
Conversar com o escritor e bi�logo mo�ambicano Mia Couto faz bem � sa�de. Nesta entrevista exclusiva, o autor de livros como Terra son�mbula e Antes de nascer o mundo, e vencedor do Pr�mio Cam�es em 2013, tra�a com leveza e contund�ncia um cen�rio das causas e consequ�ncias da pandemia. “O problema, ou melhor, os problemas, foram os fatores de desumaniza��o que est�o inscritos nos modelos de fazer economia e pol�tica (atualmente). H� quem acredite que tudo isso vai ser repensado depois desta epidemia. Mas eu n�o sou t�o otimista”, afirma. “A imbecilidade n�o ser� vencida num virar da folha”, acrescenta. Mas destaca: “� poss�vel que valorizemos de forma mais justa quem est� � nossa volta e � ofuscado pelo brilho das carreiras de sucesso: os m�dicos, os enfermeiros, os professores, os catadores de lixo, os jornalistas, todos aqueles que neste momento de crise se revelam com toda a dimens�o humana das suas profiss�es”.
Qual � o espa�o da poesia — e da literatura, em modo geral — nesses tempos de d�vidas e de medo? O medo � perigoso? Podemos enfrent�-lo com eleg�ncia po�tica?
O espa�o da poesia sempre foi encontrado nos interst�cios, nas fendas do muro, em contracorrente. Tudo depende, afinal, do que se entende por poesia. Se poesia constituir uma vis�o alternativa do mundo, e n�o apenas uma forma de arte, ent�o ela ter� poderes para enfrentar este mundo. �s vezes, tudo o que resta � a palavra. Essa palavra � apenas o rosto de algo que Drummond chamou de um sentimento do mundo. A poesia pode convocar o desejo de um outro mundo que seja mais nosso. � preciso n�o esquecer que obras de refer�ncia mundial, como A peste, de Albert Camus, foram produzidas como forma de resist�ncia perante um medo coletivo que � suscitado pelas epidemias.
A reclus�o pode ser inspiradora? A mat�ria-prima da poesia s�o as pessoas, o relacionamento entre desejos e anseios. Como trabalhar isso agora? Por outro lado, a reclus�o tamb�m pode ser inibidora?
N�o creio que formas impostas de reclus�o possam estimular a inspira��o. A reclus�o (isolamento social) n�o � nunca inspiradora se significa o desemprego e a mis�ria (como � o caso para muitos criadores de cultura). N�o � esta reclus�o imposta e desesperada que a maior parte dos criadores deseja para produzir arte.
Voc� acha que o ser humano estar� melhor depois da pandemia? Ser� mais solid�rio? Ou continuar� o mesmo, com suas falhas na alma?
O problema nunca foi o chamado ser humano. O problema, ou melhor, os problemas, foram os fatores de desumaniza��o que est�o inscritos nos modelos de fazer economia e pol�tica. H� quem acredite que tudo isso vai ser repensado depois desta epidemia. Mas eu n�o sou t�o otimista. O que talvez seja refor�ada � a defesa cega das receitas neoliberais que advogam o emagrecimento (a desconstru��o) do Estado e fortalecimento dos mercados. O que precisa ser questionado, em particular, � o desprezo dado a setores p�blicos da sa�de e da educa��o. Mas a imbecilidade n�o ser� vencida num virar da folha. A maioria dos que escolheram lideran�as imbecis muito provavelmente continuar� apoiando no futuro essas lideran�as populistas e demag�gicas. O medo n�o ajuda a vencer a mentira. Pelo contr�rio, o medo fundamenta a escolha de solu��es messi�nicas. � por isso que os “salvadores do mundo” adoram o medo. E fazem da gest�o eterna de crises o alimento da sua longevidade. O Brasil tem uma experi�ncia dolorosa nesta produ��o de um poder que vive da eterniza��o da crise e da permanente polariza��o que mant�m o pa�s numa esp�cie de estado de guerra.
No Brasil, o presidente e uma elite atrasada negam a dimens�o dessa pandemia... De onde vem essa falta de empatia?
No Brasil, o presidente e uma elite atrasada negam a dimens�o dessa pandemia... De onde vem essa falta de empatia?
N�o sei se � uma falta de empatia. Mas � uma empatia pelo obscuro, pela nega��o da ci�ncia e da luz, pela gan�ncia do poder autorit�rio. H� governantes brasileiros que negam que a Terra seja redonda. Como esperar que acreditem na progress�o epidemiol�gica de um v�rus? Pelo mundo, animais voltam a circular em �reas que pareciam estar perdidas para o homem. O v�rus, como destaca o italiano Domenico de Masi, nos obriga a repensar a rela��o com a natureza. Como, pelo olhar po�tico, se faz isso? � preciso ter aten��o quando definimos o que � a natureza. A natureza n�o existe fora de n�s. N�o mora apenas onde h� �rvore e passarinho. N�s, com as nossas cidades, somos tamb�m a natureza. O v�rus que nos atingiu � parte dessa natureza. Ali�s, uma das raz�es que levaram a desvalorizar o estudo dos v�rus foi a nossa vis�o antropoc�ntrica do que � importante no mundo natural. Muito pouco sabemos dessa criatura invis�vel que virou o mundo do avesso. Durante anos, houve, � claro, dificuldades t�cnicas para conhecer o mundo dos v�rus: era preciso aparelhos de amplifica��o visual, era preciso uma tecnologia de interven��o molecular e gen�tica que s� agora dispomos. Mas havia uma arrog�ncia de considerar importante apenas o que � mais pr�ximo da nossa esp�cie. Falo aqui como bi�logo: n�s quase nada sabemos sobre os v�rus e as bact�rias. E essas duas entidades s�o a base da pr�pria vida. Dizemos que essas criaturas s�o invis�veis apenas porque n�s n�o as podemos ver. Chamamos-lhes de micro-organismos. Custa-nos dmitir, mas quem controla a exist�ncia e a evolu��o da vida s�o essas criaturas ditas invis�veis. N�o somos n�s. Essas criaturas est�o, nesse sentido, mais pr�ximas de Deus do que n�s.
