
Um fantasma assombra o mundo e, em particular, as Am�ricas. Contrabandeado, ronda o Brasil. Em princ�pio, insinuava-se; para logo revelar-se ostensivamente, em passos acelerados ao encontro da distopia orwelliana. Estado de guerra permanente contra o “inimigo interno” e externo, fiscaliza��o constante do indiv�duo e de grupos oposicionistas, crescente militariza��o da sociedade e da pol�tica, redes do �dio para a promo��o de linchamentos virtuais e mobiliza��o das bases acr�ticas contra velhos e novos advers�rios.
Mais de setenta anos depois da publica��o, os contextos hist�ricos s�o completamente diferentes. Mas 1984 – relan�ado pela Companhia das Letras em edi��o com projeto gr�fico diferenciado e textos de ensa�stas consagrados, – segue atual�ssimo. George Orwell, que morreu aos 46 anos em 1950, muito pobre e em condi��es de sa�de prec�rias, � aquele que mais somou em vendas no s�culo 20, posi��o para a qual retorna insistentemente: acaba de voltar �s listas dos livros mais vendidos no Brasil.
Duas vers�es para o cinema
Em permanente guerra interna e externa, s�o estados que se constroem nos moldes do roteiro anunciado em Oce�nia, sob comando do Grande Irm�o: “Guerra � paz; Liberdade � escravid�o; Ignor�ncia � for�a”. Como se chega l�? Como tais tiranias se consolidam, em que ideologias se sustentam, eis a pergunta perseguida por Orwell em 1984 e em outras obras, como A revolu��o dos bichos e o ensaio A pol�tica e a l�ngua inglesa.
Manipula��o da l�ngua
Ao moldar pensamentos e impulsionar para a a��o, a linguagem ganha papel central na obra de Orwell. E � precisamente por meio da manipula��o da l�ngua, – palavras s�o ditas para enfraquecer significados e corromper ideias, para banalizar o mal, descompromissando-se com a dignidade humana – que se estabelecem as funda��es do estado totalit�rio. � assim que os “Campos de Lazer”, s�o, em verdade, campos de concentra��o para o trabalho for�ado. � no “Minist�rio do Amor” onde prisioneiros do regime s�o detidos e torturados. E � no “Minist�rio da Paz” onde a guerra permanente � urdida. Toda essa ambiguidade conduz ao “duplipensamento”, uma confus�o mental paralisante.Pela manipula��o de fatos e estat�sticas por parte do Minist�rio da Verdade, as realidades paralelas s�o constru�das; impera o revisionismo hist�rico permanente, destruindo a mem�ria e as refer�ncias f�ticas. Em Oce�nia, o passado � mutante. Tais s�o os fundamentos para a promo��o da disson�ncia cognitiva coletiva, condi��o necess�ria � submiss�o consentida ao l�der e ao estado opressor.
Rela��es com o Brasil atual
“S�o muitos os signos de 1984 que s�o vis�veis do Brasil de hoje: a polariza��o como mecanismo de poder pelo poder; o horror � intelig�ncia; os minist�rios da educa��o que deseduca, ou da verdade encarregados da propaga��o da mentira, sempre com a ret�rica da viol�ncia; o esp�rito da persegui��o e a estupidez como valor; a vol�pia da ignor�ncia e a guerra permanente. A fic��o de Orwell permanece poderosa”, avalia o romancista Cristov�o Tezza, autor de livros como A tirania do amor e O filho eterno.“Orwell � uma das figuras mais fant�sticas da cultura do s�culo 20. Viveu intensamente a turbul�ncia do seu tempo, da guerra civil espanhola � Segunda Guerra Mundial. Nascido na �ndia, viu a Europa na perspectiva da col�nia. E, com o desprendimento dos santos, viveu durante um tempo praticamente como um mendigo. Sob todas as tenta��es ideol�gicas do momento hist�rico que viveu, e n�o eram poucas, manteve intacto um olhar sobre a dignidade humana que lhe permitiu chegar ao miolo do esp�rito totalit�rio e dos mecanismos do poder, em duas obras que parecem nunca perder atualidade: A revolu��o dos bichos e 1984”, considera Tezza.
“A atualidade da obra est� no fato de que a sombra totalit�ria nunca se apaga: ela est� sempre ao lado. E h� sempre algu�m disposto a abra��-la, porque o mem�ria dos ensinamentos da Hist�ria n�o � garantia de nada se o processo civilizador se esfarela”, diz.
