
A escolha do termo que estampa o t�tulo da obra, ademais, atesta muito bem o paradigma de tradu��o de Cesariny, que arrisca bastante, para, muitas vezes na disson�ncia, encontrar a converg�ncia com a radicalidade po�tica de Jean-Arthur Rimbaud (1854-1891). De qualquer forma, o termo “saison” (temporada ou cerveja) remete � imers�o que o poeta faz no inferno, junto com a linguagem, po�tica. E esse � o grande interesse de ler, mais uma vez, uma vers�o em portugu�s daqueles que s�o considerados, em conjunto, os testamentos po�ticos do jovem poeta vidente, que abandonaria a literatura pouco tempo depois de escrev�-los.
E o que lega aos leitores de hoje esse testamento de Rimbaud, na tradu��o, por assim dizer, irrequieta e �s vezes el�trica de Cesariny? Ora, um dos inusitados sentidos que podemos dar, passados tantos anos, � express�o “poeta vidente” � a de artista que foi capaz de produzir uma s�mula radical daquilo que viria depois de si. Rimbaud est� presente em tudo o que de mais significativo a poesia do s�culo 20 produziu, seja de forma mais evidente ou mais incidental, porque foi capaz de se vincular profundamente a uma �poca, transfigurando-a de modo essencial, de sorte que tudo se transforma em outra coisa dentro de sua po�tica, em que o belo e o terr�vel deslizam numa linguagem que � puro romper de paradigmas: “Sendo a realidade espinhosa demais para a minha grande personalidade [...] Tudo se tornou sombra e aqu�rio ardente”.
Em refer�ncia a qualquer outro poeta, essas afirma��es seriam chav�o e teriam l� o seu qu� de posti�o, mas, em Rimbaud, elas t�m sentido amplificado e real em termos po�ticos, ontol�gicos e hist�ricos. Como obras de vidente, “Ilumina��es” e “Uma cerveja no inferno” anunciam e problematizam o destino moderno da poesia atrav�s de um mergulho no presente e nas veleidades mais �ntimas do poeta realizado atrav�s da provoca��o dos limites da linguagem po�tica. Acerca disso, s�o reveladores os �ltimos per�odos da quarta se��o do poema “Juventude”: “Quanto ao mundo, que te mostrar� ele, quando sa�res? Em todo o caso, nada das apar�ncias atuais”.
Antonio Candido, de forma arguta, indica a l�gica de “transfus�es” que a po�tica de Rimbaud opera, “entre mostrar e esconder o mundo vis�vel”; o que seria, de acordo com o cr�tico, o n�cleo de “um tipo novo de poesia, que alterava os h�bitos e propunha modalidades ins�litas de percep��o”. Este testamento po�tico que chega agora ao leitor de l�ngua portuguesa exprime muito bem a ponte que Rimbaud estabelecera entre um padr�o po�tico passado que � preciso “desconjuntar” e um padr�o futuro que � preciso iluminar. Como diz o pr�prio poeta em “alquimia do verbo”: “O ferro-velho po�tico fornecia muita m�o de obra � minha alquimia do verbo”.
Eis a consist�ncia de seu percurso pelo inferno, o seu grande legado de algu�m que, lembrando mais uma vez Antonio Candido: “Soube sugerir de maneira muito pessoal que a poesia � capaz de elaborar um tipo pr�prio de comunicado, n�o regido pela necessidade de transmitir mensagens expl�citas”. Nesse diapas�o, ajustam-se muito bem as tonalidades de entorpecimento que levam a outro grau de lucidez indicadas no t�tulo “Uma cerveja no inferno”, conforme a interpreta��o de Cesariny, e que se fazem presentes, por exemplo, em “Manh� de embriaguez”: “Temos f� no veneno. Sabemos dar a nossa vida inteira todos os dias”.
A reuni�o das duas �ltimas obras de Rimbaud em uma �nica edi��o, � parte a pol�mica secular que se estabeleceu historicamente acerca da anterioridade de “Uma cerveja no inferno” em rela��o a “Ilumina��es”, d� oportunidade de ponderar o quanto elas s�o, ao mesmo tempo, muito semelhantes e, tamb�m, relativamente distintas. Une-as, por exemplo, a rebeldia da linguagem realizada como espelho da necessidade concreta da utopia e da revolu��o.
