
J� da janela que me mostra a cidade, do alto e de longe, tudo l� fora � lento, quase parado.
Mas no quase cabe muito. Falo de paisagem externa: a casa demolida, o edif�cio que desponta, a ferrugem na prote��o da lumin�ria – na dem�o �s avessas que o tempo, neur�tico-obsessivo, insiste em passar nas coisas. E h� de se falar tamb�m da paisagem interna, das mudan�as na malha da nossa constitui��o, que nos transformam nisso que somos. Eis a experi�ncia da travessia. Paisagens, externa e interna, se determinam, �ntimas e �xtimas.
A cidade que me chega, assim como o pa�s a que ela pertence, revela-me o que eu n�o imaginava poucos anos atr�s. Conhe�o os horrores hist�ricos e dom�sticos. Entretanto, por n�o terem sido combatidos, geram horrores novos, filhotes vorazes. Na falta de vacina contra as mazelas sociais do pa�s, eu vislumbro, j� a olho nu, muta��es no horizonte.
Traduzo atualmente “Porti ciascuno la sua colpa: cronache dalle guerre dei nostri tempi”, da jornalista italiana Francesca Mannocchi. Algo como “Cada um que carregue sua culpa: cr�nicas das guerras dos nossos tempos”. O livro faz entrar pela minha outra janela regi�es onde o Estado Isl�mico meteu n�o s� o nariz ou o dedo, mas todo o corpo do seu fundamentalismo. E meus olhos ora miram atentos a tela, ora buscam solu��es tradut�rias – para o texto e para mim – mirando a cidade em que vivo, uma cidade brasileira. Vou e volto nesse movimento, voo at� as terras do Oriente M�dio e volto de l� trazendo olhos novos, que leem com as lentes n�o apenas dos �culos que uso para miopia, mas dos pr�prios fantasmas, essa cidade que, se ficamos desatentos, parece n�o mudar.
No in�cio, achei que era a miopia quem fazia as janelas se fundirem.
H� pouco tempo eu via o Estado Isl�mico com um estranhamento dif�cil de assimilar. O exerc�cio de abstra��o era �rduo demais. O jeito de pensar, agir, sentir n�o dialogava com meu universo de refer�ncias. Lembro-me, na �poca em que escrevia meu romance “Vertigem do ch�o”, de ter lido “Herege”, de Ayaan Hirsi Ali. A cada p�gina, o queixo descia um cent�metro. Era uma mistura de horror e incredulidade � certa altura de “Vertigem”, meu personagem brasileiro – Leonel – se v� hospedado, em Utrecht, na casa de uma imigrante mu�ulmana, a respeito de quem n�o sabe nada al�m da sopa de estere�tipos que todos recebemos em por��es variadas. Ele pensa:
Aquela mulher n�o deveria estar ali, mas muito longe, sob um sol que castigava ru�nas, entre explos�es e escombros, chorando a morte de crian�as em algum massacre, rodeada por homens com turbantes empunhando metralhadoras, pedras, paus, em algum lugar quente e empoeirado do mundo.
O que era t�o distante em termos de geografia e realidade tem se entranhado na realidade brasileira. Exagero?
Irracionalidade obscurantista
De volta ao presente, o livro de Mannocchi me interroga: o fundamentalismo – que tratarei aqui sem distingui-lo do fanatismo –, uma vez instalado com sua estrutura monol�tica, pode ser afetado por fissuras que permitam infiltra��es de disson�ncia, de d�vida?
N�o � isso que, incrivelmente, temos tamb�m nos perguntado no Brasil? H� limite, haver� um momento em que a irracionalidade obscurantista encontrar� um muro onde se deter?
Em uma das passagens do livro-reportagem de Mannocchi, encontramos Abudi, 12 anos, que, enquanto falava,
cruzava nervosamente o polegar e o indicador da m�o esquerda, o movimento dos dedos ficava mais brusco quando contava as viol�ncias que havia testemunhado. “A primeira execu��o foi terr�vel. Tr�s rapazes degolados na pra�a, a golpes de espada. A segunda tamb�m foi feia: um rapaz jogado de um pr�dio, acusado de bruxaria. Mas a terceira que eu vi, a de Mourad, foi a pior. N�o era a mais violenta, por�m era a mais pr�xima de n�s. Ou foi a pior porque est�vamos nos acostumando, era o que papai falava. Dizia: ‘Meu filho, n�o se acostume’”.
N�o se acostume.
