Que tipo de analogias o dist�pico cl�ssico da literatura inglesa 1984, de George Orwell, suscita quando se observa, neste 2020, o governo brasileiro?
Devemos lembrar que 1984 � um romance, uma obra de fic��o, n�o um tratado nem um ensaio, e, neste sentido, est� sujeito a instabilidades pr�prias de sua fatura liter�ria e se encontra enraizado num contexto hist�rico e pol�tico espec�fico, que precisa ser compreendido. Se n�o tomarmos esse cuidado, corremos o risco de abonar leituras que deturpam o esp�rito da obra ou de seu autor, como a que procuraram impor o governo e parte da m�dia americana nos anos 1950 e 1960. Sabe-se que a CIA, por exemplo, financiou secretamente vers�es de 1984 e da Revolu��o dos bichos, com o objetivo de veicular uma ideologia deturpada. Levando-se a ressalva em considera��o, creio que podemos afirmar com seguran�a que a obra de Orwell vem � mente sempre que um governo ou uma parcela da popula��o flerta com o totalitarismo, acena para a substitui��o do estado democr�tico pelo regime do terror, o que pressup�e tamb�m o fim da ideia de liberdade individual. H� uma passagem no livro de Hannah Arendt, Origens do totalitarismo, que, para mim, ecoa tanto o romance quanto o que vivemos hoje. O trecho diz mais ou menos que o jugo totalit�rio pressup�e preparar o indiv�duo para exercer o papel de ao mesmo tempo v�tima e carrasco. Para esse indiv�duo, disposto a denunciar o vizinho, a matar e morrer (em tempos de pandemia, n�o poderia soar mais exato) em nome da figura de um comandante supremo, j� n�o existe distin��o entre fato e fic��o e entre o verdadeiro e o falso. Esse estado de coisas n�o ocorre s� no Brasil, embora aqui naturalmente adquira fisionomia e funcionamento pr�prios, mas em v�rias partes do mundo, nos Estados Unidos, na Hungria, na �ndia, nas Filipinas, entre outros, onde o ultraliberalismo globalizado, encabe�ado por um punhado de ultrarricos, consegue manipular as massas com amparo da moderna tecnologia eletr�nica. Trata-se de um momento muito perigoso da Hist�ria; n�o � exatamente o mesmo que vem estampado no romance, mas penso que esteja l� insinuado, nas filigranas e nas instabilidades que eu mencionei no in�cio.
Em meio � pandemia que j� matou mais de 400 mil pessoas no mundo e, s� no Brasil, antes de atingir o pico da dissemina��o da doen�a, as mortes j� passam de 35 mil, o Minist�rio da Sa�de anunciou a altera��o da forma de divulga��o dos n�meros de �bitos em nosso pa�s. Alguma semelhan�a ao Minist�rio da Verdade, que edita permanentemente fatos do passado e do presente?
Como sabemos, o Minist�rio da Verdade se ocupa no romance da manipula��o e deturpa��o dos fatos. Cuida de falsear a Hist�ria. Com isso, ao mesmo tempo a anula, pela constante aboli��o e adultera��o dos acontecimentos, e a exacerba, pois a transforma em fonte privilegiada da ideologia do poder dominante. Sem d�vida, essa � uma das dimens�es do estado totalit�rio de que estamos falando, que implica a indistin��o entre o verdadeiro e o falso. Os dados, como, no seu exemplo, o n�mero de infectados ou de mortos pela Covid, n�o apenas poderiam passar como verdadeiros, como se transformam na verdade. � muito grave. Veja que Orwell associa essa deturpa��o � tecnologia, ainda que ela hoje nos pare�a rudimentar conforme descrita no romance. Mas � a tecnologia que fornece os meios para essa adultera��o, um pouco como a tecnologia eletr�nica atual � auxiliar important�ssimo na promo��o de governantes desp�ticos e tir�nicos, com seu elogio � ignor�ncia e � barb�rie, por meio, por exemplo, das fake news.
N�o apenas no caso recente dos dados da Covid-19, mas alguns ministros do governo Bolsonaro fazem coro com o movimento internacional de extrema direita - a alt-right – em que a realidade factual e objetiva � permanentemente editada e manipulada. Al�m disso, h� um estado permanente de guerra, amea�as autorit�rias dirigidas pelo presidente Bolsonaro � sociedade e aos “inimigos internos” – ou seja, todos que ousam criticar o governo. O sr. imaginou viver tal distopia no s�culo 21?
Nunca! E ainda em meio a uma pandemia, quando a raz�o e o bom-senso mostram que os estados democr�ticos, de bem-estar social, s�o os mais bem equipados para lidar com a crise e proteger seus cidad�os. Voc� tem raz�o de falar da ideologia globalizada da alt-right. Ela � perfeita para proteger essa meia d�zia de ultramilion�rios e seu absoluto descaso com os cidad�os, os trabalhadores, o outro. A �tica regressa ao patamar baix�ssimo da �poca da ascens�o do nazismo, quando o fil�sofo Walter Benjamin famosamente afirmou que as a��es da experi�ncia moral eram desmentidas pelos governantes. Benjamin escreveu isso na d�cada em que Orwell foi lutar na Guerra Civil Espanhola, epis�dio que acendeu no escritor sua repulsa ao totalitarismo. Talvez seja preciso experimentar algo do que eles viveram para entender at� a medula o que quiseram dizer. Nunca para mim ficou mais evidente como hoje a perversidade desse tipo de capitalismo, que literalmente condena milhares � morte em nome do lucro de poucos. Muitos v�o para o abatedouro porque n�o t�m op��o, mas outros porque acham que � o certo. N�o esque�amos. Preparados para exercer o papel de v�tima ou carrasco.
Quando escreveu 1984, Orwell discutia a quest�o do controle do Estado totalit�rio sobre o cidad�o. Hoje, contudo, al�m da espionagem individualizada de organismos como a National Security Agency (NSA) sobre os cidad�os do planeta, temos tamb�m uma certa vigil�ncia social permanentemente exposta nas redes sociais. � como se cada indiv�duo tivesse se tornado um Grande Irm�o. O direito � privacidade se tornou hoje uma utopia?
Parece-me que Orwell estava mais interessado em defender o direito � liberdade individual, uma conquista hist�rica que ele queria ver estendida a toda a popula��o, incluindo os mais pobres. Veja que Orwell defendia a redistribui��o ou limita��o de renda, preconizando que a diferen�a m�xima de ganhos entre os mais ricos e mais pobres fosse no m�ximo de 10 para 1. De l� para c� a situa��o s� piorou. No ano passado, a fortuna combinada dos 26 mais ricos do mundo, de $1.4 trilh�o, correspondeu � renda total de 3,8 bilh�es das pessoas mais pobres, segundo relat�rio da Oxfam Internacional, que concluiu que os mais ricos nunca foram t�o ricos. � assustador. Para que a redistribui��o ocorresse, Orwell dizia que seria preciso uma mudan�a radical, tirando o poder das m�os da classe dominante. Ele projetava uma a��o revolucion�ria. N�o se sustenta, portanto, nem por um segundo, a inten��o de conservadores ou da extrema direita de usar 1984 para defender o empreendedorismo e o american way of life. No entanto, concordo com voc� que o embaralhamento entre as esferas p�blica e privada � algo que estamos vivendo e que encontra respaldo nas situa��es descritas pelo romance.

1984
- De George Orwell
- Tradu��o de Alexandre Hubner e Helo�sa Jahn.
- Apresenta��o de Marcelo Pen.
- 408 p�ginas
- R$ 119,90