
Foi divertido, mas sempre me perguntei sobre os anos que antecederam aquele evento, algo nunca ensinado nas aulas. N�o sabia do golpe contra o presidente Jo�o Goulart, da censura � imprensa, da persegui��o, tortura e morte de opositores, dos exilados, da corrup��o e do endividamento externo, do genoc�dio negro e ind�gena, dos movimentos de resist�ncia. Sabia, no entanto, das consequ�ncias de se viver em um lugar de priva��o de direitos e liberdade, onde pessoas desfilam armadas na porta de casa, sobrevive-se com pouco e a presen�a do Estado aprofunda ainda mais a repress�o e as desigualdades. Era como se ainda fosse ditadura no Brasil.
Essa � uma das tem�ticas mais presentes em “A cicatriz e outras hist�rias”, reuni�o de contos de B. Kucinski, assinatura liter�ria do escritor, jornalista e professor aposentado da USP Bernardo Kucinski, preso e exilado pela sua milit�ncia contra a ditadura civil-militar. Com a publica��o de “K. – relato de uma busca” (2011), sobre a ang�stia de um pai em face do desaparecimento da filha durante a ditadura, Kucinski se tornou em um dos escritores mais proeminentes da literatura brasileira contempor�nea.
A hist�ria � inspirada no caso da irm� do autor, Ana Rosa Kucinski, professora de qu�mica da USP, presa em 1974 pelos militares e jamais encontrada. Assim, em sua obra, realidade e fic��o se misturam, n�o para confundir o leitor, mas para faz�-lo refletir criticamente sobre os horrores que narra. Afinal, como diz o fil�sofo franc�s Jacques Ranci�re, “o real precisa ser ficcionalizado para ser pensado”.
A hist�ria � inspirada no caso da irm� do autor, Ana Rosa Kucinski, professora de qu�mica da USP, presa em 1974 pelos militares e jamais encontrada. Assim, em sua obra, realidade e fic��o se misturam, n�o para confundir o leitor, mas para faz�-lo refletir criticamente sobre os horrores que narra. Afinal, como diz o fil�sofo franc�s Jacques Ranci�re, “o real precisa ser ficcionalizado para ser pensado”.
A colet�nea traz narrativas curtas escritas entre 2010 e 2020, organizadas, segundo o autor, “por afinidade tem�tica ou formal”, em se��es intituladas “Hist�rias dos anos de chumbo”, “Instant�neos”, “Outras hist�rias”, “Kafkianas”, “Judaicas” e “Voc� vai voltar pra mim”. Apesar da refer�ncia evidente no t�tulo da primeira se��o, os textos sobre a ditadura civil-militar e suas consequ�ncias tamb�m atravessam as demais, como a �ltima, que intitula o conto e o livro hom�nimo, publicado em 2014. Contudo, o autor tamb�m retrata uma diversidade de outros temas, como conflitos familiares (“Tempos modernos” e “O sal da disc�rdia”), crimes ambientais (“A tartaruga”) e desigualdades sociais e econ�micas (“Ordem e progresso” e “Pequena hist�ria da mais-valia”). Na se��o “Judaicas”, por exemplo, os contos exp�em quest�es de identidade, trauma e mem�ria dos judeus, elementos que tamb�m atravessam a biografia do autor, filho de imigrantes poloneses e descendente de judeus mortos na Shoah.
Mecanismos de silenciamento
As duas ep�grafes de Julio Cort�zar, extra�das de “Rayuela” e de “Las babas del diablo”, evidenciam o impasse do ficcionista diante da mat�ria a ser narrada. Como descrever o indiz�vel, o que n�o tem nome, o que nos assombra como a queda no abismo? Como falar das dores que ainda latejam nas entranhas, apertam a nossa garganta e nos estremecem com seu cheiro de morte? Por isso, os mecanismos de silenciamento, seja pelos traumas do passado ou pelas viol�ncias do presente, aparecem em grande parte das narrativas. Com uma linguagem direta, enxuta e com per�odos breves, o texto de Kucinski � cortante e, em alguns momentos, pela quase aus�ncia de conectivos, parece buscar f�lego, como em “Os irm�os bolivianos”.
