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Estado de Minas POESIA

Dentro da mente veloz de Ferreira Gullar

Colet�nea com dez livros do escritor maranhense ganha nova edi��o e reafirma a for�a dos versos do autor de 'Poema sujo'


17/09/2021 04:00 - atualizado 17/09/2021 09:08

(foto: kleber)
“Toda poesia”, reuni�o da obra po�tica constru�da por Ferreira Gullar ao longo de 60 anos, ganhou, em 2021, nova e cuidadosa edi��o, o que d� chance de acompanhar a evolu��o dos mecanismos liter�rios essenciais de um dos mais importantes autores brasileiros do s�culo 20. Publicada pela primeira vez em 1980 pela editora Civiliza��o Brasileira, a antologia de 10 t�tulos teve o mais recente acr�scimo em 2015, com a inclus�o do �ltimo livro de poemas do autor, “Em alguma parte alguma”. 

 

Em artigo recente, Ruy Castro recuperou versos escritos em 1949 pelo escritor maranhense para dizer que ali se encontrava um “Gullar pr�-Gullar”, o qual estava textualmente fora do conjunto recolhido em “Toda poesia”, mas essencialmente vinculado ao cerne da sua po�tica. Entre esses versos, Castro destaca o quarteto a seguir: “Essa mansa can��o de gestos lentos/ m�os que salvaste p�ssaros e almas/ afaga as minhas m�os em cujas palmas/ crescem desejos de estrangulamentos.” N�o deixa de haver mesmo parentesco entre a can��o que dispara os “desejos de estrangulamento” e o poema “Bomba suja”, que convoca a palavra “diarreia”, publicado no livro “Dentro da noite veloz”, de 1976.

O perfil de Ferreira Gullar que desponta da leitura de sua poesia reunida, contudo, � o de um poeta de alcance bem mais consequente do que este que, em certo sentido, sempre mirou algo de iconoclastia, como registrado seja nos versos de juventude, em fins dos anos 1940, seja na disposi��o pol�tica mais acentuada nos escritos na d�cada de 1970.  

 

A trajet�ria po�tica de Gullar (1930-2016), quando vista de ponta a ponta, remete a um processo lento de amadurecimento. Nele verifica-se a apropria��o progressiva de certos recursos que se consolidaram como t�picos de uma obra que tem como compromisso capital a rela��o honesta e aguda com a realidade, como fica pontuado nos versos iniciais de “Coisas da terra”: “Todas as coisas de que falo est�o na cidade/ entre o c�u e a terra”.

Uma poesia mundana, no melhor sentido, � o que assoma do precioso conjunto de “Toda poesia”. Ao recuperar a poesia de Gullar de 1950 a 2010, o volume d� a ver o quanto tal trajet�ria se faz atrav�s de uma dial�tica entre a fidelidade a certos princ�pios e o desejo de ir al�m dos limites impostos pelo contexto e pelos temas, for�ando sempre o horizonte da linguagem. Essa dial�tica de longa dura��o mant�m-se atrav�s de uma chave incidental, gravada, por exemplo, em um poema como “A vida bate”, cujos versos iniciais dizem: “N�o se trata do poema e sim do homem/ e sua vida”. 

O ch�o e o cora��o

At� mesmo o leitor atento a essa constitui��o basal da po�tica gullariana impressiona-se com o car�ter de s�mula de uma quadra do primeiro dos “Sete poemas portugueses”: “E na relva diuturna/ (que voz diurna/ cresce cresce do ch�o?) rola meu cora��o”. Nesse relance, t�o essencial quanto m�nimo e precoce (pois cuida-se de texto do in�cio dos anos 1950), fica atestada a inteireza de um robusto programa po�tico. L� est� o “meu cora��o”, como n�cleo l�rico que elabora o real e a linguagem a partir de uma subjetividade claramente situada no tempo hist�rico.

Mas tamb�m est� o “ch�o”, como concreta mat�ria inescap�vel do poema, que, entretanto, se vincula � “relva diuturna”, a qual, por sua vez, suplanta a conting�ncia, indo al�m dos dias, para sugerir uma perenidade e uma multiplicidade de realidades que escapam ao sujeito. Finalmente, h�, nesses primeiros versos do poema que abre “Toda poesia”, sobretudo, a “voz diurna”, elemento contingencial que, oposto ao que se prolonga em dire��o ao perene e ao m�ltiplo, � fundante para a voz po�tica de Gullar. A esses elementos a aten��o do autor ir� se direcionar e, a partir deles, outros motes ser�o convocados para a estrutura��o de sua busca por uma dic��o particular e � altura das exig�ncias de seu tempo hist�rico, com aten��o especial � “suja luz dos perfumes da vida”, registrada no poema “Mem�ria”. 

