
"A literatura � o pr�prio exerc�cio da alteridade, do colocar-se no lugar do outro. Se estiv�ssemos autorizados somente a escrever a partir do nosso lugar de fala, a literatura estaria em s�rio risco. Todavia, eu acredito na import�ncia da representatividade"
Andr� Timm
Em outubro de 2015, o haitiano Fetiere Sterlin caminhava, na companhia da esposa, pelas ruas de Navegantes, litoral de Santa Catarina, quando um grupo de adolescentes passou de bicicleta e o chamou de “macici” (homossexual na l�ngua crioula). Fetiere respondeu �s provoca��es, devolvendo o xingamento.
Ent�o, um dos adolescentes sentenciou: “Se eu sou 'macici', voc� vai morrer”. Horas depois, enquanto conversava com a esposa em frente � sua casa, o grupo voltou munido de p�s e facas. Fetiere foi atacado brutalmente com in�meros golpes e perfura��es, e morreu a caminho do hospital.
Ent�o, um dos adolescentes sentenciou: “Se eu sou 'macici', voc� vai morrer”. Horas depois, enquanto conversava com a esposa em frente � sua casa, o grupo voltou munido de p�s e facas. Fetiere foi atacado brutalmente com in�meros golpes e perfura��es, e morreu a caminho do hospital.
Esse n�o foi o �nico ataque registrado naquele ano. De acordo com a Associa��o de Haitianos de Navegantes, in�meros imigrantes foram v�timas de crimes de xenofobia, tanto em ataques f�sicos quanto verbais. Sobreviventes do terremoto que destruiu seu pa�s de origem em 2010, muitos buscaram novas oportunidades de vida em Santa Catarina, onde foram recebidos com preconceito e �dio, tamb�m disseminados em perfis de redes sociais que alegavam que estavam ali para roubar os empregos da popula��o local.
Cinco anos depois da morte de Fetiere, a viol�ncia e a xenofobia contra os imigrantes inspiraram o escritor ga�cho Andr� Timm, finalista do Pr�mio S�o Paulo de Literatura em 2017 com Modos inacabados de morrer, a escrever o romance Morte Sul Peste Oeste. A trama acompanha Dominique Baptiste Monfiston, um haitiano que deixa esposa e filho em seu pa�s arrasado e, atrav�s da a��o de “coiotes”, chega ao Brasil em busca de um futuro melhor. Ao atravessar a fronteira, recebe ent�o uma proposta de emprego num grande frigor�fico em Santa Catarina, por�m um incidente o obriga a mudar radicalmente seus planos, colocando-o numa espiral alimentada por preconceito e �dio.
Paralelo � saga de Dominique, corre a hist�ria de Brigite, uma menina trans de 13 anos que � submetida a um regime de abusos ao se ver obrigada pela pr�pria m�e a se prostituir e a conviver com o seu namorado violento. Por�m, apesar das adversidades, Brigite � dotada de uma extraordin�ria for�a para viver o sonho de ser cineasta. E, quando seu destino e o de Dominique se cruzam, � o uso do afeto contra a viol�ncia que fazem com que busquem reden��o em territ�rio estrangeiro, no estrangeirismo do pr�prio corpo.
Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, Timm fala sobre o processo de constru��o do novo romance, suas inspira��es e a import�ncia de uma literatura cr�tica em tempos de extremismo e de cultura do �dio. Morador do Oeste de Santa Catarina, estado predominantemente bolsonarista, o autor conhece de perto as manifesta��es p�blicas de intoler�ncia. “Embora eu n�o queira afirmar que todo eleitor de Bolsonaro seja xen�fobo ou homof�bico, por outro lado, � ineg�vel que muitos de seus seguidores endossam seus posicionamentos retr�grados e inclusive o admiram por isso”.
Embora se trate de um romance, Morte Sul Peste Oeste tem um aspecto tem�tico muito fundamentado na atual realidade nacional e internacional. Partindo ent�o da frase do fil�sofo ingl�s Jeremy Betham de que “daquilo que � real n�o se pode dar nenhuma explica��o clara, a n�o ser por meio de algo fict�cio”, em que momento a necessidade de contar essa hist�ria chegou at� voc�?
A quest�o dos expatriados hoje � um problema de propor��es globais. A intoler�ncia tamb�m. Enquanto esp�cie, parece que perdemos nossa capacidade de empatia, de aceitar qualquer posi��o que n�o seja a nossa pr�pria. Nos tornamos intolerantes a outras cren�as, outros credos, escolhas, g�neros. Estamos bin�rios e isso � p�ssimo, pois nos faz analisar as coisas como se s� existissem duas possibilidades, enquanto h� um matiz delas.
