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Estado de Minas POESIA

Ensaios renovam a leitura da poesia de Baudelaire

O professor mineiro Eduardo Veras reuniu suas reflex�es sobre o poeta franc�s no livro 'Baudelaire e os limites da poesia'


03/09/2021 04:00 - atualizado 03/09/2021 08:22

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(foto: quinho)
No ano em que se celebram os 200 anos do nascimento de Charles Baudelaire (1821-1867), podemos dizer que a obra do poeta franc�s n�o apenas aqui se aclimatou, mas floresceu e frutificou. Desde o final do s�culo 19, sua influ�ncia � clara na obra dos nossos simbolistas, parnasianos e pr�-modernos: em Cruz e Souza, Maranh�o Sobrinho, Sous�ndrade e Augusto dos Anjos, entre os maiores. 

Mas � sobretudo nos modernistas de 22 que os efeitos corrosivos da rela��o problem�tica de Baudelaire com a poesia e com a hist�ria se far�o sentir. Em Manuel Bandeira, por exemplo, na figura do poeta doente, sempre aspirando a uma Pas�rgada imposs�vel, mas andando em meio ao mangue e ao beco que lhe sujam o terno branco, vociferando por um lirismo de liberta��o e por um ritmo dissoluto; em Drummond, que j� se assume desde o primeiro poema como gauche como o “Albatroz” baudelairiano, alegoria do poeta inquieto e desajustado em rela��o ao seu tempo; no M�rio de Andrade da “Pauliceia desvairada”, que revive as andan�as do fl�neur baudelairiano pela Paris das passagens e da burguesia arrogante; em Oswald, enfim, menos pelo car�ter pros�dico, e mais pela posi��o de conflito com o passado, com o car�ter de polemista e inventor de novas formas (e paralelamente destruidor de f�rmas). 

Para al�m dos modernistas, o legado de Baudelaire no Brasil (e no mundo) pode ser comparado ao de Beethoven na m�sica. Sem Beethoven, a m�sica teria seguido um caminho ascendente em busca de harmonias poss�veis e de promessas de felicidade e de paz universal. Mas os primeiros acordes da 3ª sinfonia de Beethoven j� introduzem uma ruptura incons�til no tecido at� ent�o est�- vel da harmonia, a qual se transformar� em conflito e contradi��o permanentes.

Em outros termos, Beethoven j� sentira o baque da Revolu��o Francesa, e ao mesmo tempo j� entendera aquilo que Hegel chamaria de prosifica��o do mundo. Na li- teratura, esse grande baque vai se fazer sentir mais fortemente nas obras de Flaubert (“Madame Bovary”, 1856) e de Baudelaire (“As flores do mal”, 1857). Em ambas as obras, o mundo prosaico e cotidiano � visto com desencanto e desprezo, ao passo que o trabalho est�tico atinge um patamar absolutamente sublime. Em outros termos, a arte passa a exprimir as contradi��es sociais do mundo prosaico, numa contradic��o da arte prosificada.

"Mais citado e traduzido poeta do mundo, Baudelaire publicou apenas um livro de poesia em vida; seu segundo livro mais conhecido, o "Spleen de Paris (Pequenos poemas em prosa)" � uma obra p�stuma. Numa �poca em que todos querem publicar tudo a todo custo, e num pa�s em que os livros de poesia brotam como flores na primavera (ou como brotoejas de beb�s), a obra de Baudelaire � exemplar"


� nesse sentido que vai a leitura excelente de Eduardo Veras, em “Baudelaire e os limites da poesia”, que inaugura a cole��o de ensaios da Editora Cors�rio-Sat�. Com sete textos escritos entre 2014 e 2019, o livro vem na esteira de importantes pu- blica��es recentes no Brasil: a nova tradu��o de “As flores do mal”, por Julio Casta�on Guimar�es (Penguin, 2019) e duas tradu��es de “Spleen de Paris (Pequenos poemas em prosa)”: a de Samuel Titan Jr. (Editora 34, 2019) e a do pr�prio Eduardo Veras, com Isadora Petry (Via Leitura, 2018).

Se essas tradu��es atualizam para o leitor brasileiro o que a cr�tica de Walter Benjamin j� vinha mostrando desde os anos 1930 (ou seja, o car�ter absolutamente moderno e cr�tico da poesia e da prosa baudelairiana do ponto de vista do estilo), livrando-a de um ran�o parnaso-simbolista, os ensaios de Eduardo Veras situam o leitor de Baudelaire no seu devido contexto: a literatura francesa dos �ltimos 150 anos, que foi profundamente abalada pela poesia e pela prosa de Baudelaire.

Destrui��o da harmonia rom�ntica

Em outros termos, a leitura de Veras tem implica��es importantes com a posi��o de Baudelaire no debate liter�rio contempor�neo ao poeta, mas tamb�m sobre o lugar da poesia no nosso mundo contempor�neo. Ou talvez se possa dizer que � o pr�prio conceito do contempor�neo que n�o cessa de estar em crise desde Baudelaire. Vejamos. “O spleen baudelairiano representa a destrui��o da harmonia rom�ntica entre a natureza, o homem, e o sentido”, afirma Veras no primeiro ensaio.

