
Autor de romances premiados como “Galileia” e livros de contos cortantes como “Faca” e “Livro dos homens”, Ronaldo Correia de Brito reuniu sua produ��o n�o ficcional mais recente em “A arte de torrar caf�” (Objetiva). “Os 55 textos n�o s�o apenas cr�nicas ou ensaios, resenhas ou contos curtos, embora pare�am tudo isso. Prefiro cham�-los apenas de narrativas, o que escrevi sem o intuito de fazer fic��o”, conta o cearense, nascido em 1951 e radicado no Recife, na nota introdut�ria da edi��o."Bolsonaro lembra o mito grego de Cadmo, que semeou na terra os dentes de um drag�o. Dos dentes nasceram homens monstruosos, totalmente armados e de aspecto amea�ador"
Ronaldo Correia de Brito
A capacidade de amalgamar reflex�es e reminisc�ncias salta aos olhos, bem como o tom de despedida de alguns textos que, lidos � luz das milhares de mortes registradas diariamente no Brasil pelo coronav�rus, ganham outra dimens�o. “Venho morrendo com amigos que partem e me deixam sem roteiro, porque eles representavam um h�bito de vida, um lugar que eu aprendera a visitar sem medo”, escreve o autor em homenagem ao gravurista Gilvan Samico (1928-2013).
M�dico formado pela Universidade Federal de Pernambuco, Correia de Brito critica o comportamento de entidades como o Conselho Federal de Medicina durante a pandemia. “As institui��es e seus associados embarcaram na pol�tica do governo federal, embora os m�dicos estivessem individualmente no front dos ambulat�rios e hospitais, arriscando as pr�prias vidas, heroicamente solid�rios”, afirma, em entrevista por e-mail ao Estado de Minas.
Dono de uma pequena propriedade rural em Taquaritinga do Norte, no agreste pernambucano, Correia de Brito acredita que a arte de torrar caf� guarda mais dificuldades do que a de escrever. “Por incompet�ncia literal ao of�cio, narro hist�rias. Ainda perscruto o tempo enigm�tico com que me deparo. Ele me parece a senten�a de uma esfinge. Todos os dias me pergunto o que devo escrever e para quem escrever. Sem resposta, escrevo nem que seja para mim mesmo. Um novo romance? Talvez.”
O que une as narrativas do livro? Por que elas s�o “al�m da fic��o”?
O que une � um sentimento �ntimo do Brasil. Mesmo quando visito outras geografias, � no Brasil que estou e � a partir dele que falo. Esse o am�lgama das 55 narrativas denominadas “al�m da fic��o” por se tratar de ensaios, perfis biogr�ficos, cr�nicas e textos que alguns at� podem chamar de contos.
Quais as principais diferen�as entre escrever narrativas curtas e romances?
Nasci e me criei em comunidades narrativas, onde as pessoas estavam sempre contando hist�rias: as pr�prias, as da fam�lia e do lugar onde moravam, as que ouviam de outros. Um costume saud�vel. Ser capaz de encadear a pr�pria narrativa n�o � garantia, mas j� � um ind�cio de sa�de mental.
Tornei-me um narrador falante e depois um escritor. As narrativas curtas s�o trabalhosas. Em poucos par�grafos � preciso dar conta da linguagem, de uma boa hist�ria e, muitas vezes, defender pontos de vista sobre o mundo e as pessoas.
O romance � custoso pelo tempo que ficamos na companhia de muitas criaturas, algumas obsedantes. Mas tem a vantagem de tudo caber nele, do autor ficar livre para expor teses contr�rias ao que pensa atrav�s das falas de seus personagens.
“Venho morrendo com amigos que partem e me deixam sem roteiro, porque eles representavam um h�bito de vida, um lugar que eu aprendera a visitar sem medo.” Como o sentimento de perda tem impactado a sua vida e sua obra?
At� os 20 anos, tr�s gera��es me precediam na fam�lia. Todos foram morrendo e agora ocupo a fila da frente, aguardando o meu chamado. Em “A arte de torrar caf�”, tra�o os perfis de alguns amigos mortos – a aquarelista Guita Charifker, o xilogravador Gilvan Samico, o curador de arte Giusepe Baccaro – e dos meus pais, que tamb�m j� morreram. Mas n�o h� m�goa nem desespero nisso, talvez uma delicada epifania.
Em “Adeus, Guita Charifker” lembro os versos do poeta Assis Lima: “Cabe-nos o presente, que, por sinal, j� passou”. E na despedida a Samico, “sinto uma tristeza que n�o combina com a brandura do vento”. Essa crescente solid�o, quase abandono, me fez procurar novas parcerias, sobretudo no teatro e na m�sica.
Destino um tempo da literatura para filmes, encena��es, onde as vezes trabalho com at� 300 pessoas, como no “Baile do Menino Deus”. � uma experi�ncia sempre nova, revigorante, cheia de desafios.
“No sert�o ainda semeiam palavras. Poucas. De prefer�ncia, nas pedras.” E no Brasil?
Ultimamente, no Brasil, semeiam palavras ruins e nos obrigam a mastigar o fruto podre que brota delas.
Como v� a miss�o dos profissionais de sa�de em tempos de pandemia? E o que explica a postura de alguns m�dicos e conselhos que receitam medicamentos comprovadamente ineficazes para a COVID-19?
