(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas VIDAS P�STUMAS

'Fui fisgada pela inesperada modernidade e ousadia' de Machado de Assis

A tradutora norte-americana Flora Thomson-DeVeaux narra como levou para o ingl�s as ''rabugens de pessimismo'' de Br�s Cubas, o defunto autor de Mem�rias p�stumas


05/06/2020 04:00 - atualizado 12/06/2020 18:01

Br�s Cubas, o defunto autor que escrevia com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, acaba de ressuscitar novamente. Desta vez, n�o por meio de seu criador, Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), mas pelas m�os da tradutora norte-americana Flora Thomson-DeVeaux. Coube � pesquisadora, que se debru�ou sobre a obra do escritor brasileiro para a sua tese de doutorado, verter para o ingl�s as “rabugens de pessimismo” do personagem eternizado por meio de suas mem�rias p�stumas. Com o t�tulo de The posthumous memoirs of Br�s Cubas, a obra-prima de Machado de Assis (“Um dos maiores autores negros das Am�ricas”, destaca o material de divulga��o) foi lan�ada no in�cio da semana nos EUA pela cole��o Penguin Classics, uma das mais tradicionais do mundo. Outra tradu��o, realizada por Margaret Jull Costa e Robin Patterson, sai em breve pela editora nova-iorquina Norton. 

No pref�cio da edi��o da Penguin, o escritor Dave Eggers destaca o humor do livro e sa�da o trabalho de Flora Thomson-DeVeaux por capturar o tom de Machado, “ao mesmo tempo mordaz e melanc�lico, autolacerante e rom�ntico.” Ela iniciou a tradu��o em 2017, mas pesquisou a obra por dois anos para o doutorado em estudos portugueses e brasileiros pela Brown University. “Costumo dizer que foi um processo que, no total, levou cinco anos. Eu n�o teria dedicado esses anos da minha vida se n�o tivesse a convic��o de que era para traduzir um romance que atravessa �pocas”, comentou Flora na �ltima ter�a-feira, ao receber os primeiros exemplares de sua tradu��o. A tiragem inicial esgotou no primeiro dia de lan�amento.



Moradora do Rio de Janeiro h� tr�s anos, a tradutora, nascida em Charlottesville, esteve pela primeira vez na cidade em 2011. “Reconhe�o o Rio do Machado nas pessoas, nas intera��es, o tempo todo. Na paisagem, isso pode requerer um exerc�cio mais ou menos consciente de abstrair interven��es urbanas contempor�neas”, acredita Flora, que trabalha como diretora de pesquisas na produtora de podcasts R�dio Novelo: “Tenho muita saudade de andar de �nibus no Catete, na Gl�ria, no Centro – olhando do primeiro andar pra cima, d� para fingir tranquilamente que se est� no Rio de, se n�o o de Br�s Cubas, ent�o talvez o do Conselheiro Aires.”

Flora Thomson-DeVeaux, que tem a palavra “traquinas” como uma de suas favoritas nas p�ginas de Machado, n�o chegou a usar o mesmo expediente do escritor: “Admiro quem tem esse talento, mas sou mais de colocar uma nota enorme de fim de livro explicando as min�cias das traquinagens machadianas”. Al�m de estudar as personagens femininas de Mem�rias p�stumas, a tradutora revela fasc�nio por outra mulher machadiana: “Sempre fico um pouco assombrada pela figura da minha xar�, a Flora de Esa� e Jac�, que vai sofrendo e definhando, paralisada pela indecis�o. � uma trag�dia potencial cujo perigo os tradutores conhecem muito bem”. 

Antes da entrevista com Flora Thomson-DeVeaux, um aviso ao leitor. As �ltimas palavras deste par�grafo pertencem a Br�s Cubas, “um defunto, que se pintou a si e a outros conforme lhe pareceu melhor e mais certo”, segundo Machado de Assis: “A obra em si mesma � tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te n�o agradar, pago-te com um piparote, e adeus”.    