 

No �ltimo livro coligido em “Toda poesia” encontra-se o poema “Falar”, que, em certa medida, pode ser tomado como consuma��o do projeto anunciado 60 anos antes n’ “A luta corporal”: “A poesia �, na verdade, uma/ fala ao rev�s da fala,/ como um sil�ncio que o poeta exuma/ do p�, a voz que jaz embaixo/ do falar e no falar se cala”. A “fala ao rev�s da fala” n�o se faz nunca, em mais de meio s�culo de poesia, sem as coordenadas do “ch�o”, da “voz”, “do cora��o” e sobretudo da “relva diuturna”, cond�o de mist�rios e sugest�es que cabe ao poeta indicar, pois segundo o pr�prio Gullar, “a vida n�o basta”, por isso existe a arte. Entretanto, a bem do contradit�rio, que rege a pr�pria lei da exist�ncia, o autor garante, no poema “Vestibular”: “Tudo que posso dizer-lhe/ � que a gente n�o foge / da vida/ � que n�o adianta fugir”. 

 

Do primeiro ao �ltimo livro, portanto, consegue-se apontar, com a remiss�o aos “Poemas portugueses” e a “Falar”, para algo que � central � compreens�o da import�ncia de Gullar para a l�rica em l�ngua portuguesa no s�culo 20: a sua concep��o de poesia que �, a um s� tempo, defendida e procurada por ele ao longo de mais de meio s�culo de trabalho. Essa concep��o � o que interessa, por exemplo, a Antonio Cicero, no belo e esclarecedor posf�cio que integra a recente edi��o de “Toda poesia”. Para melhor apresentar a poesia de Gullar ao leitor, o texto de C�cero divide-a em fases, nas quais se pode perceber a inquietude que embala a pesquisa da linguagem nos primeiros livros e que alcan�a plenitude de realiza��o a partir do “Poema sujo”.

De acordo com C�cero, “em ‘Poema sujo’ Gullar j� exerce – sem d�vida a partir de toda a sua experi�ncia de poeta e impelido pela intui��o, pela emo��o e pela paix�o pela poesia – a liberdade que ele apenas conseguiria conceituar, e de modo lapidar, quase 40 anos depois.”. Grosso modo, ent�o, pode-se dizer que os primeiros livros de Gullar, antes do “Poema sujo”, caracterizam-se pela busca de uma plenitude alcan�ada a partir desta incontorn�vel obra de 1975, a qual, por sua vez, s� seria poss�vel ao poeta manipular conceitualmente muitos anos depois.

O v�nculo do corpo

Ali�s, como bem demonstram eminentes estudiosos da poesia de Gullar, entre os quais Antonio Carlos Secchin e o pr�prio Antonio C�cero, a poesia � tema central de grande parte dos poemas escritos pelo autor, chegando a dominar colet�neas como “Na vertigem do dia”, por exemplo. Sendo tema central, a poesia ou, mais especificamente, o ato de sua encarna��o em poema, engendram di�logos com outros �mbitos da vida e garantem a riqueza e a multiplicidade de assuntos em que, normalmente, se reconhecem os poetas de disposi��o aberta a refletir sobre a situa��o do sujeito no mundo, ou, nas palavras de Gullar: “que fa�o entre coisas? De que me defendo?”. As perguntas, presentes em “Galo galo”, encaminham o leitor a um circuito de conte�dos que vale a pena aqui apontar, ainda que de modo muito indicial, como forma de sugerir trilhas a percorrer, de fio a pavio, na leitura de “Toda poesia”.    

 

O leitor ver� no conjunto que um dos temas fortes da poesia de Gullar � o corpo, entendido como espa�o da consci�ncia do eu e de media��o central entre sujeito e realidade. Atrav�s do corpo, o poeta revela seu v�nculo com o espa�o pr�ximo e com o long�nquo. � o que se l�, por exemplo, no poema “Homem sentado”: “vejo pelo janel�o da sala/ parte da cidade/ estou aqui/ apoiado apenas em mim mesmo/ neste meu corpo magro, mistura/ de nervos e ossos/ vivendo”.

