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Estado de Minas ENTREVISTA

Castro Rocha: 'Bolsonarismo est� se transformando em seita'

Autor de livro sobre a ret�rica do �dio afirma que a guerra cultural dos bolsonaristas se aproxima do fundamentalismo: '� uma f�brica de inimigos em s�rie'


09/04/2021 04:00 - atualizado 09/04/2021 12:35

João Cezar de Castro Rocha, autor do livro 'Guerra cultural e retórica do ódio - Crônicas de um Brasil pós-político'(foto: Rogerio B. Huss/Flip)
Jo�o Cezar de Castro Rocha, autor do livro 'Guerra cultural e ret�rica do �dio - Cr�nicas de um Brasil p�s-pol�tico' (foto: Rogerio B. Huss/Flip)
Para o professor Jo�o Cezar Castro Rocha, o governo Bolsonaro � uma f�brica de produ��o de inimigos em s�rie, que alimenta uma guerra cultural calcada em fatos alternativos, inteiramente movida no universo digital, com diferentes narrativas focadas em perfis espec�ficos.

A imers�o em tal realidade paralela, que atrai mil�cias digitais treinadas em ret�ricas de �dio e desqualifica��o do outro, destinadas a questionar os fatos da realidade, tem o seu pre�o. “Para o bolsonarismo, � imposs�vel a simples no��o de um problema concreto, porque qualquer aspecto da realidade � encoberto pela guerra cultural. Isso cria um problema s�rio, que estamos vivendo agora, que � o colapso completo da gest�o p�blica, � uma crise sanit�ria e humanit�ria sem propor��es, � a maior trag�dia da hist�ria brasileira que poderia ter sido evitada se tiv�ssemos um governo, mas precisamente n�o temos um governo, porque temos bolsonarismo demais”, avalia Castro Rocha, ensa�sta e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), titular de literatura comparada e autor do livro “Guerra cultural e ret�rica do �dio – Cr�nicas de um Brasil p�s-pol�tico” (Editora Caminhos).

Em consequ�ncia da guerra cultural e falta de gest�o, o golpe –  o autogolpe – fantasma que rondou a hist�ria republicana brasileira e parecia enterrado ap�s a redemocratiza��o –, volta a assombrar o pa�s. “Uma vez que n�o h� possibilidade de existir como governo – porque n�o h� pol�tica p�blica, pois em lugar de considerar dados objetivos busca inimigos e se aferra � guerra cultural –, a �nica forma de manter o poder � o golpe. N�o h� outra forma poss�vel, porque o golpe � objetivo verdadeiro da guerra cultural”, assinala o autor.

Em nova hip�tese de pesquisa, Jo�o Cezar Castro Rocha sustenta: “A guerra cultural bolsonarista deu um passo al�m. Deixou de ser apenas um instrumento para a disputa de narrativas e para vencer campanhas eleitorais. � mais do que isso hoje. Est� se transformando em uma seita, numa forma de vida”. � assim que, em vez de apenas contestar os fatos da realidade, o bolsonarismo salta da realidade virtual para o mundo real, sem m�scaras, com overdoses de ivermectina e marchas em contin�ncia � caixa de cloroquina, como ocorreu em S�o Louren�o, no Rio Grande do Sul.

Mirando no desfecho do governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, o pesquisador projeta: “A minha expectativa � de que o governo Bolsonaro seja atropelado pela realidade, pelos fatos concretos. A pandemia acelerou a desintegra��o do inevit�vel, do governo que n�o h�, que � o governo Bolsonaro, porque h� bolsonarismo demais.” A seguir, uma entrevista com o ensa�sta.

Em seu livro, o senhor sustenta que, embora a guerra cultural seja o eixo do governo Bolsonaro e precisamente aquilo que explica o �xito do bolsonarismo, � tamb�m a raz�o do colapso administrativo do governo federal. Como se explica o paradoxo?
A guerra cultural � precisamente a divis�o do mundo entre, por um lado, os “meus” – os que me s�o pr�ximos – a quem eu defendo porque acredito que possuo a ess�ncia, a verdade absoluta do mundo; e, por outro lado, est�o todas as pessoas que percebo n�o como advers�rias que pensam legitimamente de forma diferente da minha, mas que s�o inimigas que encarnam o mal. Infelizmente, a minha hip�tese foi perfeitamente confirmada na atual trag�dia em que vivemos.