O dom�nio narrativo do escritor da forma moderna do g�nero, como bem ressalta, no pref�cio, Fab�ola Padilha, est� na “per�cia com que controla, sem jamais deixar que arrefe�a, a carga tensional da narrativa”. Al�m da influ�ncia de Cort�zar, nas ep�grafes e na vit�ria por nocaute, como este definiu o conto, o escritor paulista tamb�m aprendeu bem a li��o de outro argentino, Ricardo Piglia, para quem “um conto sempre conta duas hist�rias”. Em Kucinski, elas n�o se conciliam, mas nos atingem, no desfecho da narrativa, feito l�mina que nos fere e s� sentimos no instante seguinte, com o atraso do sangue e da abertura do corte. Em alguns contos, o impacto se torna ainda maior pela perversa ironia constru�da desde o t�tulo, como “A madre” e “Voc� vai voltar pra mim”, exemplares do mal da natureza humana e tamb�m das consequ�ncias de uma sociedade que cultua a viol�ncia e a morte em suas dimens�es est�tica e pol�tica. Um dos legados da nossa mis�ria.
* Rodrigo Jorge Ribeiro Neves � professor, cr�tico liter�rio e doutor em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
TRECHO do livro
“Com o desaparecimento do C�sar, papai nunca mais foi o mesmo. Alguma coisa se quebrou dentro dele. Deixou de convidar os amigos para os domingos na ch�cara. Costumava chamar um monte deles, era o seu prazer, ter os amigos em volta. Hoje penso que papai come�ou a morrer naqueles dias. Continuou a viver, mas de alma morte; disfar�ava para nos poupar, fingia que vivia. A s�ncope foi s� o desfecho.
Assim que papai se foi, a fam�lia come�ou a desmanchar.”
(“N�o vamos falar do C�sar”)
“Vivemos tempos estranhos, em que se sucedem assassinatos sem que algu�m seja levado a julgamento. As fam�lias burguesas pretendem que n�o � com elas, que existe lei, que pol�cia as protege. Por�m, esses tempos j� se foram e nada parece obstar o curso demon�aco da matan�a e da impunidade. Assim � a hist�ria que lhes vou contar. Um assassinato, talvez um duplo, embora os corpos jamais tenham sido encontrados. Dela tomei conhecimento de uma maneira ins�lita e que me comoveu.”
(“Claroscuro”)
ENTREVISTA
Bernardo Kucinski
“A cria��o art�stica nasce da como��o e inconformismo perante a mis�ria humana”
Quais crit�rios utilizou para dividir os contos em diferentes partes? O que une esses contos?
Essa antologia re�ne toda minha produ��o public�vel como contista. � isso que os une. Foi pensada como uma esp�cie de despedida, um registro definitivo. Tanto assim que inclu� os contos j� publicados pela Cosac Naify na antologia “Voc� vai voltar pra mim”, que sumiu das livrarias depois do fechamento daquela editora. Por que despedida? Pode ser paranoia, mas a pandemia a� est� abreviando vidas e eu j� passei dos 83 anos... J� estou no cheque especial. Quanto � organiza��o dos contos, primeiro pensei na ordem cronol�gica de cria��o de cada conto.
Daria uma ideia da minha evolu��o como contista. Depois, ao conversar com meus editores, achamos que, para o leitor, seria mais �til agrupar por afinidade tem�tica ou formal, j� que se trata de uma antologia heterog�nea com mais de 100 contos, que ser� lida aos poucos, um ou dois contos hoje, outros dois ou tr�s amanh�. A rigor, a ordem cronol�gica s� interessa a estudiosos da literatura. Ainda assim, mantivemos, dentro de cada bloco, a ordem cronologia de cria��o dos contos
Daria uma ideia da minha evolu��o como contista. Depois, ao conversar com meus editores, achamos que, para o leitor, seria mais �til agrupar por afinidade tem�tica ou formal, j� que se trata de uma antologia heterog�nea com mais de 100 contos, que ser� lida aos poucos, um ou dois contos hoje, outros dois ou tr�s amanh�. A rigor, a ordem cronol�gica s� interessa a estudiosos da literatura. Ainda assim, mantivemos, dentro de cada bloco, a ordem cronologia de cria��o dos contos
Embora o tema da ditadura civil-militar esteja presente, de forma expl�cita, em parte dos seus contos, em outros percebe-se certo desamparo da experi�ncia humana no cotidiano, mas que tamb�m � indissoci�vel de condi��es pol�ticas e sociais, como em “A aposta”. Como enxerga essas rela��es na concep��o de suas hist�rias?