Pergunto-me se isso representa a maioria de n�s ou se uma minoria muito barulhenta. Espero que se trate da segunda op��o. Um migrante haitiano e uma menina trans de 13 anos s�o expatriados da pr�pria terra e do pr�prio corpo, v�timas da nossa binariedade limitante. No que toca � realidade dos haitianos, h� anos vejo isso de uma perspectiva pr�xima, pois moro no Oeste catarinense, local escolhido por muitos migrantes haitianos, senegaleses e venezuelanos devido ao grande n�mero de frigor�ficos. S�o hist�rias que me tocam com tristeza, porque � t�o evidente que n�o precisaria ser dessa maneira.
Pergunto-me se isso representa a maioria de n�s ou se uma minoria muito barulhenta. Espero que se trate da segunda op��o. Um migrante haitiano e uma menina trans de 13 anos s�o expatriados da pr�pria terra e do pr�prio corpo, v�timas da nossa binariedade limitante. No que toca � realidade dos haitianos, h� anos vejo isso de uma perspectiva pr�xima, pois moro no Oeste catarinense, local escolhido por muitos migrantes haitianos, senegaleses e venezuelanos devido ao grande n�mero de frigor�ficos. S�o hist�rias que me tocam com tristeza, porque � t�o evidente que n�o precisaria ser dessa maneira.
Um elemento que marca o processo migrat�rio de Dominique � o preconceito. Logo ap�s se basear em Santa Catarina e conseguir um emprego num frigor�fico, um incidente o faz v�tima de ataques de xenofobia. Qual a import�ncia de trazer essa discuss�o para a obra, sobretudo posta no contexto de um estado predominantemente branco?
Bolsonaro foi o mais votado em 266 das 295 cidades de Santa Catarina. Em Chapec�, ele obteve quase 65% dos votos. Embora eu n�o queira afirmar que todo eleitor de Bolsonaro seja xen�fobo ou homof�bico, por outro lado, � ineg�vel que muitos de seus seguidores endossam seus posicionamentos retr�grados e inclusive o admiram por isso.
O frenesi com express�es como “sou homof�bico, sim, com muito orgulho” ou aquela que afirma que os imigrantes s�o "a esc�ria do mundo” est�o a� para comprovar. Tamb�m podemos lembrar que Santa Catarina � um estado que abriga in�meras c�lulas adormecidas (e agora nem t�o adormecidas assim) de organiza��es neonazistas. Creio que essas sejam raz�es que justificam a escrita de um livro como Morte Sul Peste Oeste.
O frenesi com express�es como “sou homof�bico, sim, com muito orgulho” ou aquela que afirma que os imigrantes s�o "a esc�ria do mundo” est�o a� para comprovar. Tamb�m podemos lembrar que Santa Catarina � um estado que abriga in�meras c�lulas adormecidas (e agora nem t�o adormecidas assim) de organiza��es neonazistas. Creio que essas sejam raz�es que justificam a escrita de um livro como Morte Sul Peste Oeste.
A segunda personagem de destaque do livro � a transexual Brigite, que, embora submetida pela pr�pria m�e a um regime de prostitui��o, consegue guiar sua vis�o de mundo de modo otimista. De que forma desenhar a personagem dessa maneira foi pensado para ser um contraponto para a hist�ria de Dominique, e assim estabelecer a din�mica entre os personagens?
Ambos s�o personagens jogados �s margens em decorr�ncia de nossos preconceitos, de nossa intoler�ncia, de um capitalismo insano e desenfreado tamb�m. Dominique e Brigite s�o motivados por diferentes dores e objetivos, mas, como afirma o escritor Itamar Vieira Junior no texto que apresenta Morte Sul Peste Oeste, os dois “guardam em si a voragem dos sobreviventes”.
Quais foram os cuidados narrativos que voc� tomou para tratar de personagens que se enquadram em estere�tipos sem que se tornassem caricatos no universo ficcional?
A resposta metaf�sica � que o escritor precisa ser uma esp�cie de cavalo, para emprestar um termo do candombl�, precisa se permitir tentar incorporar, se colocar no lugar daquele que � objeto de estudo e observa��o e permitir-se o download do m�ximo de percep��es e sensa��es que conseguir. Com sorte, voc� sai desse processo com parte daquilo que precisa para construir um personagem veross�mil, tridimensional, que soe real e salte das p�ginas.
A parte concreta da resposta � que houve extensas pesquisas. Leituras, entrevistas, filmes, artigos, document�rios. Bruna Sofia Morsch, mulher trans, psic�loga/psicanalista e escritora, foi de uma generosidade enorme ao compartilhar suas percep��es sobre Brigite, percep��es que v�m n�o apenas de sua viv�ncia de mulher trans, mas de seu repert�rio t�cnico e de sua forma��o. Nahun St Julien, migrante haitiano, tamb�m foi muito sol�cito ao compartilhar comigo sua jornada.
A parte concreta da resposta � que houve extensas pesquisas. Leituras, entrevistas, filmes, artigos, document�rios. Bruna Sofia Morsch, mulher trans, psic�loga/psicanalista e escritora, foi de uma generosidade enorme ao compartilhar suas percep��es sobre Brigite, percep��es que v�m n�o apenas de sua viv�ncia de mulher trans, mas de seu repert�rio t�cnico e de sua forma��o. Nahun St Julien, migrante haitiano, tamb�m foi muito sol�cito ao compartilhar comigo sua jornada.