Estamos falando hoje em um dia (30 de mar�o) em que o Brasil bateu um recorde absoluto em toda a sua hist�ria de n�mero de mortes em 24 horas. Foram 3.780 notifica��es, e talvez o n�mero seja ainda maior. Se tiv�ssemos tido um planejamento sensato para a compra de vacinas, esse n�mero seria muito inferior. Mas o que faz o presidente Bolsonaro? Ele troca o ministro da Defesa, convoca um jejum para a popula��o crist� e a base bolsonarista utiliza uma trag�dia – a morte de um PM na Bahia – para tentar incitar as pol�cias militares de todo o pa�s contra governadores que praticam medidas para conter a dissemina��o do v�rus.

Portanto, a guerra cultural bolsonarista tem um car�ter fundamentalista. E, no momento em que a pandemia est� fora de controle, n�o dispomos de vacina, convocar um jejum e a necessidade de encontrar inimigos o tempo todo, agora s�o governadores e prefeitos, mas j� foi o STF, j� foi o Congresso, entre outros. � mais uma demonstra��o concreta da guerra cultural.

Como essa f�brica de inimigos se relaciona com a f�brica de fatos alternativos, uma percep��o distorcida da realidade?
O governo Bolsonaro � uma f�brica de inven��o de inimigos em s�rie. S� � poss�vel faz�-lo desconsiderando dados objetivos da realidade. Porque na realidade da administra��o de um pa�s n�o h� inimigos. O que h� s�o problemas concretos para serem resolvidos. Para o bolsonarismo, � imposs�vel a simples no��o de um problema concreto, porque qualquer aspecto da realidade � encoberto pela guerra cultural. Agora no Or�amento da Uni�o de 2021, o governo cortou 90% da destina��o ao IBGE para a realiza��o do censo.

Portanto, � mais uma vez uma demonstra��o eloquente do que digo. � que, para o bolsonarismo, o censo � perda de tempo. Como n�o vai mesmo considerar dados objetivos, para que gastar dinheiro com o censo? Agora, se n�o gasta dinheiro com o censo, como pode ter uma pol�tica p�blica razo�vel se n�o se disp�e dos dados concretos sobre os problemas que deve enfrentar? Isso cria um problema s�rio, que estamos vivendo agora, que � o colapso completo da gest�o p�blica, � uma crise sanit�ria e humanit�ria sem propor��es, � a maior trag�dia da hist�ria brasileira que poderia ter sido evitada se tiv�ssemos um governo, mas precisamente n�o temos um governo, porque temos bolsonarismo demais. Isso tem uma consequ�ncia terr�vel, que enfrentamos agora: estamos neste momento, como diria um autor mineiro (Guimar�es Rosa), com “o diabo na rua, no meio do redemoinho”.

Qual � o desfecho mais prov�vel para um governo com as caracter�sticas que o Sr. descreve, ou seja, que n�o considera dados objetivos da realidade para a gest�o, de modo que consegue existir enquanto governo?
Uma vez que n�o h� possibilidade de existir como governo – porque n�o h� pol�tica p�blica, pois, em lugar de considerar dados objetivos, busca inimigos e se aferra � guerra cultural –, a �nica forma de manter o poder � o golpe. N�o h� outra forma poss�vel, porque o golpe � o objetivo verdadeiro da guerra cultural. O golpe � o instante em que o inimigo n�o � mais apenas hostilizado do ponto de vista simb�lico, n�o se trata apenas de lan�ar m�o de uma linguagem, da ret�rica, a ret�rica do �dio propagada por Olavo de Carvalho.

O que se trata agora � de passar da ret�rica para a a��o violenta. O golpe � necessariamente a voca��o do bolsonarismo. O que precisamos fazer � fortalecer as institui��es democr�ticas e deixar claro que, como sociedade civil, n�o aceitaremos mais uma ditadura no pa�s. Mas hoje temos uma situa��o particularmente complexa.