� del�rio paranoico ver as duas janelas se aproximando? Minha incredulidade de outrora, que me fazia escrever exclama��es e interroga��es desconfiadas � margem do livro de Hirsi Ali, desapareceu. Aproxima-se o tempo em que, no Brasil, teremos oficialmente o fundamentalismo trevoso – vou manter a redund�ncia –, que domina pelo medo, que amea�a o espa�o subjetivo das pessoas, que se imp�e pela invas�o violenta de seus corpos.
A vida de Abudi j� foi muito semelhante � de algumas crian�as que conhecemos. Ele conta:
Antes da chegada do EI eu estava no quarto ano, o meu professor preferido era o Younes, e eu gostava tamb�m do diretor Qusai. Os meus melhores amigos eram Khaled, Muhammad, Ahmad e Yussef.
(...)
Da� chegou o EI. E na escola as letras do alfabeto passaram a ser usadas como exemplos para dar o nome das armas: P para proj�til, H para howitzer (...). Em um dos textos que usavam para nos ensinar matem�tica estava escrito: “se uma crian�a explode a si mesma em meio a um grupo de vinte pessoas e morrem quinze, quantas pessoas restam vivas?”. E da� nas escolas havia as crian�as dos milicianos, os seus filhos, vestidos de soldados como os pais, e armados. Tentavam convencer as outras crian�as a jurar fidelidade ao Califa.
Hoje, consigo o que n�o conseguia h� menos de 10 anos: entrever em um livro did�tico brasileiro problemas matem�ticos que falem em explodir comunistas (esses fantasmas incorp�reos que encarnam em qualquer um que proponha marcos civilizat�rios de conviv�ncia), gays, trans, feministas, negros, pobres, presos. � a escola sem ideologia. Consigo ainda ver em boa parte dos meus conterr�neos a saliva a escorrer no canto da boca.
Mannocchi segue seu relato: depois de ocupar a cidade de Sirte, na L�bia, o Estado Isl�mico finalmente sai derrotado. Como a liberta��o era recente, marcas da presen�a do EI ainda se faziam ver. Caminhando pela cidade destru�da:
havia ainda dois cartazes do Estado Isl�mico. O primeiro convidava os jovens a rezar, o segundo mostrava um kalashnikov e um texto que dizia: “se voc� nos trai, trai a sua fam�lia” (...). Nos hospitais de campanha chegavam crian�as desidratadas e aterrorizadas. Os m�dicos perguntavam onde estavam os pais. Elas respondiam: “Estavam lutando contra voc�s”. Os mais perturbados gritavam para os m�dicos e para os enfermeiros que eles eram infi�is e acabariam no inferno.
O fan�tico faz uma troca. Ele abre m�o de si, afinal, � custoso carregar o peso de ser sujeito e abrir-se para a disson�ncia. Ent�o deposita a exist�ncia nas m�os de uma for�a superior � qual se liga verticalmente. A chance de se deparar com o desejo errante � trocada por um caminho un�voco – sem equ�voco nem err�ncia – que d� seguran�a e livra de dilemas.
Fanatismo e psicose
Se um fan�tico fundamentalista se sentar no sof� de sua casa – ou deitar-se no div� – e pedir para que voc� aponte os motivos pelos quais ele deveria mudar, o que voc� faria? Nascemos todos nus, de roupas e discursos, mas fomos agasalhados com ambos desde muito cedo. Para quem estrutura a vida ps�quica eliminando cis�es internas, insinuar a d�vida � perigoso. Em algum sentido, o fanatismo se assemelha � psicose: qualquer rasgo no tecido do discurso montado representa a possibilidade de um surto, de uma viol�ncia contra si mesmo ou contra o interlocutor.
Sempre h� inimigos no horizonte do fan�tico, que, diante da incapacidade de dar linguagem � d�vida, d� lugar � passagem ao ato, em geral violento. Sendo assim, o hipot�tico pedido do fan�tico no sof� da sua casa n�o passa de um exerc�cio bastante irrealista, a menos que ele d� um tom sarc�stico, zombeteiro � solicita��o que faz. Jamais lan�ar� m�o de um pedido assim como se estivesse interessado em “bl�-bl�-bl�, entender outra forma de pensar bl�-bl�-bl� e cotej�-la com o meu modo pessoal de entender a vida bl�-bl�-bl� a fim de, por meio de encontros dial�ticos e dial�gicos bl�-bl�-bl�, tornar mais rico e complexo o meu ser bl�-bl�-bl�”. Vai � gargalhar com os olhos estalados.