Flora Thomson-DeVeaux: encanto com a complexidade das personagens femininas de Machado(foto: Paula Scarpin/Divulgação)
Flora Thomson-DeVeaux: encanto com a complexidade das personagens femininas de Machado (foto: Paula Scarpin/Divulga��o)


Quais as suas primeiras rea��es e os primeiros encantos com a leitura de Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas?
Meu primeiro encontro com Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas foi no segundo ano da faculdade, que foi tamb�m meu segundo ano de estudo da l�ngua portuguesa. J� estava plenamente fascinada pelo estudo do Brasil, e acho que de alguma forma senti que estava na hora de encarar um mestre da literatura brasileira. Lembro-me bem de estar no meu quarto, no dormit�rio da faculdade, e ficar espantad�ssima logo no come�o com as imagens amalucadas, as alfinetadas no leitor, o sarcasmo feroz.

Minha primeira impress�o era de que n�o parecia ser um romance do s�culo 19, o que acho que � uma rea��o comum – mas o processo de conviver profundamente com o livro durante a tradu��o me mostrou o qu�o impregnado o texto est� das quest�es daquela �poca. Ganhamos muito ao ler Mem�rias p�stumas plenamente contextualizado, e por isso fiz quest�o de incluir notas de fim de livro na edi��o da minha tradu��o. 

Voc� estudou e escreveu sobre as tr�s tradu��es anteriores do livro no artigo “Reading Machado through the looking-glass: case studies from the translations of Mem�rias p�stumas”.  Por que decidiu fazer a sua pr�pria tradu��o?
O artigo, na verdade, � um subproduto da minha tese de doutorado, que se debru�ou sobre as tr�s tradu��es anteriores, al�m de incluir a minha tradu��o do romance como um dos cap�tulos. Tudo come�ou em 2014, quando fui contratada para traduzir um livro sobre a obra de Machado, do cr�tico e professor Jo�o Cezar de Castro Rocha – saiu em ingl�s como Machado de Assis: toward a poetics of emulation.

O livro � recheado de cita��es da obra machadiana, como se imaginaria. Meu plano era de citar as tradu��es angl�fonas publicadas, sempre que poss�vel, mas em muitos casos acabei vendo que as tradu��es existentes n�o se “encaixavam” na an�lise do professor, que tem um olhar muito atento para as min�cias do texto. 

Isso n�o significava que as tradu��es estivessem erradas e que o cr�tico estava certo, simplesmente apontava para o fato de que as tradu��es existentes n�o contemplavam toda a gama de possibilidades de leitura do Bruxo. Isso deve parecer �bvio, mas foi uma constata��o impactante. Fui obrigada a retraduzir muitas passagens machadianas para o livro, e isso plantou uma semente: entrei no doutorado no mesmo ano e resolvi dedicar esse tempo, esses anos de pesquisa, ao preparo de uma nova tradu��o. Escolhi Mem�rias p�stumas justamente porque foi um dos romances que apresentaram dificuldades no contexto do projeto anterior, e pela for�a do fasc�nio que me inspirara ainda na gradua��o.

Em �ltima an�lise, � imposs�vel desligar a vontade de fazer uma nova tradu��o da vontade de analisar as anteriores. Do ato de ler uma tradu��o por uma �tica cr�tica, nem que seja uma cr�tica construtiva, nasce o desafio: ent�o, como voc� faria diferente? E qualquer retradu��o respons�vel vai implicar uma releitura cuidadosa das interpreta��es que a precederam.

Quais passagens do livro trouxeram maior dificuldade? E as suas passagens favoritas?
Na semana antes do lan�amento da tradu��o, resolvi fazer uma “contagem regressiva” atrav�s de um exerc�cio simples: todo dia, sorteava uma p�gina aleat�ria do romance (para garantir a aleatoriedade, recorri a um gerador de n�meros do Google) para comentar nas redes sociais. Eu j� sabia que mesmo as passagens de mais “simplicidade” aparente escondem armadilhas terr�veis, e esse exerc�cio comprovou que literalmente qualquer p�gina do romance guarda dificuldades fascinantes.

Mas para citar uma frase mais emblem�tica, sofri muito para traduzir de forma sint�tica a invers�o “eu n�o sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor.” � uma bela brincadeira. Minha solu��o foi “I am not exactly an author recently deceased, but a deceased man recently an author.” Quanto �s passagens favoritas, s�o in�meras, mas posso dizer que a experi�ncia de traduzir O del�rio e tentar reproduzir as passagens surreais foi quase psicod�lica.