O fantasma do golpe, que parecia enterrado ap�s a ruptura institucional com o golpe de 1964, volta a rondar o Planalto?
Uma vez que o bolsonarismo n�o permite que haja governo, o colapso � inevit�vel. � assim e sempre ser�. Venho dizendo isso desde mar�o do ano passado e, por isso, escrevi o livro. J� houve no governo Bolsonaro a tentativa de autogolpe em maio de 2020, que eu analiso minuciosamente no livro. E isso ser� sempre assim.

O que a mem�ria hist�rica da Rep�blica brasileira ensina sobre os autogolpes?
Infelizmente, n�o temos mem�ria hist�rica, n�o conseguimos projetar o presente no diapas�o mais amplo. O autogolpe � a forma b�sica do militarismo brasileiro. Floriano Peixoto deu uma esp�cie de autogolpe e se atribuiu poderes autocr�ticos que lhe permitiram eliminar fisicamente os seus advers�rios. “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, se passa durante o per�odo de Floriano Peixoto. E se chama “Triste fim” porque na �ltima cena do romance fica claro que Policarpo Quaresma ser� executado pelas tropas florianistas por ser um advers�rio do regime.

Arthur Bernardes governou durante quatro anos – de 1922 a 1926 – com estado de s�tio. O presidente seguinte, Washington Lu�s, dizia que a quest�o social era quest�o de pol�cia. Ap�s a Revolu��o de 1930, Get�lio Vargas no poder, em 1937 deu um autogolpe, o do Estado Novo, uma terr�vel ditadura. O J�nio Quadros, quando renunciou em 1961, tinha por prop�sito dar um autogolpe. Seguia o exemplo de Charles de Gaulle, na Fran�a, que havia renunciado e s� aceitou voltar com poderes autocr�ticos. A ditadura militar que deu o golpe em 1964, em 1968 com o AI-5 deu um autogolpe, porque alijou a chamada linha moderada. Em 1969, quando Arthur da Costa e Silva teve um AVC e faleceu, quem deveria ter assumido era o vice-presidente civil, Pedro Aleixo.

Mas ele foi alijado da sucess�o, porque foi o �nico membro do governo que n�o assinou o AI-5. Ent�o, houve outro autogolpe, assumiu uma Junta Governativa, os ministros das pastas militares, at� passarem o poder para Garrastazu Medici. Em 1977, o general Sylvio Frota, ministro do Ex�rcito, tentou dar golpe em Ernesto Geisel. Quem foi o jovem capit�o que auxiliou Sylvio Frota na tentativa do golpe contra Geisel? Chama-se Augusto Heleno. O autogolpe � tra�o caracter�stico da hist�ria da Rep�blica brasileira

Como o bolsonarismo forma opini�o e se posiciona em rela��o aos temas da atualidade?
H� um paradoxo muito importante e a raz�o para escrever o livro. Do ponto de vista da produ��o de fatos alternativos, not�cias de mentira, articuladas em narrativas, o bolsonarismo n�o tem rival poss�vel na pol�tica brasileira. � preciso reconhec�-lo. S�o profissionais. Fazem isso 24 horas por dia. Descobri na minha pesquisa recente, que ainda n�o est� no livro, e nesse sentido � uma hip�tese nova. Come�amos pela constata��o: o bolsonarismo possui uma midiosfera pr�pria, que � composta pelas correntes de WhatsApp, mas possui tamb�m rede integrada de canais de YouTube e aplicativos.

Um em particular, chamado Mano, re�ne um n�mero enorme de canais de televis�o e esta��es de r�dio disponibilizados gratuitamente para todos. Mas, quando entra em qualquer r�dio ou televis�o, primeiro � conduzido para a caixa de di�logo, como um chat, e nessa caixa de di�logo � o truque: os conte�dos s�o sempre bolsonaristas e s�o sempre muito fortes. Nas cidades do Rio e Curitiba, quando houve a pandemia e decidiram fazer o ensino atrav�s de esta��es de televis�o, o governador do Paran�, Ratinho J�nior, e o ent�o prefeito do Rio Marcelo Crivella decidiram, ‘coincidentemente’, utilizar o aplicativo Mano para os alunos da rede p�blica.