Algo que chama a aten��o na estrutura��o do enredo � a quest�o do n�o pertencimento, de como um personagem � estrangeiro num pa�s enquanto o outro � estrangeiro no pr�prio corpo. Faz sentido essa correla��o? Durante a escrita do romance, voc� pensou na correspond�ncia desses fatores em dois n�veis?
Sim, faz todo o sentido e essa correspond�ncia dos n�os pertencimentos de Brigite e Dominique sempre foi muito latente desde o princ�pio.
Voc� d� vida a dois personagens marginalizados, que est�o distantes do seu universo enquanto indiv�duos. De alguma forma, trabalhar essa voz t�o distante da sua realidade � uma preocupa��o ou acredita que, no processo criativo, a fic��o � uma licen�a para o autor tratar de temas, contextos e quest�es sociais que n�o fazem parte de seu mundo?
Como mencionei antes, houve um extenso trabalho de entender os universos e g�neses desses indiv�duos. Sempre entendi que nesse caso minha responsabilidade era muito maior, justamente por estar tratando de viv�ncias que eram t�o distantes ou diferentes da minha. � um livro arriscado, visto que estou sujeito aos questionamentos de lugar de fala, com os quais n�o concordo quando se trata de fic��o.
A literatura � o pr�prio exerc�cio da alteridade, do colocar-se no lugar do outro. Se estiv�ssemos autorizados somente a escrever a partir do nosso lugar de fala, a literatura estaria em s�rio risco. Todavia, eu acredito na import�ncia da representatividade. Acredito inclusive que a falta dela � o que nos leva a questionamentos como o do lugar de fala na fic��o. O Brasil � um pa�s imenso, m�ltiplo, diverso. Carecemos de representatividade na autoria e no mosaico de personagens que habitam nossa literatura.
Quero acreditar que ao trazer para a narrativa personagens que est�o � margem, estou ajudando a dar um pequeno passo em dire��o a uma literatura mais representativa das minorias, sempre desejando que, cada vez mais, as pr�prias minorias tenham as condi��es de criar seus pr�prios personagens, sejam eles quais forem, e lan�ar seus pr�prios livros. Tudo isso, � claro, falando de uma perspectiva de proporcionalidade, pois exemplos isolados j� acontecem.
A literatura � o pr�prio exerc�cio da alteridade, do colocar-se no lugar do outro. Se estiv�ssemos autorizados somente a escrever a partir do nosso lugar de fala, a literatura estaria em s�rio risco. Todavia, eu acredito na import�ncia da representatividade. Acredito inclusive que a falta dela � o que nos leva a questionamentos como o do lugar de fala na fic��o. O Brasil � um pa�s imenso, m�ltiplo, diverso. Carecemos de representatividade na autoria e no mosaico de personagens que habitam nossa literatura.
Quero acreditar que ao trazer para a narrativa personagens que est�o � margem, estou ajudando a dar um pequeno passo em dire��o a uma literatura mais representativa das minorias, sempre desejando que, cada vez mais, as pr�prias minorias tenham as condi��es de criar seus pr�prios personagens, sejam eles quais forem, e lan�ar seus pr�prios livros. Tudo isso, � claro, falando de uma perspectiva de proporcionalidade, pois exemplos isolados j� acontecem.
Voc� acredita que, diante desse cen�rio nacional de crescente radicalismo e polariza��o, � obriga��o do autor naturalmente trazer para a literatura um tom cr�tico sobre os acontecimentos do seu tempo?
N�o creio que seja uma obriga��o. Soa, talvez, um tanto autorit�rio para mim. � preciso ter a liberdade de contar as hist�rias que se queiram contar. Agora, ainda que n�o seja mandat�rio, considero importante. A literatura, em sua hist�ria, sempre foi instrumento pol�tico e teve importantes contribui��es nesse aspecto. Quem pode faz�-la e se sente encorajado, que o fa�a.
Apesar dos epis�dios de viol�ncia que vivem seus personagens, estes buscam uma forma de reden��o por meio do afeto, pelo pacto que fazem de usar suas hist�rias como um instrumento de for�a e sobreviv�ncia. No momento em que vivemos, de preconceito, intoler�ncia e pandemia, o qu�o importante � ser otimista?
� imprescind�vel. Se n�o acreditarmos que � poss�vel algum tipo de transforma��o, estamos acabados. A� deitamos as armas e nos entregamos. Mas volto � minha d�vida anterior: os intolerantes ensandecidos s�o a maioria ou uma minoria barulhenta? A segunda op��o facilitaria um pouco nosso trabalho.
*S�rgio Tavares � escritor

Morte sul peste oeste
Andr� Timm
Editora Taverna
180 p�ginas
R$ 44,90