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Estado de Minas ROMANCE

Nobel de Literatura, Olga Tokarczuk lan�a mais um romance excelente

Autora polonesa, que vendeu quase 50 mil exemplares de "Sobre os ossos dos mortos" no Brasil, est� de volta com as hist�rias fragmentadas de "Correntes"


03/09/2021 04:00 - atualizado 03/09/2021 08:17

Olga Tokarczuk: 'Uma coisa em movimento será sempre melhor'
Olga Tokarczuk: "Uma coisa em movimento ser� sempre melhor" (foto: SASCHA SCHUERMANN/afp)
� recomend�vel sentar-se por um minuto antes de iniciar qualquer tipo de viagem, segundo um antigo costume na Pol�nia oriental. Lemos tal conselho em “A zona de Deus”, hist�ria presente em “Correntes” (Todavia), de Olga Tokarczuk. N�o encontro melhor protocolo de leitura para pensar sobre essa obra. � preciso tomar f�lego, esvaziar a mente e colocar o corpo em estado de alerta para atravessar as quase 400 p�ginas do livro da escritora polonesa. N�o pela extens�o – a leitura flui sem cansar – mas pelas muitas surpresas que revela ao longo do percurso. 

 

A autora, Pr�mio Nobel de Literatura em 2018, acabou ficando um tanto � sombra em fun��o do cancelamento da edi��o naquele ano. S�rias acusa��es de ass�dio surgiram na Academia Sueca e Tokarczuk recebeu a distin��o somente em 2019, junto com o austr�aco Peter Handke. No Brasil, j� era poss�vel acompanhar sua produ��o ficcional no romance “Sobre os ossos dos mortos” (2019, mais de 48 mil exemplares vendidos no pa�s) e no infantil “A alma perdida” (2020). 

 

Catalogado como romance, “Correntes” traz 116 hist�rias, algumas com pouco mais de tr�s linhas, outras com 30 p�ginas. Muitas delas se interrompem no pr�prio cl�max, no momento mesmo em que estamos embarcados na trama, envolvidos com os personagens e suas andan�as. Assim prossegue o leitor, um tanto desamparado, mas esse abandono dura at� o pr�ximo relato, que j� nos enreda em nova teia. Respiramos e seguimos adiante, afinal, � de deslocamentos que se comp�e a maior parte das narrativas.

 

Nelas se fazem presentes navegantes, peregrinos e viajantes de muitos tempos e espa�os. Barcos, balsas, avi�es, trens e carros permitem essa itiner�ncia, que surge como valor e forma de aproxima��o do mundo. Para al�m da quest�o tem�tica, Tokarzcuk desloca a pr�pria no��o de estrutura textual: n�o se trata aqui de um romance tradicional, mas sabemos h� muito o qu�o pl�stico pode ser o g�nero, poroso a toda forma de experimenta��o, aberto a uma not�vel capacidade de se renovar a partir de in�meros formatos poss�veis. A escritora celebra a no��o de peregrina��o e conduz com m�o segura essa maleabilidade – “uma coisa em movimento ser� sempre melhor”. 

 

(foto: Talita Hoffmann/reprodu��o capa do livro)

 

Desse modo, nos deparamos com fragmentos que podem trazer uma palestra a respeito da psicologia de viagem em um aeroporto, um marinheiro rude que suporta o c�rcere porque l� “Moby Dick” na cadeia, ou um anatomista amputado do s�culo 17 cuja obsess�o � refletir sobre a dor que sente no membro perdido, a quem escreve cartas no final da vida. Ou ainda as s�plicas da filha de um diplomata negro, endere�adas ao imperador da �ustria, implorando ao soberano para enterrar o corpo do pai de forma crist�, uma vez que se encontrava exposto e empalhado em um museu de Viena. Acompanhamos ainda a narrativa dos funerais de Chopin, cuja a��o se concentra na figura de sua irm�, Ludovika, que deve atender ao desejo do pianista de ter o cora��o enterrado na Pol�nia natal.