Isso quer dizer que essas pessoas que parecem paranoicas, que vieram de outro planeta, porque sempre se saem com narrativas articuladas, mas evidentemente conspirat�rias e falsas, recebem 24 horas por dia informa��es produzidas especialmente para elas. S�o v�deos e materiais muito elaborados e de impacto. E hoje, no Brasil, temos situa��o particularmente grave, porque uma esta��o de r�dio, a Jovem Pan, e uma televis�o, a Rede TV, t�m servido para fortalecer as teorias conspi- rat�rias. As teorias conspirat�rias se iniciam nos canais de YouTube e de WhatsApp, ent�o v�o para o programa da Jovem Pan, a mesma teoria conspirat�ria � repetida.

Quando chega no mainstream, a teoria conspirat�ria retorna aos c�rculos bolsonaristas, agora com o aval de verdade. Isso � muito grave, porque o que acontece � que existem milh�es de pessoas no Brasil bombardeadas todos os dias com informa��o produzida por canais de YouTube que fazem a “farsa jornalismo”, uma ofensa ao jornalismo, pois s�o evidentemente destinadas � difus�o de teorias conspirat�rias e de desinforma��o deliberada.

Como as pessoas que t�m preven��o contra a m�dia profissional que apura e veicula fatos foram cooptadas para a midiosfera bolsonarista?
Isso � parte do que chamo a ret�rica do �dio, ensinada por Olavo de Carvalho h� duas d�cadas. Chamo de ret�rica de �dio e n�o discurso do �dio, porque n�o � uma forma qualquer de desqualifica��o do outro. � uma t�cnica ensinada. A l�gica argumentativa foi ensinada. Tem pressupostos que s�o repetidos por todos. � como se fosse uma escola de pervers�o. Isso leva, creio, a uma quest�o grave, a hip�tese nova que ainda n�o est� no livro: precisamos de entender que a guerra cultural bolsonarista deu um passo al�m. Se n�o entendermos, n�o saberemos evitar o golpe.

Deixou de ser apenas um instrumento para a disputa de narrativas e para vencer campanhas eleitorais. � mais do que isso hoje. A guerra cultural bolsonarista est� se transformando em uma seita, numa forma de vida. N�o basta mais disputar narrativas. � preciso ostensivamente n�o usar m�scaras, � preciso tomar overdose de ivermectina, como se as pessoas n�o tivessem sistema hep�tico. N�o basta mais mentir dizendo que o STF retirou a compet�ncia do governo federal para agir na pandemia, � preciso fazer o que aconteceu em S�o Leopoldo (RS): perfilar diante de uma caixa gigante de cloroquina, bater contin�ncia e cantar o Hino Nacional.

Ou seja, a guerra cultural est� se transformando num fundamentalismo cotidiano. Nunca houve nada semelhante na hist�ria brasileira. Se n�o formos capazes de compreender e de denunciar que a guerra cultural deixou de ser disputa de narrativas e passou a ser uma forma de vida – e � isso o que est� por detr�s do autogolpe planejado – abriremos caminho neste pa�s para algo que n�o conhecemos, algo a que n�o estamos acostumados, que � o terrorismo dom�stico.

Qual � o contexto hist�rico mais recente do qual o bolsonarismo se beneficia?
O bolsonarismo n�o � a causa da ascens�o da extrema-direita no Brasil. Ele � a consequ�ncia de uma articula��o de duas d�cadas de for�as de direita no Brasil. O bolsonarismo n�o � a origem, foi o ponto de fuga, o benefici�rio de um movimento anterior. Esse � o primeiro ponto. O segundo ponto, e em rela��o a este, o bolsonarismo � origem e causa: foi a primeira vez no Brasil em que, de maneira sistem�tica, aplicaram-se no pa�s as estrat�gias desenvolvidas pelo grupo Cambrigde Analytica, idealizadas por Steve Bannon: em lugar de fazer pol�tica para o cidad�o, o que Bannon inventou � fazer pol�tica para perfis de usu�rios nas redes sociais.

Ent�o, a pol�tica deixa de ser uma ideia geral do bem coletivo, uma proposta para todos. A pol�tica passa a ser uma resposta autom�tica e imediata para os anseios de nichos da popula��o. Isabela Kalil, uma brilhante antrop�loga de S�o Paulo, fez, em 2018, um estudo dos apoiadores de Bolsonaro: levantou 16 perfis de apoiadores. H� alguns contradit�rios. Voc� tem o evang�lico neopentecostal. Mas voc� tem o perfil “gay com Bolsonaro”. Como isso acontece na pr�tica? Se colocar lado a lado, numa mesma campanha, no mesmo discurso, o neopentecostal evang�lico e o “gay com Bolsonaro” n�o vai dar certo. Como podem ficar juntos? Na pol�tica da era digital voc� n�o faz mais campanha para os cidad�os. N�o se trata mais do brasileiro cidad�o.