De in�cio, eu responsabilizava apenas o governo federal e seu Minist�rio da Sa�de pela falta de valoriza��o da ci�ncia na preven��o e tratamento da Covid-19. O negacionismo, a irresponsabilidade com as medidas preventivas, a propaganda de medicamentos como a cloroquina, de valor negado por institui��es cient�ficas, a falta de investimentos na rede p�blica de sa�de, tudo isso nos trouxe ao caos que atravessamos. Mas, depois, fui dos primeiros a alertar sobre a mesma postura no meio m�dico, no Conselho Federal de Medicina e nos conselhos regionais, nas associa��es m�dicas e sindicatos.
As institui��es e seus associados embarcaram na pol�tica do governo, embora os m�dicos estivessem individualmente no front dos ambulat�rios e hospitais, arriscando as pr�prias vidas, heroicamente solid�rios. Apenas em janeiro de 2021, o Conselho Federal de Medicina, depois de carta assinada por cinco ex-presidentes e 14 ex-conselheiros da institui��o, cobrando uma postura oficial do �rg�o, manifestou-se. Negando que sofrera cobran�a, o CFM passou a recomendar a vacina��o. Mas n�o se posicionou contra os chamados “tratamentos precoces”.
Uma das narrativas � sobre uma �poca de culto aos livros. “Havia algo de sagrado nesse culto.” O sagrado permanece ou se perdeu?
Acho que permanece, mesmo que em pequenas ilhas. Ainda existem os que amam os livros e cultivam bibliotecas. Nosso mundo brasileiro se tornou �rido ao conhecimento, � cultura e �s artes. H� um profundo desprezo, maltrato mesmo, por todos os valores elevados das v�rias civiliza��es.
N�s precisamos lutar bravamente pelo direito � educa��o. Viver no Brasil tornou-se um pesadelo. Bolsonaro lembra o mito grego de Cadmo, que semeou na terra os dentes de um drag�o. Dos dentes nasceram homens monstruosos, totalmente armados e de aspecto amea�ador.
“A morte e o sepultamento sempre tiveram rituais e teatro, com as particularidades de cada povo e civiliza��o.” Em tempos de pandemia, como ficam o luto, sem a possibilidade de reuni�es para despedida, e o palco, sem p�blico?
Em “A arte de torrar caf�”, h� pelo menos tr�s narrativas sobre sepultamentos. Vivi numa sociedade que celebrava os ritos funer�rios com naturalidade. A morte durante a pandemia incorporou o isolamento que j� vinha acontecendo na hist�ria moderna do homem.
Cada vez mais as pessoas entregam seus familiares para morrerem nos hospitais, sozinhas, afastadas e esquecidas, em enfermarias ou leitos de UTIs. H� nisso um forte hedonismo, o desejo de negar a morte. Quanto ao palco sem p�blico, s� tenho a lamentar.
Muitos textos foram escritos a partir de experi�ncias em viagens para compromissos profissionais ou afetivos. O que mudou na sua vis�o de mundo neste ano sem viagens?
Mudou bastante minha rela��o com a literatura e com o significado dela em minha vida. Fiquei menos convencido de seu poder transformador e menos ansioso com o que eu possa ou venha a produzir. Tamb�m j� n�o procuro respostas. Tenho lembrado o epit�fio de Nikos Kazantzakis: “N�o creio em nada / N�o espero nada / Sou livre”.
Minha literatura se alimenta no conv�vio com pessoas e lugares. Care�o de ver, ouvir, cheirar, tocar, experimentar sensa��es, tudo o que se tornou imposs�vel. Esses est�mulos me provocam um alvoro�o na mem�ria, acordam imagens censuradas pelo consciente, desencadeiam surtos de imagina��o e criatividade.
N�o tem sido f�cil atravessar o isolamento, manter-me na abstin�ncia de quaresma. Sonho em ganhar as ruas, viajar, abra�ar as pessoas, qualquer pessoa, desde que ela me comunique vida e n�o apenas o risco de contamina��o e morte.
H� narrativas sobre o seu pai e sua m�e. Como a fam�lia invade a sua cria��o liter�ria? Como transformar experi�ncias pessoais em literatura?
Sou fortemente ligado � fam�lia. Nossa epopeia familiar � narrada h� mais de tr�s s�culos, desde que chegamos aos sert�es cearenses. H� nela todo tipo de personagem que se possa imaginar, dos mais tr�gicos aos mais burlescos. Fomos habituados a falar dos parentes como se eles estivessem vivos e contracenando numa pe�a em que atuamos.
Sou capaz de repetir os nomes de alguns av�s at� a d�cima gera��o, sem nunca ter estudado genealogia, apenas pelo costume de ouvir suas perip�cias narradas um n�mero inesgot�vel de vezes. Quando escrevo, recorro a essas hist�rias familiares, �s hist�rias dos lugares onde vivi e �s dos livros que estudei e costumo ler. Tudo me parece igual, pr�prio, um patrim�nio que acesso quando desejo.
“A arte de torrar caf�: Narrativas al�m da fic��o”
- Ronaldo Correia de Brito
- Objetiva
- 200 p�ginas
- R$ 49,90.
- E-book: R$ 34,90.