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Estado de Minas PODCAST

''Maria Altamira'' narra vida de fam�lia atingida por desastres ambientais

Livro da escritora Maria Jos� Silveira conta saga de m�e e filha, afetadas por avalanche no Peru e a constru��o da Usina de Belo Monte


24/09/2021 09:19 - atualizado 24/09/2021 09:34

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(foto: Soraia Piva/EM/D.A Press)

“Pessoas boas �s vezes aparecem, Alel� sabia. Assim. Do vaiv�m das coisas do mundo. Mesmo em ambientes pouco prop�cios, aparecem. Mesmo quando tudo desmorona em volta, aparecem.” Esse trecho, compartilhado em uma rede social, foi meu primeiro contato com “Maria Altamira”. Fui pega de surpresa. Era 1º de janeiro, Dia Mundial da Paz, e a pessoa que publicou n�o conhecia a origem, mas senti que precisava ler essa hist�ria que desabrocha em uma frase t�o bonita. Descobri, assim, o livro.

Alel� � uma m�e peruana que passa por um dos maiores desastres ambientais do pa�s andino: o sepultamento de uma cidade inteira, Yungay, que matou toda a fam�lia dela. Partindo da tristeza imensa de perder todo o referencial familiar, Alel� sai sem rumo para perambular pela Am�rica do Sul. � por meio de caronas e pessoas bondosas que encontra pelo caminho que consegue seguir para o Brasil.

Na aldeia do povo Juruna conhece Manuel, com quem acaba tendo uma filha, Maria Altamira, mesmo nome que d� nome ao livro, da escritora goiana Maria Jos� Silveira. Achando que tem uma maldi��o, Alel� entrega sua filha a M�e Chica, que cria a garota junto aos filhos biol�gicos. Anos se passam e Maria tamb�m tem sua vida modificada por outra trag�dia ambiental, a constru��o da usina hidrel�trica de Belo Monte.
Em conversa com o Estado de Minas para o  podcast Pensar , Maria Jos� Silveira contou que cruzou com a hist�ria por conta de manifesta��es na Avenida Paulista, em S�o Paulo. Do apartamento onde morava, ela escutava os protestos, inclu�dos na narrativa. Outras tem�ticas que acompanham a vida de uma mulher tamb�m est�o na obra, como o medo do estupro e como estamos � mer�� desse perigo mesmo quando menos imaginamos.

Confira abaixo a �ntegra da entrevista com a autora do livro “Maria Altamira”


O que motivou voc� a escrever o livro?
“Maria Altamira” nasceu de uma grande inquieta��o com a constru��o da Usina Hidrel�trica de Belo Monte. Na �poca, eu morava em um apartamento de onde podia ver as manifesta��es e um certo momento come�aram a chamar aten��o do pa�s para esse problema. Eu me interessei, procurei ler a respeito e decidi que escreveria sobre a espantosa situa��o que amea�ava aquela regi�o do Xingu, no Norte do Par�, onde estava sendo constru�da a Usina, expulsando os beradeiros das suas moradas, degradando o meio ambiente e alterando o fluxo do rio que era vida dos grupos ind�genas do entorno. 

A partir dessa vontade, a� me veio � cabe�a a cat�strofe que ocorreu no Peru em 1970. Morei no Peru por alguns anos e esse epis�dio sempre pareceu algo quase impens�vel por ter sido uma sombra de crueldade. Toda uma cidade soterrada provocada pelo pico mais alto da regi�o, Yungay, que despencou sobre ela. Pensei que essas duas cat�strofes, uma provocada pela natureza e a outra pela m�o do homem, tinham resultados, pelo sofrimento que provocaram, de certo modo se assemelhavam. E resolvi colocar as duas lado a lado, com as protagonistas: a m�e peruana e Maria Altamira, a filha brasileira. 