Sempre h� inimigos no horizonte do fan�tico, que, diante da incapacidade de dar linguagem � d�vida, d� lugar � passagem ao ato, em geral violento. Sendo assim, o hipot�tico pedido do fan�tico no sof� da sua casa n�o passa de um exerc�cio bastante irrealista, a menos que ele d� um tom sarc�stico, zombeteiro � solicita��o que faz. Jamais lan�ar� m�o de um pedido assim como se estivesse interessado em “bl�-bl�-bl�, entender outra forma de pensar bl�-bl�-bl� e cotej�-la com o meu modo pessoal de entender a vida bl�-bl�-bl� a fim de, por meio de encontros dial�ticos e dial�gicos bl�-bl�-bl�, tornar mais rico e complexo o meu ser bl�-bl�-bl�”. Vai � gargalhar com os olhos estalados.
Mannocchi est� preocupada com as crian�as, filhas dos soldados do Estado Isl�mico, e pergunta a Rodi, um l�bio que a acompanha:
“O que voc� acha que se deve fazer com os filhos do EI, Rodi?
“Mataremos o m�ximo poss�vel deles, o que eles v�o fazer?”, respondeu com tranquilidade. “O Iraque certamente n�o tem recursos e provavelmente nem vontade de salvar esses meninos. N�o h� projeto a longo prazo para que se livrem da lavagem cerebral que fizeram neles, por isso correm o risco de se tornarem piores do que seus pais, al�m disso ainda ser�o estigmatizados e rejeitados por todos”.
(...)
Ele estava me dizendo: � f�cil para voc� (...) pensar sobre as categorias de bem e de mal, de perd�o e de castigo, mas aqui existe a guerra e os julgamentos s�o mais simples, as diferen�as perdem a sutileza e quando perdem a sutileza geralmente o mal vence.
Rodi vai al�m: depois de dizer que tais crian�as, se viverem, crescer�o estigmatizadas, afirma que esse estigma se tornar� uma identidade em torno da qual se unir�o para formar novos grupos cada vez mais embebidos no ressentimento, na revolta, no fanatismo.
No Brasil, termos como supremacia branca, mil�cia, armamentismo-crist�o, narcopentecostalismo entraram no vocabul�rio e no imagin�rio. Trazem consigo �dio, amea�a, viol�ncia. O fundamentalismo boicota a golpes de palavras e de tiros toda busca por discernimento, toda tentativa de organizar acordos de conviv�ncia em que se possa tecer a vida – n�o a morte – a partir da apropria��o subjetiva do desejo. Mas para lidar com o desejo, � preciso se haver com a falta e com a lei que todo desejo implica.
Por isso, a d�vida � salutar, porque faz se abrirem lacunas no sujeito, e lacunas s�o espa�o movente, por onde se pode transitar, mudar, deslocar-se.
A d�vida que habita o n�o fan�tico � fruto da tentativa de n�o aliena��o irrestrita � figura de um Outro. Por mais inevit�vel que seja carregarmos em n�s as marcas dos que nos formaram, a separa��o desse Outro nos torna mais propensos a saber qual � o nosso desejo e a n�o fazer eco ao desejo do Outro.
Alienar-se ao Outro significa andar com as pernas dele, ver com os olhos dele, falar com a voz dele. � fazer-se integralmente objeto desse Outro.
Do sofrimento � viol�ncia
No fan�tico, portanto, a disson�ncia traz muito sofrimento. Que pode gerar viol�ncia. Se a disson�ncia for interna (duvidar de si mesmo, ou do discurso que habita esse si mesmo na verdade t�o Outro!), pode-se gerar autopuni��o, culpa. Se a disson�ncia for externa, do vizinho, de qualquer outra pessoa, pode-se gerar agressividade verbal e f�sica.
A partir da�, v�m-me � cabe�a alguns silogismos curiosos, dos quais ficamos ref�ns algumas vezes.
Se:
Toda liberdade de express�o deve ser respeitada.
Mas:
Fulano se expressa atacando a liberdade de express�o.
Logo:
(a) Fulano deve ser respeitado; afinal, est� se expressando livremente
(b) Fulano n�o respeitou a premissa maior, ent�o n�o merece ser respeitado
Se:
Precisamos ser sempre tolerantes.
Mas:
Fulana foi intolerante.
