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Estado de Minas RENOVA��O

Nova edi��o de O amante comprova a perenidade de um amor � prova do tempo

Obra da francesa Marguerite Duras se renova � luz das discuss�es atuais em torno da condi��o feminina


28/08/2020 04:00 - atualizado 28/08/2020 08:31

Marguerite Duras (1914-1996) deixou uma extensa obra liter�ria, iniciada em 1943, com Les impudents (1943), e seguida de outros 43 romances, metade deles publicados no Brasil. Mas at� o lan�amento de O amante, em 1984, ela talvez fosse mais conhecida dos brasileiros como roteirista de Hiroshima, mon amour (1959), o cl�ssico filme de Alain Resnais, ou como diretora de India song (1975), longa-metragem considerado a obra-prima de sua carreira de cineasta – desenvolvida entre os anos 1960 e 1980 e igualmente produtiva.

A popularidade trazida por O amante, por�m, n�o foi algo localizado. Com um estilo, no cinema e na literatura, considerado experimental e fragmentado, ao lan�ar O amante, Marguerite Duras surpreendeu com um romance mais “leg�vel” e ampliou seu p�blico.

O livro foi traduzido para 40 l�nguas, vendeu mais de 3 milh�es de exemplares e ganhou adapta��o para o cinema, por Jean Jacques Annaud – filme que a autora abominou, a ponto de escrever O amante da China do Norte (1991), esp�cie de revis�o da hist�ria da forma que ela considerava mais apropriada a ser transposta para o cinema.

Passadas tr�s d�cadas, O amante retorna em reedi��o da editora Planeta, no selo Tusquets, com nova tradu��o (de Denise Bottmann) e posf�cio de Leyla Perrone-Mois�s. “Se a personagem e os fatos s�o ver�dicos, a escrita liter�ria os transfigura e transcende”, destaca Perrone-Mois�s, citando tamb�m a “estrutura complexa” do romance: “� composto de fragmentos que alternam o passado da narrativa, um passado posterior a este, e o presente da lembran�a”. Na capa da nova edi��o, uma foto da autora, publicada na edi��o original de 1984, que venceu o Pr�mio Goncourt.

E � interessante ler O amante da perspectiva do momento atual para constatar a perenidade da escrita de Marguerite Duras – que, apesar da obra extensa, como dito no in�cio, n�o voltou a ser publicada no Brasil desde a febre de O amante.

Interessante tamb�m notar como esse romance se renova � luz das discuss�es em torno da condi��o feminina, t�o em evid�ncia na atualidade, uma vez que a autora mune sua protagonista de uma autonomia e uma autoconsci�ncia que se imp�em mesmo diante das condi��es terrivelmente desfavor�veis que a cercam.

Inicia��o sexual

Marguerite Duras tinha 70 anos quando escreveu O amante, hist�ria ambientada nos anos 1920 na col�nia francesa da Indochina, Sul do atual Vietn�. A protagonista, uma adolescente de fam�lia francesa, nascida e criada ali, tem sua inicia��o sexual e amorosa aos “15 anos e meio” com um chin�s rico e 10 anos mais velho. “Muito cedo foi tarde demais em minha vida. Aos dezoito anos, j� era tarde demais...”, escreve Duras logo no primeiro cap�tulo do livro.

Ao mesmo tempo, ela enfrenta dificuldades ao lado da m�e, professora prim�ria vi�va, e de dois irm�os, o mais velho viciado em �pio e em jogo. A pouca idade e a inferioridade financeira, por�m, n�o a impedem de tomar as r�deas dessa que nem pode ser chamada de uma hist�ria de amor.

O amante � muito mais o mergulho de uma mulher na pr�pria mem�ria, um resgate p�blico de uma hist�ria �ntima, que implica n�o somente no relacionamento amoroso, mas vasculha rela��es familiares, trazendo � tona lembran�as dolorosas e sentimentos amb�guos. O amante chin�s ocupa na narrativa a fun��o de gatilho para a autora discorrer sobre a rela��o de amor e �dio entre ela, a m�e, infeliz e cada vez mais envolvida pela loucura, o afetuoso irm�o mais novo e o primog�nito, autodestrutivo e ego�sta.

O amante � autobiogr�fico como a maior parte da obra de Marguerite Duras. Ela permaneceu na Indochina at� os 18 anos numa condi��o marginal, tanto em rela��o aos asi�ticos quanto aos franceses que ali viviam, dada a situa��o de pen�ria a que chegou sua fam�lia, depois que a m�e foi ludibriada na compra de terras onde pretendia cultivar arroz – que, descobriu-se depois, eram terrenos alagados, improdutivos.