Como a escrita de Machado de Assis reflete a �poca em que o escritor viveu? 
D� para responder de v�rios �ngulos. Os romances est�o num di�logo claro com quest�es da �poca – sociais, filos�ficas, culturais –, das quais algumas podem estar mais presentes para o leitor de hoje do que outras. O que a escrita menos reflete � o estilo da �poca. O portugu�s do Machado, pelo seu rigor e sua aproxima��o com a oralidade, envelheceu muit�ssimo bem. 

O que considera mais marcante nas personagens femininas do escritor? Por que as descreve, em seu artigo, como “fontes perenes de ambiguidade”? 
Esse foi um dos aspectos que me surpreenderam quando fui observar as diverg�ncias entre as tradu��es de Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas: os tradutores muitas vezes “discordavam” sobre o gestual, a caracteriza��o, e a intencionalidade atribu�das �s personagens femininas.  Elas s�o constru�das com poucas pinceladas, e grande parte da “feitura” das mulheres do romance na verdade cabe ao leitor – ou ao tradutor, no caso. Por exemplo, quando a Marcela abana a cabe�a “com um ar de l�stima,” os tradutores interpretam a carga emocional por tr�s do gesto de maneiras muito diferentes – pode ter um toque de esc�rnio, ou vergonha, ou tristeza.

Com isso, a gente pode supor que a mesma coisa acontece silenciosamente, na cabe�a dos leitores. S� estudei a fundo as caracteriza��es dos personagens deste romance, e pode ser que o mesmo aconte�a com personagens masculinos nos outros livros. Mas posso dizer enquanto leitora que as mulheres do Machado s�o eternamente surpreendentes, e sempre mais complexas do que uma primeira vista pode sugerir. 

Qual o di�logo que Mem�rias P�stumas estabelece com obras de outros autores da �poca?
� um di�logo de igual para igual. Conforme fui fazendo as notas da minha tese e rastreando as alus�es liter�rias dentro do romance, ia tendo a impress�o de que o texto est� sempre se conectando com outros textos, e o resultado � quase uma grande teia de aranha liter�ria. Machado, enquanto leitor on�voro, est� nos mostrando sua “biblioteca” o tempo todo. D� para ver que entre a vers�o que saiu na Revista Brazileira e a vers�o publicada em livro, ele at� retirou algumas alus�es, talvez se sentindo mais seguro, com menos necessidade de desfilar a erudi��o

O que pode despertar o interesse de leitores em ingl�s para Mem�rias p�stumas? 
Acho que o que desperta o interesse de qualquer leitor � exatamente aquilo que me fisgou na primeira leitura: a inesperada “modernidade” e ousadia deste romance do s�culo 19.  Agora, espero que com esta edi��o mais contextualizada, esse primeiro momento de espanto seja seguido por um segundo, de ver como a obra n�o s� tem ra�zes profundas no espa�o-tempo do Brasil do s�culo 19, como tamb�m de observar como o Machado pegou a mat�ria-prima do contexto dele e teceu reflex�es inacredit�veis.

Olhando a recep��o do Machado em ingl�s ao longo dos �ltimos 70 anos, d� para ver que a cada “onda” de tradu��es machadianas ele ganha um pequeno f�-clube de leitores que se sentem quase ultrajados de n�o ter descoberto o mestre antes. Espero que essa tradu��o contribua para engrossar as fileiras


Pref�cio

Dave Eggers

“Um presente glorioso para o mundo”

“Uma obra-prima brilhante e um dos mais espirituosos, divertidos e atemporais livros j� escritos (...). � uma hist�ria de amor – muitas hist�rias de amor, na verdade – e uma com�dia de classe, boas maneiras e ego, tamb�m uma reflex�o sobre uma na��o e uma �poca, um olhar implac�vel sobre a imortalidade e, ao mesmo tempo, uma explora��o �ntima da pr�pria narrativa. Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas � totalmente original e diferente de qualquer outra coisa al�m dos muitos romances publicados posteriormente e que parecem ter se inspirado, de forma consciente ou n�o, no livro de Machado de Assis (...). Esta tradu��o � um presente glorioso para o mundo: brilha, canta; � muito engra�ada e consegue capturar o tom inimit�vel de Machado, ao mesmo tempo mordaz e melanc�lico, autolacerante e rom�ntico”.
 
Trechos do pref�cio escrito por Dave Eggers, autor de romances como O c�rculo e Os monstros, para a edi��o da Penguin  


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)