Interessante voc� citar “A aposta”. Foi meu primeir�ssimo conto, o que me fez ficcionista. Surgiu de uma observa��o do cotidiano que me espantava: os lixeiros sempre correndo atr�s do caminh�o de lixo. A forma mimetiza uma reportagem sobre uma sucess�o de suic�dios ocorridos no curso de medicina da USP, escrita por um aluno para o jornal laboratorial na �poca em que eu lecionava na ECA/USP. O aluno adotou a primeira pessoa: “Ontem, eu me matei ...”.”
“A aposta” foi escrita de uma tacada s�, sem que eu precisasse corrigir, burilar, nada. Isso acontece com a maioria dos meus contos, os melhores. O que remete para a sua pergunta sobre a rela��o entre o desamparo da experi�ncia humana no cotidiano e as condi��es pol�ticas e sociais, e minha resposta � que seja essa rela��o ou a frequente aus�ncia de afeto em la�os familiares, observada por um cr�tico liter�rio em muitos dos meus contos, surgem espontaneamente no ato de escrever, sem que eu disso tenha consci�ncia.
No m�s passado foi noticiado que, em decis�o in�dita, a Justi�a de SP condenou um agente da ditadura civil-militar por crime pol�tico. Apesar de tardia, a medida � hist�rica, ainda mais no momento que vivemos, sob um governo de militares e de revisionistas do golpe de 1964. Mas, al�m de punir os crimes da ditadura, � preciso fazer o trabalho de mem�ria, para que, efetivamente, possamos combater a barb�rie e fortalecer a democracia. Nesse sentido, para o senhor qual seria o papel da literatura?
A ditadura marcou a minha gera��o. Eu a cobri como jornalista e a sofri como pessoa. Por�m, em tese, n�o creio que o ficcionista se proponha a desempenhar uma determinada fun��o social ou pol�tica ou ideol�gica ou de persuas�o; muito menos substituir historiadores ou jornalistas. Penso que o ficcionista � sujeito de um impulso criativo que o domina, mesmo quando ele parte de um projeto pr�-delineado. Dito isso, obviamente, suas convic��es, sentimentos e vis�es de mundo e mesmo necessidades pessoais de remiss�o ou catarse v�o marcar o que ele escreve.
Em tempos de ascens�o do obscurantismo, do culto � viol�ncia e de desprezo pelas minorias, qual � a import�ncia da literatura?
“Quando ou�o falar em arte, saco meu rev�lver” � a frase famosa atribu�da a um general fascista. Os fascistas odeiam a arte, e isso diz tudo. Penso que a express�o ou sublima��o pela arte � o que h� de mais humano nos humanos, da� sua incompatibilidade com o desumano com o anti-humano. Penso que a cria��o art�stica seja literatura, cinema, m�sica ou artes pl�sticas, nasce da como��o e inconformismo perante a mis�ria humana, ou do deslumbramento perante o belo, ou da perplexidade perante o insond�vel; pode nascer de tudo isso, raramente nasce do �dio.
De onde v�m as hist�rias que voc� conta?
Muitos contos de “Voc� vai voltar pra mim” nasceram de testemunhos � Comiss�o da Verdade da Assembleia Legislativa de S�o Paulo, que acompanhei. Por�m a maioria nasce de um fragmento isolado de informa��o. Soube que um pai quis enterrar o filho desaparecido pol�tico e, na aus�ncia do corpo, colocou no caix�o um par de sapatos do filho.
Dessa �nica informa��o nasceu o conto “O vel�rio”, todo ele imaginado. Alguns poucos, como “A beata Vav�”, “O ex�lio de Pompeu” e “O crime do marinheiro” nasceram de relatos mais longos. Levo comigo uma caderneta de anota��es e anoto frases ou o relato de um fato. Em 10 anos, enchi cerca de 90 cadernetas. At� que veio a pandemia e tudo parou. � raro nascer uma hist�ria da observa��o direta, como foi o caso de “A aposta”.
Dessa �nica informa��o nasceu o conto “O vel�rio”, todo ele imaginado. Alguns poucos, como “A beata Vav�”, “O ex�lio de Pompeu” e “O crime do marinheiro” nasceram de relatos mais longos. Levo comigo uma caderneta de anota��es e anoto frases ou o relato de um fato. Em 10 anos, enchi cerca de 90 cadernetas. At� que veio a pandemia e tudo parou. � raro nascer uma hist�ria da observa��o direta, como foi o caso de “A aposta”.