 

Al�m do corpo, a aten��o �s coisas simples � frequente em toda a poesia de Gullar. Desde “A luta corporal”, onde se encontram os magistrais poemas “Galo galo” e “A galinha” at� “Alguma parte alguma”, onde se encontra o belo poema “Uma corola”, que guarda o verso que d� t�tulo a este �ltimo livro do poeta. A aten��o �s min�cias do cotidiano d� forma ao olhar po�tico primacial de Gullar: aquele que perscruta o ch�o, o dia, o trivial, sempre em busca da “vida que bate”. A esse t�tulo s�o talvez insuper�veis os cinco poemas da s�rie “Bananas podres”, que se disp�em entre os livros “Na vertigem do dia” e “Em alguma parte alguma”.

 

Do ponto de vista dos movimentos da subjetividade registrados no poema, Gullar sempre deixou evidente que a cria��o po�tica deveria captar, com o maior grau de fidelidade poss�vel, o espanto engendrador da disposi��o l�rica. Da� que o tema do espanto e da apari��o de algo ins�lito (clar�es, explos�o) em contexto trivial � reiterado no conjunto de sua obra. Isso d� embasamento ao memorialismo do “Poema sujo”, mas tamb�m se verifica sob condi��es diferentes em “Fotografia de Mallarm�” e “Electra II”, de “Muitas vozes”, ou “O Cheiro da Tangerina”, de Barulhos. 

 

A mat�ria memorial�stica, t�o recorrente em Gullar, d� origem a outro esteio importante do conjunto de sua obra, o qual se vincula ao cerne de sua concep��o po�tica: a rela��o entre a poesia e o povo. O cl�ssico “Traduzir-se” e, tamb�m, a dupla “Meu povo, meu abismo” e “Meu povo, meu poema” s�o refer�ncias inquestion�veis desta porta para o mundo social que o autor encontra atrav�s da poesia. Seguro de que “meu povo e meu poema crescem juntos”, o poeta vincula mem�ria e cotidiano a uma certa imagina��o nacional-popular da dic��o po�tica, testada nos “Poemas de cordel” e totalmente transfigurada nas obras dos anos 1970 e 1980. Nesses livros, a recolha de ru�dos, falas, alaridos dar� vez � constitui��o daquele que � o verdadeiro n�cleo da poesia de Gullar, sua ins�gnia po�tica indel�vel: a figura��o do “homem comum”.

 

Esse personagem, que � o protagonista do “Poema sujo”, patenteia-se em textos como “Voltas para casa”, “Maio de 1964”, “Agosto de 1964” ou “Adeus a Tancredo”, com marca pol�tica contextual forte. Mas o “homem comum” de Gullar n�o se restringe a esse limite conjuntural, pois � quem fala, por exemplo, em “Filhos”, “Meu pai” ou “Os mortos”, todos textos vinculados a rela��es familiares. Assim, chega-se � conclus�o de que esse personagem n�o � apenas reflexo de Gullar, o que seria uma ilus�o rebaixada de correspond�ncia direta entre ‘eu po�tico’ e ‘eu emp�rico’.

Tamb�m n�o � o seu outro de classe, o que seria um idealismo pol�tico inconsequente incompat�vel com o refinamento de um poeta que testou os limites da poesia nos “Poemas concretos e neoconcretos” da d�cada de 1950. O “homem comum”, cuja biografia se pode depreender da leitura de “Toda poesia”, atrav�s de uma multiplicidade de temas a ele articulados, � uma transfigura��o da realidade que abarca as tens�es de um tempo hist�rico espec�fico e reitera, a partir da�, a sua rela��o com a humanidade. Essa a grande conquista exibida no conjunto de seus livros ora reunidos.

 

De toda obra de Gullar, parece ser em “O a��car” que tem lugar a s�ntese mais leg�tima dessa figura indiscern�vel da vida brasileira, apresentada ao leitor em chave cr�tica, como consci�ncia dilacerada da hist�ria: “Em usinas escuras,/ homens de vida amarga/ e dura/ produziram este a��car/ branco e puro/ com que ado�o meu caf� esta manh� em Ipanema”.

