam for�a para uns e fragilidade para outros.
Basta recordar o epis�dio com a bi�loga marinha Carola Rackete, que em julho de 2019 foi presa na Sic�lia ao resgatar do Mediterr�neo 42 refugiados africanos. Ignorando as leis que pro�bem navios com migrantes de atracar nos portos italianos, a capit� alem� desafiou as regras estabelecidas pelo ent�o vice-premi� e ministro do Interior Matteo Salvini ao desembarcar na ilha de Lampedusa, correndo o risco de receber pena de at� 10 anos de pris�o.
Perguntada pelo jornal La Reppublica sobre o porqu� de liderar um navio humanit�rio, afirmou:“Sou branca, nasci em um pa�s rico e tenho o passaporte adequado”. Em um mundo globalizado, de intenso fluxo de mercadorias, sabe-se que as pessoas circulam cada vez menos livremente e a desigualdade dessa condi��o � alarmante. Para muitos, faltam as “chaves de papel”, preciosa imagem criada por Alejo Carpentier para se referir �s fronteiras burocr�ticas. N�o � toa, uma das recorrentes narrativas de hoje na Europa faz alus�o ao ato de fechar portas.
Mas nem sempre foi assim. A escritora Nicoletta Bortoltti, em entrevista ao site iodonna.it, afirma que h� uma narrativa rom�ntica sobre o emigrante italiano, com sua mala de papel e a esperan�a de fazer a Am�rica. Um exemplo de trabalho e perseveran�a: “Os migrantes de hoje, no entanto, s�o vistos como se fossem um rebanho indistinto, sem rostos, sem hist�rias individuais”.
� NECESS�RIO EVITAR GENERALIZA��ES
Para melhor compreens�o, seria necess�rio avan�ar al�m desses estere�tipos. A maior parte dos migrantes que chega � Italia hoje trabalha duramente, mas dentro da absoluta ilegalidade (cria-se uma nova forma de escravid�o, asseveram especialistas, pois trabalha-se cerca de 10 horas por dia recebendo 2 euros por hora). Vale dizer, � necess�rio evitar as generaliza��es (imigrantes honestos no passado, migrantes ilegais e invasores no presente). Sim, o crime organizado tamb�m � uma institui��o italiana. A M�fia � um legado nada �pico deixado na Am�rica ao longo dessa travessia.
Certo � que os muros e o mar nos afligem insistentemente. O anivers�rio da queda do muro de Berlim reacendeu a discuss�o sobre essa imagem, trazendo a necessidade de admitirmos que eles v�m sendo constru�dos de forma vertiginosa no tempo presente. S�o novos e s�o muitos. Significam o contr�rio da passagem e da livre circula��o. E o oceano, sin�nimo de amplid�o, se faz parede e vala comum para in�meros viajantes, como para o jovem cujo boletim pretendia ser o passaporte para uma nova vida. Um cemit�rio mar�timo.
Andrea Camilleri, falecido recentemente, alertava para o que chamava de uma cegueira do futuro, ao dizer que muros internos se constroem rapidamente na Europa. O escritor comparava o nacionalismo de hoje na It�lia ao populismo do passado fascista. “No futuro, talvez sejamos n�s, os italianos, que precisaremos pedir ajuda, ref�gio”, sentenciou.
Stefania Chiarelli � professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense. O artigo acima foi realizado com apoio da Coordena��o de Aperfei�oamento de Pessoal de N�vel Superior – Brasil (Capes)