SUPERA��O DA MODERNIDADE
Rimbaud havia acompanhado com interesse e presencialmente o movimento da Comuna de Paris em 1871 e � na esteira desses acontecimentos pol�ticos que as obras s�o escritas. Considerando esse contexto, n�o ser� desprop�sito considerar que a “opera��o infernal” da po�tica de Rimbaud nessas duas obras est� vinculada a uma certa concep��o de base: o poeta � o representante do que de melhor a modernidade pode deixar viver contra si. Ou seja: a obra de Rimbaud � algo que prefigura a possibilidade/necessidade de supera��o radical da modernidade.
Num tempo em que muitos ainda eram crentes em suas possibilidades, o poeta vidente convoca os par�metros convencionais da modernidade a um mergulho no inferno. Desse modo, n�o se pode utilizar convencionalmente os elementos da tradi��o para ponderar o alcance est�tico dessa obra, tendo em vista que ela pede o “desregramento de todos os sentidos” cr�ticos. Como alerta o poeta em “Mau sangue”: “N�o sou prisioneiro da minha raz�o” – e por que o seriam os leitores?
Num tempo em que muitos ainda eram crentes em suas possibilidades, o poeta vidente convoca os par�metros convencionais da modernidade a um mergulho no inferno. Desse modo, n�o se pode utilizar convencionalmente os elementos da tradi��o para ponderar o alcance est�tico dessa obra, tendo em vista que ela pede o “desregramento de todos os sentidos” cr�ticos. Como alerta o poeta em “Mau sangue”: “N�o sou prisioneiro da minha raz�o” – e por que o seriam os leitores?
Em suma, s�o aspectos de similitude entre os dois escritos a tentativa de levar ao limite do exprim�vel a linguagem po�tica, o per�odo hist�rico posterior � Comuna de Paris, a disposi��o viajante do olhar po�tico e a l�gica po�tica das “transfus�es” entre a refer�ncia e o s�mbolo. Mas h� tamb�m aspectos disjuntivos para os quais vale a pena atentar. Entre esses, ocupa lugar central o “inferno”, que, em “Ilumina��es”, possui uma consist�ncia de sombra, de amea�a, mas que �, h� um s� tempo, alus�o e estrutura. Em “Uma cerveja no inferno”, por sua vez, o infernal � o pr�prio ar que a voz l�rica/po�tica/narrativa respira. Tamb�m quanto ao modo liter�rio essas obras de Rimbaud se distinguem. Nas “Ilumina��es”, por exemplo, destaca-se o tipo de composi��o imag�tica/ret�rica, organizada segundo um princ�pio basicamente descritivo.
Em “Uma cerveja no inferno”, diferentemente, certos mecanismos e princ�pios ficcionais colaboram com a estrutura, sendo, talvez, o seu ponto de partida e tra�o distintivo mais evidente. Nessa obra, assim, verifica-se que a narratividade ins�lita e alucinante � o que comanda o jorro ret�rico infernal que caracteriza o conjunto. Para al�m disso, o uso da prosa po�tica d� a tudo um ar de insol�ncia para com os aparatos mais bem comportados do padr�o po�tico vigente. � o que se v� numa frase presente na abertura de “Uma cerveja no inferno” e que bem caracteriza tamb�m as “Ilumina��es”: “Uma noite, sentei a beleza nos meus joelhos. – E vi que era amarga. – E injuriei-a”.
Rimbaud �, mais do que todos, sempre novo, porque nada se fecha definitivamente na sua arquitetura po�tica de signos e de sugest�es, movimentada por uma rede de associa��es posta em movimento numa velocidade alucinante. Algo que s� ele, e por pouco tempo, foi capaz de fazer, como se v� no testamento po�tico que s�o esses seus �ltimos escritos. Ningu�m como ele, apesar de tantas tentativas posteriores, teve mais legitimidade para, como poeta, dizer: “S� eu tenho a chave desta parada selvagem”.

“Ilumina��es / Uma cerveja no inferno”
• Jean-Arthur Rimbaud
• Tradu��o de M�rio Cesariny
• Editora Ch�o da Feira
• 208 p�ginas
• R$ 60
Os dois livros
“Ilumina��es” � um conjunto de 42 poemas em prosa, sem ordem de sucess�o determinada pelos manuscritos de Rimbaud. Os textos s�o aut�nomos, com temas diversos. J� “Uma cerveja no inferno” re�ne oito textos escritos entre abril e agosto de 1873, durante um dos surtos campestres do poeta. A tradu��o publicada pela Editora Ch�o da Feira, sediada em Belo Horizonte, � assinada por M�rio Cesariny (1923-2006), nascido em Lisboa e considerado um dos expoentes do surrealismo portugu�s.
*Alexandre Pilati � professor de literatura brasileira da Universidade de Bras�lia e poeta, autor, entre outros, de “Tangente do cobre” (Laranja Original, 2021)