 

Estranha beleza O volume apresenta a cada tanto imagens de estranha beleza, materializadas em in�meros mapas, muitas vezes sem explica��es ou descri��o. O potencial de significa��o desse artif�cio evoca de algum modo o uso das fotografias no romance “Austerlitz”(2001), obra-prima de W. G. Sebald, autor alem�o que tamb�m se deixou fascinar por certa literatura de viagem e a presen�a de personagens em tr�nsito. “Nada curava t�o bem a melancolia quanto a contempla��o de mapas”, afirma o protagonista de “Cartas � perna amputada”. Dessa cartografia inusitada, de pequenas ilhas de sentido espalhadas ao longo da obra, se faz um arquip�lago de narrativas breves, conferindo organicidade ao que parecia carecer dela.

 

Em nosso quase permanente estado de confinamento estamos a maior parte do tempo condenados ao mesmo. J� estes sujeitos deslocados se encontram em constante disponibilidade ao novo, em di�logo poss�vel com a alteridade, e essa � apenas uma das in�meras raz�es para fruir esse conjunto t�o original de hist�rias. No texto que d� nome ao livro o elogio da mobilidade surge por meio de Anushka, uma mulher que vive em Moscou, dedicada ao filho doente e a um marido silencioso. Dentro de uma rotina previs�vel, ela sai de casa sempre em um �nico dia livre para tomar provid�ncias banais.

Em certa ocasi�o, termina por n�o retornar, fascinada pela estranha figura de uma mulher que vive na rua e vocifera um discurso incompreens�vel ao lado da entrada do metr�. De esta��o em esta��o, a personagem se movimenta sem destino pela cidade ca�tica e experimenta a sensa��o de leveza pela primeira vez em anos, mas tamb�m total desconex�o com tudo o que sustenta a vida familiar: interessada em compreender o mon�logo da moradora das ruas, finalmente compreende que suas palavras s�o uma vigorosa defesa do abandono de toda forma de v�nculo, em que coexistem del�rio e absoluta lucidez. 

 

Aqui, a itiner�ncia se relaciona com o louvor � liberdade, em que a insubordina��o � recusa de pertencimento no �mbito individual, e tamb�m coletivo: “O �dio aos n�mades corre no sangue dos tiranos de toda esp�cie, servos do inferno”, alerta a mulher andarilha. Em seu entendimento, pessoas na condi��o errante s�o marginalizadas porque em seu eterno deambular existe a recusa ve- emente de produzir e consumir. E nessa eterna deriva elas s�o tamb�m correntes – no sentido de gente que corre – de sujeitos fora da l�gica perversa do capital. Ap�s dias girando pela cidade, Anushka termina por retornar ao pr�prio lar, consciente de que em nada ser� a mesma.

 

Tamb�m n�s dificilmente sairemos ilesos da experi�ncia liter�ria de peregrinatio. Nessa esp�cie de brevi�rio de viagem, ser n�made � condi��o existencial. Anda-se por terras distantes e tempos distintos na companhia de Tokarczuk. Muitas vezes, se trata de um deslocamento f�sico, mas ele � sobretudo mental, e precisamente nesse ponto fazemos coro �s palavras da personagem andarilha: bendito aquele que parte.  

 

Stefania Chiarelli � professora e pesquisadora de literatura brasileira contempor�nea na Universidade Federal Fluminense (UFF)  

 

TRECHOS

 

“Contudo, eu tenho outra opini�o sobre o tempo. O tempo de todos os viajantes � constitu�do por tempos m�ltiplos, uma complexidade dentro de um �nico tempo. � o tempo da ilha, arquip�lagos de ordem num oceano do caos, um tempo produzido pelos rel�gios nas rodovi�rias, diferente em todos os lugares, tempo convencional, tempo m�dio, que ningu�m deveria levar muito a s�rio. As horas que desaparecem num avi�o em voo, o amanhecer que chega num instante com a tarde e a noite em seu encal�o. O tempo agitado das grandes cidades onde voc� est� por pouco tempo, querendo cair nas garras da noite, e o tempo pregui�oso das plan�cies desabitadas vistas do avi�o.”

 

...


“Essa vida n�o � para mim. Claramente eu n�o herdei esse gene que faz a pessoa criar ra�zes ao permanecer em algum lugar por mais tempo. Tentei v�rias vezes, mas as minhas ra�zes sempre foram superficiais e o m�nimo sopro do vento me derrubava. N�o sei germinar, fui privada dessa capacidade vegetal. N�o consigo extrair a seiva do solo, sou um Anteu �s avessas. Minha energia vem do movimento — do chacoalhar dos �nibus, do barulho dos avi�es, do balan�ar das balsas e dos trens.” 


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