Se tem 16 perfis de apoiadores, voc� produz 16 campanhas e se comparar os conte�dos das campanhas n�o param em p�, porque s�o contradit�rios. Mas n�o importa, porque o gay com Bolsonaro n�o vai encontrar o fundamentalista neopentecostal. Mas eles v�o votar na mesma elei��o. E, quando se re�nem, a diferen�a que possuem � suprimida pela descoberta de um inimigo comum. Por isso, o bolsonarismo n�o vive sem inimigo: a base � muito heterog�nea, foi constru�da n�o em cima de uma proposta para o pa�s, mas em elementos de destrui��o.

Como a pandemia impactou a guerra cultural?
Eu preferia n�o ter escrito o livro, preferia n�o ter raz�o, preferia que Bolsonaro estivesse se revelado um estadista e que n�o tiv�ssemos hoje a trag�dia que vivemos. Infelizmente, e eu anunciei isso em mar�o de 2020, em minha an�lise do bolsonarismo, devido � predomin�ncia da guerra cultural, o bolsonarismo triunfa e o governo Bolsonaro fracassa. O que eu imaginava antes de a pandemia chegar � que por volta do segundo semestre de 2021 o pa�s come�aria a entrar em colapso, porque n�o tem administra��o p�blica, � simplesmente isso. N�o tem gest�o da coisa p�blica. N�o tem censo.

As pessoas n�o compram vacina, n�o t�m seringa estocada. Isso voc� pode reproduzir para todos os minist�rios. O governo Bolsonaro n�o tem reuni�o de trabalho. Vimos aquela fat�dica reuni�o em 22 de abril de 2020, que era reuni�o, n�o era nada, foram mais de duas horas, n�o houve uma �nica proposta razo�vel. N�o h� governo, porque h� bolsonarismo demais. Ent�o, o colapso me parecia inevit�vel e eu dizia, o colapso vir�, e ser� o momento do autogolpe, porque n�o haver� alternativa. No governo Trump – a economia americana, embora tenha favorecido em muito os ricos, teve muito mais resultados positivos do que o governo Bolsonaro –, o presidente foi atropelado pela realidade.

Trump come�ou o governo como o governo dos fatos alternativos; terminou o governo como o governo cuja alternativa a ele foram os fatos. Negou a pandemia, estimulou a cloroquina, acreditou na imunidade de rebanho, quando tentou voltar atr�s era tarde: h� meio milh�o de americanos mortos. Depois, quando negou o resultado eleitoral, que evidentemente n�o foi uma fraude, ele conseguiu provocar um fen�meno na hist�ria norte-americana. Tentou dar um golpe. A minha expectativa � de que o governo Bolsonaro seja atropelado pela realidade, pela concretude dos fatos. A pandemia acelerou a desintegra��o do inevit�vel, do governo que n�o h�, que � o governo Bolsonaro, porque h� bolsonarismo demais.

� poss�vel fazer uma analogia entre o Minist�rio da Verdade, citado por George Orwell em “1984”, e o Brasil de Bolsonaro?
Com certeza, com uma diferen�a chocante. Se voc� se lembrar da distopia de “1984”, era uma imposi��o de alto a baixo. As pessoas precisavam escolher as suas emo��es, n�o era poss�vel amar, havia um monitor na casa das pessoas que controlava o batimento card�aco para descobrir se havia emo��es suspeitas. Mas n�s vivemos uma situa��o muito pior. Vivemos o 1984 adotado voluntariamente. Isso � o pior de tudo. E uma outra distopia, que lemos muito mal, que � “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, que s� lembramos que as pessoas queimavam livros. H� um professor que diz uma frase que sempre me comoveu muito.