Logo:
(a) fulana precisa ser tolerada; afinal, precisamos ser sempre tolerantes
(b) fulana n�o precisa ser tolerada, pois infringiu a premissa maior
A resposta do fan�tico aos silogismos ser�, sem sutilezas, a que mais lhe interessa, a que mais lhe conv�m, a que mais agrada ao Outro que fala nele. O fan�tico n�o est� interessado em implicar-se subjetivamente. Ou n�o consegue.
Fico aqui tentando compor d�vidas que me assaltam, expor posi��es que me preocupam, d�o medo, angustiam. Trata-se de um convite � interlocu��o, um pedido de ajuda para que a elabora��o encontre no outro – agora em letra min�scula – peda�os de discurso que contribuam para algum sentido provisoriamente organizador.
Do fundamentalista, por�m, n�o sai convite, n�o sai pedido.
No fundamentalista n�o h� escuta.
O fundamentalista n�o � poroso, n�o absorve, n�o faz circular sangue in�dito pelas entranhas. � bloco de concreto muito armado. � bloco de notas, escritas pelo Outro.
Volto a pensar em Abudi, esse menino que eu sempre preferi acreditar que s� existia nos rinc�es do fim do mundo – o terraplanista que existe em meus preconceitos me sa�da. Penso ainda na foto j� cl�ssica do urso-polar agarrado a um �ltimo peda�o de gelo que derrete.
E ent�o penso finalmente nos abudis daqui, mas tamb�m nas crian�as que j� veneram armas e acompanham os pais em manifesta��es coalhadas de s�mbolos da aliena��o a esse Outro que mostra o suposto Caminho, a pretensa Verdade – mas n�o a Vida, para usar uma refer�ncia crist�. Eles t�m um deus, um l�der, uma bandeira: a diversidade lhes � intoler�vel, ela agride e se torna a pista mais evidente de que isso que poderia ser espa�o de deslocamento, desejo, hip�tese, encontro, n�o tem permeabilidade no corpo fan�tico.
O poeta Ferreira Gullar nos deixou, entre tantos outros legados, um aforismo cl�ssico: “A arte existe porque a vida n�o basta”. Enquanto muitas vidas existem dentro e fora do sujeito de desejo, enquanto precisamos ler literatura para ganhar um pouco mais de vida e novas respira��es, enquanto nos alimentamos de narrativas diversas para tentar simular experi�ncias igualmente diversas, o fundamentalismo � a antiarte. Ele inveja, na esfera inconsciente, as vidas que n�o s�o a sua, por isso quer v�-las mortas. O j� saudoso Contardo Calligaris esclarece: “A vontade de mandar nos outros aparece quando n�o conseguimos mandar em n�s mesmos”.
Na esfera da consci�ncia, contudo, um fundamentalista que esteja em qualquer uma das minhas janelas transformaria o aforismo de Gullar em “a arte n�o pode existir porque a minha vida me basta”, ela est� em ordem, todas as narrativas fazem sentido do jeito como est�o, nada pode ser revolvido. E como a vida dele � a certa, precisa transformar a vida dos outros na imagem e semelhan�a da sua. Todos espelhos refletindo a imagem ideal uns dos outros.
O problema � que esse para�so fundamentalista n�o se apaziguar� porque o estrangeiro, o estranho, o diferente, j� tantas vezes degolado e esquartejado, come�ar� aos poucos a latejar outra vez. E um inimigo novo, feito de fantasia ou del�rio, ganhar� consist�ncia. Ele ser� visto no bairro ao lado, e o fan�tico ir� at� l� mat�-lo. Depois o inimigo ser� visto rondando o quarteir�o. O fan�tico ficar� � espreita, far� uma emboscada na madrugada e o matar�. At� revelar-se a clara verdade: o inimigo � seu vizinho. E ser� executado. Duas noites tranquilas de sono depois, a epifania definitiva: o inimigo est� dentro de casa. Ser� agredido, violentado, morto.
O fan�tico fez o que precisava ser feito e tomba exausto. Mas n�o descansar�, logo ouvir� passos e vozes indistingu�veis. Vai at� a janela, nada l� fora. Os passos e as vozes indistingu�veis persistem. Mas l� fora, s� o sil�ncio.
* Especialista em psicologia cl�nica, mestre em estudos liter�rios (UFPR), tradutor e escritor. Autor dos romances “Pequena biografia de desejos” (2011), “O beijo de Schiller” (2014, vencedor do Pr�mio Minas Gerais de Literatura) e “Vertigem do ch�o” (2019)