A verdade reeditada
Em Oce�nia, a verdade � permanentemente mutilada. E reeditada. Fato e fic��o se misturam, imposs�vel diferenci�-los. Mentes e corpos controlados em tempo integral, mesmo na intimidade do lar, onde a teletela a tudo v� e ouve. Ousar se rebelar face a tamanha tirania significa a pena de morte, expedida pela Pol�cia das Ideias. Os momentos cat�rticos s�o cuidadosamente dirigidos aos velhos e novos “inimigos” de estado, que se rebelaram contra a tirania.Alguns ex-aliados do regime s�o linchados em exibi��es p�blicas di�rias, denominadas “Dois minutos de �dio”. Em guinchos estridentes, a berraria raivosa transborda contra os “escolhidos” da vez. Quase em esp�cie de hipnose, os indiv�duos se tornam afeitos ao controle e � opress�o estatal: est�o completamente dependentes das defini��es e narrativas valorativas do Grande Irm�o, o messias, que constr�i realidade � margem da realidade, para que a horda cultivada de ignorantes passe a aceitar o inaceit�vel, o repugnante, aquilo que ofende a vida e a dignidade humana.
“O que temos hoje no Brasil � um 1984 em segunda m�o, uma leitura afastada da realidade, sem qualquer empatia, focada na destrui��o do outro, no sentido coletivo. Nem original �, pois este daqui (Bolsonaro) filtra de l�, do americano (Trump), e d� os passos para tentar implantar uma vers�o tupiniquim de estado totalit�rio”, avalia J�lio Jeha, professor titular aposentado de estudos liter�rios da UFMG, especializado em literatura de l�ngua inglesa. “Estamos vivendo 1984, sim, no sentido de se construir os fundamentos para o estado autorit�rio, uma ditadura tupiniquim por pessoas divorciadas da realidade. Criaram os 300 de Esparta, mas nas fotos n�o h� 30 pessoas. Onde est�o os 300?”, critica.
O gabinete do �dio
Em analogia � linguagem ficcional chamada por Orwell de novil�ngua – ou novafala – desenvolvida pelo estado autorit�rio para restringir o escopo do pensamento e apartar o indiv�duo da capacidade da empatia, J�lio Jeha assinala diversos exemplos: “A constante cita��o b�blica ‘E conhecereis a verdade e a verdade vos libertar�’ , cumpre a fun��o da novil�ngua. Soa como um deboche se quem fala, s� diz mentiras. O gabinete de �dio, a f�brica de fake news para criar realidades paralelas e atacar advers�rios, � o contr�rio de tudo o que se prega”, considera J�lio Jeha.“Da mesma forma o bord�o da amea�a do comunismo, a ideia de que a popula��o armada jamais ser� escravizada. H� v�rios tipos de escravid�o. Esses seguidores s�o escravos mentais, ideol�gicos, n�o t�m senso cr�tico”, afirma o professor, considerando que, em Orwell, a novil�ngua � elaborada pelos detentores do poder, para impedir a express�o de opini�es contr�rias ao regime, para conformar o pensamento e impedir a a��o pol�tica.
'A linguagem molda o ser humano'
Para Marcelo Pen, professor doutor em teoria liter�ria e literatura comparada (USP), que faz a apresenta��o da nova edi��o pela Companhia das Letras de 1984, a Novafala representa, por meio do empobrecimento da linguagem, a perda da capacidade para a reflex�o e para a a��o revolucion�ria. “A linguagem molda o ser humano, mas tamb�m pode servir como mecanismo de opress�o e controle. O fil�sofo judeu Victor Klemperer � testemunha-chave desse processo. Sua hist�ria � fant�stica, tamb�m porque sobreviveu ao Reich morando em Dresden, na Alemanha, tendo conseguido n�o ser enviado aos campos de concentra��o”, considera Pen.“Em seus di�rios, ele mostra como a manipula��o da linguagem e o seu rebaixamento contribu�ram para instilar a ideologia nazista, como se fosse veneno ministrado em doses min�sculas”, afirma, lembrando que, por outro lado, 1984, que tamb�m trata do risco da degrada��o da linguagem, sugere ainda que as grandes obras do pensamento e da imagina��o, como as liter�rias, t�m a capacidade de resistir a essa manipula��o. “Sugere que a fase final da domina��o n�o logra �xito por causa dessa resist�ncia. � uma mensagem bonita, muito sutil, quase invis�vel no romance, que restaura um pouco da confian�a na humanidade”, assinala.