Embora a palavra spleen j� fosse usada na l�ngua inglesa antes de Baudelaire, para traduzir a melancolia rom�ntica, em Baudelaire ela adquire a conota��o material de uma melancolia inc�moda, de uma insatisfa��o permanente com tudo e com todos – qui�� poder-se-ia dizer que a depress�o dos jovens de hoje � herdeira do spleen baudelairiano. Trata-se de uma crise permanente n�o apenas na poesia (como a descreve Marcos Siscar, que prefacia o livro), mas na “rela��o entre vida e linguagem”, afetando tanto a religi�o quanto a pol�tica, que passam a imbricar-se conflituosamente no cora��o do poeta – e da poesia. 

Aparentemente, Baudelaire toma um partido conservador de ades�o ao catolicismo, contrapondo-se ao humanitarismo progressista do s�culo 19, ao passo que vai tamb�m contribuindo para transformar a arte numa nova religi�o (o que muito agradar� a um certo Nietszche). Mas, paralelamente, Baudelaire convoca para um festim-motim po�tico personagens do submundo citadino (prostitutas, maltrapilhos, escroques, l�sbicas, catadores de lixo, e toda uma coorte de desajustados sociais), e prop�e ele mesmo um mergulho na vida mundana e material, para extrair dela o m�- ximo de prazer e intensidade, sem deixar de mencionar toda a dor envolvida nesse percurso explorat�rio. Como afirma Veras no livro, Baudelaire cria um par�ntese entre a religi�o e a arte, a partir de onde instaura um olhar cr�tico para a poesia e para o progresso. 

Mas n�o se trata de uma posi��o confort�vel. Uma das consequ�ncias de assumir o paradoxo (entre a ascens�o e a queda) ser� a crise com a harmonia musical, que est� na origem mesma do lirismo (� preciso lembrar que o lirismo se origina na lira e do canto de Orfeu tanto quanto de uma vis�o do cosmos como ordem e simetria na tradi��o �rfico-pitag�rica).

Baudelaire se v� como um sino rachado, e como um “faux accord” (que � ao mesmo tempo um acorde falso e um acorde desafinado) na “divina sinfonia”. Como demonstra Veras no seu terceiro ensaio, a rela��o de Baudelaire com a m�sica est� longe de ser pac�fica, e ela nortear� as v�rias crises por que passar� a poesia (sobretudo a francesa) em rela��o � tradi��o do lirismo. Francis Ponge, por exemplo, dir�: “Cortei uma a uma as cordas da minha lira”. 

Mas o miolo da grande leitura que Eduardo Veras faz de Baudelaire – uma leitura, vale lembrar, atualizad�ssima, mesmo para um leitor franc�fono – est� na rela��o tensa entre poesia e prosa na obra de Baudelaire. Aqui � preciso lembrar o fato interessant�ssimo que o mais citado e traduzido poeta do mundo publicou apenas um livro de poesia em vida, e que seu segundo livro mais co- nhecido, o “Spleen de Paris (Pequenos poemas em prosa)” � uma obra p�stuma. Numa �poca em que todos querem publicar tudo a todo custo, e num pa�s em que os livros de poesia brotam como flores na primavera (ou como brotoejas de beb�s), a obra de Baudelaire � exemplar. 

A publica��o dos poemas em prosa �, contudo, um problema. Ao contr�rio de “As flores do mal”, n�o se entrev� neles um esqueleto, uma arquitetura. S�o textos n�o apenas dispersos na rela��o de conjunto, mas parecem conter uma dispers�o interna, uma indecis�o, em resumo, uma crise. Ora, essa crise, como mostra Veras, j� estava instaurada nas Flores do Mal, e ela se associa com a posi��o travestida que o poeta assume na sociedade. Assim como ele se imiscui na multid�o de burgueses curiosos de novidades e de maltrapilhos sem esperan�as, mantendo ao mesmo tempo um entusiasmo e um desprezo pelo progresso; assim como instaura em sua poesia uma crise entre linguagem e representa��o; assim como adere a ideais conservadores na pol�tica, mas revolucion�rios na arte e nos costumes (na biopol�tica, dir�amos hoje); assim tamb�m a prosa po�tica de Baudelaire invade o espa�o do jornal e do jornalismo para se colocar de forma cr�tica e pol�mica em rela��o ao seu tempo. Ou seja: Baudelaire assume a crise da prosifica��o do mundo, mas a assume de forma po�tica. Desse modo, a prosa se poetiza, e a crise se transforma em cr�tica.