Duras conseguiu ser repatriada para prosseguir os estudos, mas em Paris n�o teve vida mais amena. Fez parte da Resist�ncia contra a presen�a nazista na Fran�a, viu o marido ser levado para um campo de concentra��o, de onde voltou aniquilado, e enfrentou, na velhice, as consequ�ncias do pr�prio alcoolismo. Essas duras experi�ncias alimentaram a obra de Marguerite Duras, desde Les Impudents, sobre uma jovem de cerca de 20 anos que vive com a m�e e o irm�o em um apartamento nos sub�rbios de Paris.

Poesia e arrebatamento

Mas o conceito de autobiogr�fico talvez n�o seja t�o rigoroso no caso de Duras, uma autora dotada de uma imagina��o, uma sensibilidade e um talento prodigiosos para dar � escrita uma dimens�o po�tica que se tornou marca registrada, tornando-a uma criadora de estilo inconfund�vel. No caso de O amante, h� ainda o fato de que a hist�ria � revista pela autora atrav�s de uma densa camada de tempo, deixando margem para uma recria��o absolutamente livre.

No entanto, aqui o que menos importa � a fidelidade aos fatos ou mesmo os fatos. Marguerite Duras est� menos preocupada em narr�-los do que em percorrer o itiner�rio menos palp�vel dos sentimentos e das sensa��es que eles provocam. “A hist�ria da minha vida n�o existe. Ela n�o existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha. H� vastos espa�os onde se diria haver algu�m, mas n�o � verdade, n�o havia ningu�m...”, escreve ela a acerta altura.

Em O amante, a escritora arrebata o leitor pela extrema delicadeza na condu��o dessa hist�ria que talvez nem exista, narrando ora em primeira, ora em terceira pessoa, indo e vindo no tempo e expondo sem concess�es o mais �ntimo de sua personagem, fr�gil e ao mesmo tempo de assombrosa for�a. A obra pode at� ter sido identificada como um romance mais “leg�vel” da autora, mas n�o h� em suas p�ginas nenhum sinal de que Marguerite Duras tenha sa�do de seu caminho para alcan�ar o sucesso que obteve.

Trechos do livro

“O homem elegante desce da limusine, ele fuma um cigarro ingl�s. Olha a jovem com chap�u masculino e sapatos dourados. Aproxima-se devagar. Visivelmente intimidado. De in�cio, n�o sorri. De in�cio, oferece um cigarro a ela. A m�o treme. H� essa diferen�a de ra�a, ele n�o � branco, ele deve super�-la, por isso treme. Ela lhe diz que n�o fuma, n�o, obrigada.

N�o diz mais nada, n�o diz me deixe em paz. Ele sente menos medo. E diz que parece um sonho. Ela n�o responde. N�o vale a pena responder, o que responderia? Ela espera. Ele pergunta: mas de onde voc� �?. Ela diz que � filha da diretora da escola feminina de Sadec. Ele pensa um pouco e depois diz que ouviu falar dessa senhora, a m�e, de sua falta de sorte com aquela concess�o que teria comprado no Camboja, n�o � isso? Sim, � isso.”
 
***
 
“Nas hist�rias de meus livros que remetem � minha inf�ncia, de repente n�o sei mais o que evitei dizer, o  que disse, acho que falei do amor que sent�amos por nossa m�e, mas n�o sei se falei do �dio que tamb�m sent�amos por ela e do amor que sent�amos uns pelos outros, e do �dio tamb�m, terr�vel, nessa hist�ria comum de ru�na e morte que era a dessa fam�lia em qualquer caso, de amor ou de �dio, e que ainda n�o consigo entender plenamente, ainda me � inacess�vel, oculto no mais fundo da minha carne, cega como um rec�m-nascido no primeiro dia de vida.

Ela � o ponto onde come�a o sil�ncio. O que acontece � justamente o sil�ncio, essa lenta labuta durante toda a minha vida. Ainda estou l�, diante daquelas crian�as possessas, � mesma dist�ncia do mist�rio. Nunca escrevei e pensei que escrevia, nunca amei, e pensei que amava, nunca fiz nada a n�o ser esperar diante da porta fechada. “


O amante
De Marguerite Duras
Tusquets/Planeta
Tradu��o de Denise Bottmann
126 p�ginas
R$ 33,90


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