Ele diz para um bombeiro que decide deixar de queimar livros para l�-los: o Estado n�o come�ou a queimar livros. Foram as pessoas que deles se desinteressaram. E s� por isso eles puderam ser queimados. E, na casa de cada pessoa, em lugar de livros, foi colocada uma grande tela, que n�o vigiava, porque vigia � muito �bvio. Mas entretinha as pessoas 24 horas, ou seja, as anestesiava. No caso brasileiro, o que � mais s�rio, � que vivemos um 1984 em que as pessoas voluntariamente aceitaram um big brother; no caso, um “mito”.

Ao apresentar carta de demiss�o, Ernesto Ara�jo afirmou que foi v�tima de "uma narrativa falsa e hip�crita a servi�o de interesses escusos nacionais e estrangeiros". Por que ele faz quest�o de usar a palavra ‘narrativa’?
H� uma pervers�o completa no uso dessa palavra. Como um resultado da revolu��o da contracultura nos anos 60 e como resultado da chamada teoria cr�tica, que questiona o pr�prio objeto, n�o toma o objeto como dado da natureza, um conceito que foi surgindo e nos anos 80 ganhou completo dom�nio, com dois autores – Jean Baudrillard (“Simulacros e simula��o”) e Jean-Fran�ois Lyotard (“A condi��o p�s-moderna”) – com a ideia de que a p�s-modernidade recusava a grande narrativa da modernidade, que sempre era teol�gica e tudo explicava.

Num primeiro momento, a ideia de que a realidade dura, de que os fatos eram opress�es do sistema, foram ideias adotadas no sentido libertador. A genialidade do mal, do Steve Bannon, adotada por Olavo de Carvalho, e, portanto, pelos bolsonaristas, � que tomaram essa mesma ideia, e viraram-na pelo avesso. Se, num primeiro questionamento da realidade como n�cleo duro e do fato como algo incontest�vel, poderia ser pol�tica de esquerda, porque liberava sentidos e criava uma complexidade em lugar da homogeneidade, o que aconteceu � que a extrema-direita se apropriou dessas ideias. Se s� h� narrativas e n�o h� fatos, o que o bolsonarista faz: “Voc� tem certeza de que morreram ontem 3.780 pessoas?”.

Quando o interlocutor responde que s�o as estat�sticas, o bolsonarista continua: “Quais s�o as fontes? Voc� por acaso verificou pessoalmente? Por acaso voc� sabe o CPF das 3.780 pessoas? Por acaso foi feita aut�psia nessas pessoas, viu se o hospital est� cheio?”. Ent�o, a extrema- direita se apropriou de maneira perversa de uma reflex�o que buscava apostar na pluralidade e na multiplicidade de sentidos poss�veis e por isso recusava o imp�rio do fato e a ideia da realidade como algo incontest�vel, para, na verdade, utilizar isso para impor o oposto: uma vis�o �nica, manique�sta e bin�ria.

Qual � o projeto de Jair Bolsonaro com a sua guerra cultural?
No discurso, um Estado totalit�rio teocr�tico, em que a fam�lia ter� acesso a todo o dinheiro do mundo. N�o h� projeto de pa�s, n�o tem governo. Mas a tarefa para a resist�ncia � abrir canal de di�logo com eleitores eventuais de Bolsonaro e com a comunidade evang�lica. Ou fazemos isso ou, em 10 anos, talvez este pa�s n�o seja habit�vel. A crise da pandemia deixa claro que n�o se pode governar com guerra cultural. Vai faltar kit intuba��o, vai faltar anestesia, uma tortura medieval. Vai ser isso ou morrer sem ar. Fatos objetivos: o governo gastou R$ 250 milh�es para distribuir o kit cloroquina em todas as unidades da Federa��o.

A dose da AstraZeneca custa 2,5 euros. Isso quer dizer que, com o kit cloroquina, o governo jogou fora entre 13 milh�es e 15 milh�es de doses de vacina. N�o adianta disputar narrativa. � a fal�ncia total da administra��o p�blica. Esse modelo de administra��o no pa�s, fundamentalista, sect�rio, com base na guerra cultural, levar� ao colapso absoluto.

