M�rcio Metzker cria uma utopia nos tr�picos, com um 'pa�s' no Sul da Bahia

M�rcio Metzker, no romance Utopia tropical, parte de uma premissa incr�vel: a cria��o de um pa�s independente no Sul da Bahia por um pol�mico documento secreto do imperador Pedro I, que s� teria sido descoberto na d�cada de 1980. Mas essa fic��o se torna veross�mil gra�as �s engenhosas solu��es que o autor apoia em pesquisa hist�rica. O resultado � uma narrativa fluente e envolvente que prende a aten��o do leitor do primeiro ao �ltimo par�grafo. 

O romance alinha dois fios condutores em cap�tulos alternados: o primeiro come�a numa cidade pequena do Vale do Mucuri, com os problemas familiares de um alfabetizador de adultos desempregado pela extin��o do Mobral e abandonado pela esposa. Depois de uma briga feia com o capataz da fazenda do sogro, ele se refugia no litoral da Bahia.

O segundo fio � a trajet�ria de um campon�s alem�o que vai trabalhar na constru��o de grandes ton�is de vinho para o imperador da �ustria, e conhece uma princesinha que se tornaria a imperatriz Leopoldina no Brasil. Essas biografias t�o divergentes v�o se juntar bem adiante.

Utopia tropical tem quatro narrativas distintas: a primeira � de um romance cl�ssico ambientado em pequenas comunidades interioranas do Brasil e da Europa; a segunda tem o andamento de um romance de aventuras, com epis�dios violentos e a��es espetaculares; a terceira � a cr�nica pol�tica da viabiliza��o de um pa�s independente dentro do Brasil, com todos os desafios econ�micos, pol�ticos, culturais e sociais que isso acarretaria; a �ltima � um painel sobre as adversidades deixadas pela mentalidade colonial no Brasil. O autor atribui o subdesenvolvimento end�mico � incompet�ncia das elites, � subservi�ncia dos governantes e � gan�ncia das oligarquias. 

Os elementos de sucesso dos romances cl�ssicos est�o presentes nessa obra: a trajet�ria de um homem comum que luta para recome�ar a vida, conseguir um novo amor e ganhar o respeito da comunidade. Depois de experimentar as del�cias da riqueza f�cil, sofre uma crise de consci�ncia e toma posi��o definitiva do lado mais fraco da luta de classes.

Ressaltam-se a partir da� as qualidades que, desde o in�cio, conquistaram a simpatia do leitor: sua firmeza de car�ter, a energia para o trabalho e a coragem para graves enfrentamentos. A norma de conduta que adota � o ad�gio criado pelo saudoso bispo dom Pedro Casald�liga: "Vergonha na cara e amor no cora��o" (sugeri a frase ao autor, pelo poder de inspirar as pessoas de boa �ndole). 

A prosa de M�rcio Metzker flui com vivacidade em narrativas de cultura local e aspectos m�sticos que se inserem no campo do realismo fant�stico. � bem verdade que n�o se det�m na ourivesaria liter�ria, preferindo manter um ritmo alucinante na a��o. Mas presenteia o leitor com algumas p�rolas.

As melhores delas est�o nos confrontos com as autoridades e nos momentos mais picantes, como naquele em que o personagem tem uma vis�o moment�nea de seminudez de uma secret�ria francesa, "suficiente para fazer relinchar o garanh�o que �lvaro trazia sujeitado em suas estrebarias mais �ntimas". Metzker confere ao seu protagonista uma forte heterossexualidade que parece fora de moda na literatura atual.  

� certo que os historiadores v�o torcer o nariz, como torcem para todo autor que pendura sua fic��o nos ganchos hist�ricos. V�rias corpora��es s�o tratadas com mordacidade ou ironia, como os advogados, os tabeli�es e a parte ociosa do magist�rio. E n�o s� elas, mas grupos de milit�ncia e movimentos inseridos no campo da esquerda que o autor alfineta, como as feministas e os ecologistas. Mesmo sabendo que hoje existem movimentos identit�rios que cumprem um papel precioso na luta de transforma��o social, temos que reconhecer que as patrulhas ideol�gicas est�o de armas afiadas.

No momento atual, � temeridade provocar a esquerda, ao mesmo tempo em que detona o fisiologismo da direita, mas o autor assume que escreve para suscitar pol�micas e n�o para agradar aos amigos.

Utopia tropical vai descontentar quem espera encontrar a narrativa ut�pica idealizada de uma sociedade perfeita. Tamb�m zomba do ide�rio dos hippies contemplativos, que buscam a felicidade, a paz interior, o eu verdadeiro pela comunh�o com a natureza. Mas o leitor vai encontrar os ingredientes qu�micos que s�o o passaporte para essas viagens esot�ricas, porque o pa�s ut�pico legalizou todos os tipos de drogas psicoativas.

Por outro lado, os epis�dios de vingan�a e retalia��o v�o funcionar como catarse para o leitor, e muitos v�o gostar de ver a puni��o rigorosa dos crimes. Outros, como eu, ficar�o chocados com as solu��es primitivas que adotam. Afinal de contas, lutamos a vida toda pela consolida��o de uma pr�tica centrada nos direitos humanos em toda a administra��o p�blica, especialmente nas pol�cias, e para continuar os avan�os no processo civilizat�rio. Na utopia de M�rcio Metzker, a justi�a � veloz e cruenta. N�o oferece atenuantes nem leni�ncia para assassinos ou para corruptos. 

Grandes surpresas aguardam o leitor no fim do livro. Quando o novo pa�s come�a a dar certo e completa uma d�cada de desenvolvimento e prosperidade, uma amea�a fascista se levanta no horizonte pol�tico brasileiro e um desfecho dram�tico se anuncia. �s portas desse confronto, o autor se redime das alfinetadas que desferiu contra a esquerda, porque aponta todo o peso de sua literartilharia contra a estupidez da direita cega e ideol�gica.

Por qualquer �ngulo que se veja, Utopia tropical � um romance capaz de agradar a todos os p�blicos. Seria incorreto limit�-lo ao r�tulo de romance pol�tico. Tem paix�es arrebatadoras, sensualidade e romantismo,  aventuras trepidantes, umbanda e candombl�, festas populares, temas cient�ficos, avan�os tecnol�gicos. Identifico nessa obra elementos do genial Gabriel Garc�a-M�rquez, que assim se definia: "Sou um jornalista, fundamentalmente. Toda a vida fui jornalista. Os meus livros s�o livros de jornalista, embora se veja pouco".

>> M�rcio Metzker

>> Outubro Edi��es

>> 596 p�ginas

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