O livro aborda muitas quest�es sociais. Quais foram os desafios de escrever um livro com essa tem�tica em uma sociedade t�o polarizada?
Foram muitos. Primeiro, procurar entender. Entender esses desafios. E muita coisa no Brasil hoje est� muito dif�cil de ser entendida. Mas o principal deles talvez seja o perigo de cair em uma escrita panflet�ria. � preciso muito cuidado. Procurar as palavras certas e encontrar uma maneira liter�ria de expressar a indigna��o. Ter bem claro que muitos ver�o seu livro, pois para isso ele foi escrito. E o que voc� deseja n�o � escolt�-los e, sim, peg�-los pela m�o e lev�-los at� o final.

“Maria Altamira” � um romance fict�cio, mas as dores dos personagens e os eventos que s�o planos de fundo s�o reais. Como foi o processo de imers�o na cultura dos povos ind�genas e das comunidades da cidade de Altamira? 
Foi algo muito especial, um maravilhamento que me trouxe a escrita desse livro. O Instituto Socioambiental ISA, que faz um trabalho extraordin�rio na regi�o de Altamira, tinha um programa de levar interessados em conhecer o entorno da Usina de Belo Monte, o Rio Xingu e os territ�rios ind�genas. Fui com eles conhecer Volta Grande do Xingu e um pouco de seus habitantes, suas dores e as amea�as que pesam sobre eles. E o que mais me comoveu foi sua capacidade de luta de enfrentamento do que estava acontecendo com eles. Voltei encantada com sua for�a, vitalidade e alegria. � realmente um povo que n�o se deixa bater, que enfrenta de maneira eficaz e bonita os que pretendem invadir seus territ�rios, degradar seu rio e seu meio ambiente. E, que, apesar dos pesares, tem obtido vit�rias extraordin�rias contra um inimigo t�o poderoso, como � a usina hidrel�trica de Belo Monte.

Como foi esse processo criativo para unir a constru��o de Belo Monte, o terremoto no Peru e a luta do MST? Como essas hist�rias conversam entre si?
A condi��o humana � o que liga essas hist�rias. O aluvi�o que cobriu a cidade de Yungay foi provocado pela natureza, mas a barragem de Belo Monte, que transformou o rio em um grande lago e agora controla sazonalmente suas �guas, � uma obra feita pelo homem. Nos dois casos vemos as marcas deixadas por desastres naturais e sociais, que disp�em da vida humana como se nada fossem. Como se nada significassem diante da grandeza dos Andes ou de megaprojetos decididos como se o rio e as pessoas que vivem no entorno fossem meros n�meros de uma conta. Cujo objetivo � dar lucro. Essas duas cat�strofes provocaram confus�o social cujo resultado foi o grande sofrimento das popula��es atingidas.

"Minha rea��o foi dar �s minhas protagonistas uma sa�da, uma perspectiva que transformasse de alguma maneira a fraqueza f�sica que sentiam em uma for�a moral, em resist�ncia. Era disso que elas precisavam e � disso que precisamos"



J� o movimento dos Sem Teto � o movimento que nasce da resist�ncia contra as condi��es desumanas de moradia das grandes cidades, condi��es tamb�m criadas pela m�o humana e sua indiferen�a. � uma experi�ncia de luta muito importante para minha protagonista, a que d� nome ao livro, Maria Altamira. 

De que forma as suas viv�ncias e percep��es dessa Am�rica Latina contempor�nea influenciaram e mudaram a forma de escrever “Maria Altamira”? 
Uma grande parte do meu romance nasceu disso. Se eu e meu marido n�o tiv�ssemos morado do Peru, onde estudamos antropologia, se n�o tiv�ssemos tido uma colega de curso que perdeu toda sua fam�lia nessa cat�strofe. E se n�o tiv�ssemos por acaso, n�o por uma escolha, passado pela cidade soterrada de Yungay e eu n�o tivesse visto com meus olhos as ru�nas da cidade e sentido com meus p�s que caminhavam sobre elas, “Maria Altamira”, com certeza, seria um livro diferente.