Com o isolamento social, nos tornamos mais nost�lgicos. Voltamos a ter tempo para pensar nas pessoas que �ramos, na utopia... H� um embate claro entre o homem dito “produtivo” (que executa tarefas) da pr�-pandemia e o homem “contemplativo” (e potencialmente criador) de hoje. Quem prevalecer�?
Primeiro, o isolamento social tornou-se nost�lgico para quem podia, como eu, dar-se ao luxo da nostalgia. Mas h� quem corre o risco de n�o poder sobreviver com esse isolamento. A maior parte das fam�lias mo�ambicanas que vivem no limiar da pobreza n�o teriam tempo de chegar � nostalgia numa condi��o de isolamento total e obrigat�rio. Morreriam antes disso. Em segundo lugar, n�o acredito nessa divis�o entre um passado produtivo e um presente contemplativo. A quest�o � que apenas para uma pequena minoria � poss�vel combinar produ��o e contempla��o. O mundo tem que ser virado do avesso para que esse direito de a��o e introspec��o seja privil�gio de todos. Mas � preciso mais do que isso: � preciso interrogar essa a��o e essa contempla��o. Quando agimos � no interesse de quem? Na maior parte das vezes, agimos ao servi�o de ditames sutis de um patr�o invis�vel. Jos� Saramago falava dessa cegueira coletiva. As novas ditaduras j� n�o precisam de ditadores. Usam-nos, depois de nos roubar a vis�o cr�tica do mundo. Ainda agora h� apelos para voltar � normalidade (sair do isolamento social). A economia deve continuar, dizem. Mas que normalidade e que economia estamos a falar? Num pa�s como Mo�ambique, a aplica��o cega das solu��es implementadas em outros pa�ses seria um desastre social e humanit�rio de propor��es gigantescas. A maior parte da nossa sociedade sobrevive na esfera da economia informal. Essa economia continua a ser invis�vel aos olhos dos governantes, ainda que ela ocupe a maioria da popula��o.
Pobres e exclu�dos ser�o as principais v�timas dessa doen�a. As pol�ticas p�blicas — tanto na Europa, como em pa�ses da �frica e no Brasil — n�o focam no menos favorecido. O v�rus veio escancarar a trag�dia silenciosa provocada por ideologias liberais. O que fazer?
Sim, o caminho sempre esteve a�. Poucos o queriam ver. Espero bem que uma larga maioria das pessoas entenda que h� de empreender mudan�as radicais. N�o se trata mais de escolher pessoas diferentes nas elei��es. Trata-se de apostar numa nova ordem em que as institui��es do Estado n�o sejam conduzidas pelos des�gnios do mercado. Um mercado “livre” aprisiona os cidad�os tanto como a mais cruel das ditaduras.
Como � sua rotina criativa?
N�o tenho rotina. N�o separo a cria��o do resto do que fa�o. S� me interessa a profiss�o de bi�logo enquanto for capaz de me apaixonar por novas perspectivas de olhar o processo da vida e os seus mist�rios. A ci�ncia que uns querem exata, eu quero aberta e t�o criativa como a literatura. Em geral, trabalho de manh� numa empresa mo�ambicana que faz estudos de impacto ambiental. � tarde, trabalho ou em casa escrevendo ou numa funda��o cultural que eu e os meus irm�os criamos em Maputo para apoiar a cria��o art�stica de jovens mo�ambicanos. Sou dado a ins�nias e �, sobretudo ao longo da noite, que vou escrevendo textos liter�rios.
� dif�cil tra�ar cen�rios, mas que li��o devemos tirar de tudo isso?
H� mil li��es. Primeiro, n�o � verdade, como se queixa o Donald Trump, de que n�o se tenha previsto pandemias exatamente deste tipo. Outras vir�o. E ir�o requerer respostas mais robustas e globais. J� falei de alguns recados que devem ser levados a s�rio se n�o quisermos reagir de forma despreparada. E repare: uma das raz�es por que h� pessoas portadoras deste v�rus � a resposta desproporcionada do nosso sistema imunit�rio. O mesmo se passa com a resposta a n�vel da sociedade: o �nico rem�dio que nos resta provoca consequ�ncias econ�micas e sociais terr�veis. Uma das grandes li��es de que n�o falei � o valor da coopera��o. Talvez seja algo apenas epis�dico, mas � uma estimulante novidade haver laborat�rios e empresas a trocar informa��es e conhecimento. Esses segredos eram considerados a “alma do neg�cio”. Outra aprendizagem: a pesquisa cient�fica deve responder �s necessidades da humanidade e n�o focar na busca do lucro imediato. � poss�vel que valorizemos de forma mais justa quem est� � nossa volta e � ofuscado pelo brilho das carreiras de sucesso: os m�dicos, os enfermeiros, os professores, os catadores de lixo, os jornalistas, todos aqueles que neste momento de crise se revelam com toda a dimens�o humana das suas profiss�es.