 

Depreende-se, pois, que Gullar escolhe a poesia como tomada de partido da vida. Por isso, o poeta afirmaria certa vez que “a poesia verdadeira n�o � sect�ria, n�o � unilateral”. Talvez quisesse dizer que a poesia n�o � express�o mec�nica e direta de teses previamente estabelecidas, nem lugar de ret�rica pol�tica, nem espa�o para idealizar o mundo. O que n�o quer dizer que seja infensa a tudo isso. Sendo poesia pol�tica, a obra de Gullar jamais foi ve�culo de ideias. Escolhendo outro caminho, mais complexo, tencionou articular tais ideias a uma interpreta��o cr�tica do real, sendo, portanto, nas suas palavras, toda poesia uma “luz do ch�o”. Como ele gostava de dizer: “Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer, uma luz que n�o nos � dada, n�o desce dos c�us, mas que nasce das m�os e do esp�rito dos homens”.

 

*Alexandre Pilati � professor de literatura da Universidade de Bras�lia e poeta, autor, entre outros, de “Tangente do cobre” (Laranja Original, 2021)

“Magn�fica celebra��o”

“Em ‘Poema sujo’, Gullar j� exerce – sem d�vida a partir de toda a sua experi�ncia de poeta e impelido pela intui��o, pela emo��o e pela paix�o pela poesia – a liberdade que ele apenas conseguiria conceituar, e de modo lapidar, quase 40 anos depois. Gullar dizia que ‘quando me perguntam o que o ‘Poema sujo’ significa, por exemplo, respondo que deviam l�-lo, porque o poema n�o significa nada al�m do que nele est� contido.’ E tem toda raz�o. Acrescento apenas que ‘Poema sujo’, sem jamais deixar de reconhecer o absurdo esmagador da vida, constitui-lhe uma magn�fica celebra��o.”

 

Antonio Cicero no posf�cio “A fala ao rev�s da fala”, da nova edi��o de “Toda poesia”

A galinha

Morta

flutua no ch�o.

Galinha.

 

N�o teve o mar, nem

quis, nem compreendeu

aquele ciscar quase feroz. Cis-

cava. Olhava

o muro,

aceitava-o negro e absurdo.

 

Nada perdeu. O quintal

n�o tinha

qualquer beleza.

 

Agora

as penas s�o s� o que o vento

ro�a, leves.

 

Apagou-se-lhe

toda cintila��o, o medo.

Morta. Evola-se do olho seco

o sono. Ela dorme.

Onde? onde?

 

 

(“A luta corporal”, 1954)

Falar

A poesia �, de fato, o fruto

de um sil�ncio que sou eu, sois v�s,

por isso tenho que baixar a voz

porque, se falo alto, n�o me escuto.

 

A poesia �, na verdade, uma

fala ao rev�s da fala,

como um sil�ncio que o poeta exuma

do p�, a voz que jaz embaixo

do falar e no falar se cala.

 

Por isso o poeta tem que falar baixo

baixo quase sem fala em suma

mesmo que n�o se ou�a coisa alguma.

 

(“Em alguma parte alguma”, 2010)

Fotografia de Mallarm�

� uma foto

premeditada

como um crime

 

basta

reparar no arranjo

das roupas os cabelos

a barba tudo

adrede preparado

— um gesto e a manta

equilibrada sobre

os ombros

cair� — e

especialmente a m�o

com a caneta

detida

acima da

folha em branco: tudo

� espera da eternidade

 

sabe-se

ap�s o clique

a cena se desfez na

rue de Rome a vida voltou

a fluir imperfeita

mas

isso a foto n�o

captou que a foto

� a pose a suspens�o

do tempo

agora

meras manchas

no papel raso

mas eis que

teu olhar

encontra o dele

(Mallarm�) que

ali

do fundo

da morte

olha

 

(“Muitas vozes”, 2000)

Minha medida

Meu espa�o � o dia

de bra�os abertos

tocando a f�mbria de uma e outra noite

o dia

que gira

colado ao planeta

e que sustenta numa das m�os a aurora

e na outra

um crep�sculo de Buenos Aires

 

Meu espa�o, cara,

� o dia terrestre

quer o conduzam os p�ssaros do mar

ou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil

o dia

medido mais pelo meu pulso

do que

pelo meu rel�gio de pulso

 

Meu espa�o — desmedido —

� o pessoal a�, � nossa

gente,

de bra�os abertos tocando a f�mbria

de uma e outra fome,

o povo, cara,

que numa das m�os sustenta a festa

e na outra

uma bomba de tempo

 

(“Na vertigem do dia”, 1980)


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