O ex-ministro da Sa�de Luiz Henrique Mandetta declarou recentemente em entrevista ao Estado de Minas: “O Brasil, hoje, � administrado pela internet e por pessoas que n�o fazem parte do governo. O Brasil est� sendo administrado pelo algoritmo”. Como avalia essa afirma��o?
Concordo, � isso mesmo. E h� um limite. � que o algoritmo funciona muito bem porque visa sempre � produ��o de curtidas no espa�o virtual. A transfer�ncia autom�tica desse modelo para a realidade tem uma dificuldade real, que � a pr�pria realidade. Na circunst�ncia de uma trag�dia como uma pandemia, a inefici�ncia desse modelo vem � tona.

Em quais outros momentos da hist�ria brasileira foi empregada a guerra cultural, em voga no governo Bolsonaro?
Ela j� ocorreu em alguns momentos de forma bastante aguda. Sobretudo entre 1961 e 1964, e houve inclusive institutos de direita, como o Instituto de Pol�ticas e Estudos e Sociais (Ipes), e o Instituto Brasileiro de A��o Democr�tica (Ibad), respons�veis por desestabilizar o governo Jo�o Goulart. Esse tipo de guerra cultural j� aconteceu no Brasil. Uma das coisas que fa�o no livro � reconstruir essa hist�ria. Nesse per�odo, a polariza��o foi ainda mais forte do que agora, muitos empres�rios financiaram o golpe e tamb�m capital americano. Durante tr�s anos, houve v�rios institutos de produ��o cultural como o Ipes – que teve como presidente o general Golbery do Couto e Silva e um dos financiadores Walter Moreira Salles, cujo objetivo era produzir material anticomunista para desestabilizar o governo Jo�o Goulart. E conseguiram. J� houve antes. Mas qual � a novidade agora?

� o universo digital. O bolsonarismo inaugurou uma nova forma de fazer pol�tica no Brasil, pela maestria com que domina o meio digital. Al�m disso, h� um contexto. Um efeito colateral de o PT ter governado entre 2002 e 2016 n�o foi compreendido pela esquerda: houve uma gera��o que cresceu com um partido de esquerda no poder, para a qual, pela primeira vez, foi poss�vel, para ser de oposi��o, ser de direita. Para ser revolucion�rio, ser conservador, porque quem estava no poder era o PT. Essa gera��o � uma novidade absoluta na pol�tica brasileira. � coisa incompreens�vel uma juventude de direita. Mas se um partido de esquerda ganha quatro elei��es, tem uma defasagem temporal de jovens que dominam as redes sociais, s�o bil�ngues, falam portugu�s e internet�s como l�nguas nativas.

S�o jovens de direita porque s�o rebeldes, num momento em que um partido de esquerda est� no poder. Esse fen�meno, que foi absolutamente decisivo, � anterior ao bolsonarismo. � outra raz�o pela qual n�o podemos atribuir ao bolsonarismo a causa completa da situa��o atual. Em boa medida, o bolsonarismo foi tribut�rio. Ent�o, h� dois momentos de guerra cultural: primeiro, entre 1961 e 1964. Segundo, a partir de 2002, h� uma juventude de direita, aguerrida, produtiva, irreverente, que domina as redes sociais e, no Brasil, quem primeiro produziu memes de qualidade foi a direita. E essa guerra cultural a partir de 2002 tem um tema: para a juventude, ser de oposi��o � ser de direita e h� um conceito, que � um mantra, sem o qual n�o se entende a chegada de Bolsonaro ao poder.

� o conceito de hegemonia cultural da esquerda. Para esses jovens de direita, o conceito � verdadeiro e eles se unem para combater uma hegemonia. Eles consideram que existe, ainda que n�o exista, e passe a existir como efeito pr�tico. Mesmo a guerra cultural bolsonarista n�o � uma novidade absoluta, ela � o ac�mulo de energia. O bolsonarismo � o ac�mulo de energia da reorganiza��o da direita, com uma novidade, que � radical: a utiliza��o absolutamente profissional das possibilidades criadas para o campo da pol�tica e dos relacionamentos humanos, do universo digital.
(foto: Editora Caminhos/Reprodução)
(foto: Editora Caminhos/Reprodu��o)

“Guerra cultural e ret�rica do �dio – cr�nicas de um Brasil p�s-pol�tico”
• Jo�o Cezar de Castro Rocha
• Editora Caminhos
• 456 p�ginas
• R$ 35


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