N�o ser�, portanto, por acaso, que justamente na Fran�a ir� proliferar, depois de Baudelaire, a forma do poema em prosa, ou, tout court, da prosa, vista n�o mais como uma ant�tese da poesia, mas, antes, como o seu complemento, ou me- lhor, seu suplemento. Dito de modo curto e grosso, para fim de conversa: sem a prosa de Baudelaire, n�o ter�amos as “Ilumina��es” de Rimbaud, “Os cantos” de Lautr�amont, as “Connaissances” de Paul Claudel, o segredo profissional de Jean Cocteau, a cosmogonia das coisas de Francis Ponge. Isso apenas para mencionar o �mbito franc�s. Por todos esses elementos, torna-se imprescind�vel ler o livro de Eduardo Veras sobre Baudelaire. 

Adalberto M�ller � professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal Fluminense (UFF), tradutor e escritor

Sobre o autor

Nascido em Belo Horizonte, em 1982, Eduardo Veras � professor adjunto do Departamento de Estudos Liter�rios da Universidade Federal do Tri�ngulo Mineiro. Doutor em literatura comparada pela UFMG, com um estudo sobre a obra de Baudelaire, Veras � autor do ensaio “O orat�rio po�tico de Alphonsus de Guimaraens: uma leitura do Seten�rio das Dores de Nossa Senhora” (Relic�rio, 2016) e do livro de poemas “Deserto azul” (Penalux, 2018). 

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(foto: J�lia Veras/Divulga��o)
 

Entrevista
Eduardo Veras

“Baudelaire � um poeta urgente em tempos de obscurantismo” 


Como Baudelaire influenciou os poetas do s�culo 20, em especial, no Brasil? 
O legado de Baudelaire � m�ltiplo. Mais explicitamente, ele passa por sua defini��o e experi�ncia da modernidade, que, grosso modo, relaciona-se � fidelidade ao presente como mat�ria po�tica. Seu desejo heroico de extrair do Mal – teol�gico e hist�rico – uma nova beleza inaugura uma vis�o da poesia como impasse, como resist�ncia � decad�ncia, desejo de eleva��o e consci�ncia de seus pr�prios limites, ao mesmo tempo. Creio que a heran�a baudelairiana para o s�culo 20 esteja justamente no postulado das condi��es de exist�ncia da poesia – da arte – no mundo moderno, o mundo da t�cnica, do capitalismo industrial, da metr�pole. � algo bastante amplo, por�m fundamental.

Eu diria que, em alguma medida, as principais linhas de for�a da poesia do s�culo 20 constituem respostas diversas a problemas baudelairianos como esse. Drummond tamb�m reivindica o presente como sua mat�ria e vivencia impasses semelhantes aos de Baudelaire. Se o impacto do poeta franc�s nem sempre � expl�cito sobre nossos poetas, ele atravessa, a meu ver, ora mais ora menos subterraneamente, nossa modernidade tamb�m. Com Baudelaire, nasce menos um estilo que uma episteme da modernidade po�tica.

Quais os limites que Baudelaire ultrapassou com a sua poesia?
Acho que Baudelaire testa mais que ultrapassa os limites da poesia. Esta, para ele, est� ligada principalmente a duas ideias: a legibilidade do mundo (para ele o poeta � um tradutor) e o retorno � origem, a possibilidade de reconcilia��o entre a linguagem, as coisas e o homem. Ora, sua poesia dramatiza justamente a crise dessa vis�o de poesia, crise que ele reencena sem cessar. O caos, a disson�ncia, a fragmenta��o do sujeito, a dissolu��o dos contornos, o fracasso hermen�utico, a infiltra��o da prosa e do ru�do no poema s�o algumas figuras dessa crise. Por fim, eu diria que a crise � o lugar mesmo da poesia e do pensamento de Baudelaire, da�, a meu ver, sua capacidade de colocar problemas, de nos convidar a pensar.

O que Baudelaire tem a dizer aos leitores do s�culo 21?
Baudelaire � um poeta urgente, mais que isso, � uma intelig�ncia urgente em tempos de sectarismo, fundamentalismo e obscurantismo como o nosso. Seu partido da poesia � o partido de uma criticidade radical e incans�vel, da recusa a dogmatismos de qualquer ordem. O que sempre me chamou a aten��o em sua obra foi sua capacidade de materializar poeticamente o pensamento, n�o um pensamento, mas o pr�prio pensamento como din�mica, como pol�mica, como problema. A poesia de Baudelaire se inscreve no espa�o lim�trofe entre o poder da palavra e o reconhecimento de sua fratura. Trata-se de algu�m que nos ensina, portanto, a considerar a ambiguidade que atravessa a linguagem – seu desejo de ser mais que linguagem, sua consci�ncia de ser apenas linguagem. Reconhe�o nisso uma tarefa democr�tica (ainda que Baudelaire jamais me autorizasse a diz�-lo), a tarefa da cr�tica e da autocr�tica.  

“Baudelaire e os limites da poesia”

De Eduardo Veras
Editora Cors�rio-Sat�
192 p�ginas
R$ 45


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