Um dos objetivos do livro era criar um tipo de compreens�o dos leitores sobre o que est� ocorrendo com ribeirinhos e ind�genas �s margens do Xingu?  
N�o sei se podemos falar de objetivos em um romance, mas talvez sim. A quest�o dos danos que Belo Monte causou, e ainda causa, tanto no meio ambiente como no impacto direto � vida dos ribeirinhos e ind�genas. Foi o que me fez mergulhar nessa hist�ria. Estava claro para mim que eu queria mostrar um pouco do que acontecia ali. Mas a hist�ria propriamente dita, a trama, os detalhes, as circunst�ncias e as paix�es vieram apenas � medida que comecei escrever. 

A for�a do livro reside nos di�logos. Como foi feita a constru��o do enredo? 
Acho que escrevo de maneira muito intuitiva. Tenho uma ideia geral do livro, tenho um quadro com a pesquisa que fa�o e sei o que pretendo dizer, mas os caminhos que v�o se abrindo com o decorrer da escrita v�o aparecendo � medida que escrevo. E o enredo, com seus detalhes, vai se montando e as palavras aparecendo. As palavras com trama, com suas min�cias, vem do processo mesmo descrito e d� vontade de escrever algo que possa expressar o que penso e seja capaz de fazer o leitor vir comigo.

A viol�ncia contra a mulher permeia as vidas de Alel� e Maria Altamira. Como tratar de assuntos t�o dif�ceis e que moldam a personalidade das personagens sem que se tornem a vida delas?  
Essas viol�ncias contra mulher s�o devastadoras e parecem se multiplicar a cada dia e entraram no meu romance como desenrolar natural da hist�ria que eu estava contando. Sabemos que em muit�ssimos lugares a mulher � v�tima de feminic�dio e estupro. Minha rea��o foi dar �s minhas protagonistas uma sa�da, uma perspectiva que transformasse de alguma maneira a fraqueza f�sica que sentiam em uma for�a moral, em resist�ncia. Era disso que elas precisavam e � disso que precisamos, eu acho. 

Qual foi a passagem do livro mais desafiadora de escrever e por qu�?
Penso muito sobre isso e acho que a linguagem dos ind�genas ribeirinhos foi o que me apresentou maior desafio. Os ind�genas sobre os quais eu falo, os jurunas e yudja, t�m uma longa experi�ncia de vida com os brancos da regi�o da cidade de Altamira. H� uma intera��o muito grande entre eles, o que levou a uma fala muito parecida. Vista pelo lado das regras gramaticais poderia ser considerada como o que se convencionou chamar de “linguagem errada”, mas a maneira como entendo essa quest�o me faz adotar o ponto de vista de que a linguagem falada � t�o certa para comunidade que a usa como a nossa � correta para n�s.

"Nos dois casos vemos as marcas deixadas por desastres naturais e sociais, que disp�em da vida humana como se nada fossem. Como se nada significassem diante da grandeza dos Andes ou de megaprojetos decididos como se o rio e as pessoas que vivem no entorno fossem meros n�meros de uma conta"



O desafio, portanto, seria tratar dessa linguagem como uma linguagem diferente, uma linguagem pr�pria de uma outra regi�o, mas essa linguagem oral, transcrita como �, n�o funciona muito bem, pode espantar o leitor. O que pensei, ent�o, foi deixar apenas um ru�do da linguagem falada, tirando a flex�o do plural. Fiz a indica��o do plural com os artigos sem flexionar os substantivos adjetivos. Com isso espero ter passado esses ru�dos sem passar uma rea��o forte no leitor, que tem a ver com o portugu�s n�o convencional.

E tem duas outras coisas interessantes ali para um linguista estudar: as duas derivadas da luta que os juruna t�m enfrentado contra a usina. Uma � a utiliza��o natural de v�rios termos t�cnicos que eles usam porque veem aprendendo com as pessoas que apoiam suas lutas. Palavras como interc�mbio, pesquisa socioambiental, doen�as psicossociais, termos assim. A outra � a necessidade que sentiram, nesse enfrentamento, de reaprender sua pr�pria l�ngua e cultura, que em determinado momento haviam sido deixadas um pouco deixadas de lado. A luta trouxe a eles a necessidade de refor�ar sua ancestralidade e identidade ind�genas. Eu acho isso muito bonito.


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