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Estado de Minas PRIMEIRA LEITURA / CARLA MADEIRA

Leia trecho do novo livro de Carla Madeira

Autora do sucesso 'Tudo � rio', escritora mineira lan�a o terceiro romance: 'V�spera'


22/10/2021 04:00 - atualizado 22/10/2021 07:54

Ilustração do livro de Carla Madeira
(foto: Lelis)
Diante do Col�gio Santa Maria, Cust�dia viu seus dois filhos de m�ozinhas dadas, uniforme impec�vel, atravessarem o largo port�o da escola no primeiro dia de aula de suas vidas. Os dois caminharam como se carregassem um copo d’�gua prestes a transbordar. Passinhos curtos e cautelosos de quem adentra um mundo grandioso e desconhecido. Eram da mesma altura, tinham o mesmo corte de cabelo, o mesmo jeito de pisar com o lado de fora do p�, e o mesmo curativo no joelho direito, embora s� um deles estivesse machucado de verdade.

Ao lado do port�o, uma das m�es tentava acalmar a filha que chorava descomedida, se agarrando em suas pernas como se adiante houvesse um pelot�o de fuzilamento. Paciente, a m�e explicava � menininha perfumada que a escola era um lugar divertido, que ela faria novos amigos, que ao fim do dia viria busc�-la. Mas a garota n�o tinha ouvidos, s� garganta, que naquele momento funcionava com todos os seus decib�is. Fosse um desenho animado, ver�amos a goelinha vermelha vibrando e uma boca enorme engolindo a tela. A m�e era sincera em seus esfor�os de convencer a filha a entrar, mas havia tamb�m um orgulho de ser espetacularmente amada. De tempos em tempos, ela levantava os ombros e os olhos duvidosamente suplicantes e satisfeitos para os outros pais. Aquela cena intermin�vel provocou em Cust�dia uma pontada de despeito. Seus filhos, mesmo que em passos cautelosos, nem olharam para tr�s.

Depois que eles entraram, ela ainda observou que alguns pais paravam seus carros tempo o suficiente apenas para que seus meninos, aqueles toquinhos de gente, saltassem. Depois arrancavam com o sentimento inconfesso de al�vio, nem espe- ravam que os filhos cruzassem o port�o da escola, confiantes de que eram capazes de dar dez passos sem supervis�o. Cust�dia teve certeza de que jamais faria aquilo. S� arredaria o p� quando os meninos desaparecessem de seu campo visual por completo, coisa que, por sinal, a perturbava de uma maneira ainda desconhecida. Estava com o cora��o apertado. Sofria de medo, uma doen�a dram�tica em quem tem ima- gina��o.

Com os primeiros passos, medo das quinas. Com as brisas, medo da febre. Com o sol, medo da desidrata��o. Com a comida, medo dos v�mitos. Com o amor, medo da perda. Com a liberdade, medo das escolhas. Medo era o que n�o faltava a Cust�dia, e ela bem sabia que o pavor repentino � uma promessa de Deus aos desobedientes. Deus mandava, mas ela n�o perdoava Antunes. Ah, isso ela n�o podia. N�o sabia. N�o queria. Dominada por medos tragicamente imaginados, inflava sua coragem minguada disfar�ando-a no abuso dos verbos imperativos, no queixo arrogante, na for�a descomunal com que tentava tirar da alegria dos filhos, os riscos.

De todos os seus medos, um tornou-se o medo-rei, soberano, mais poderoso que todos os outros: o medo do filho extraviado. Por causa desse medo, Cust�dia fez uma incont�vel quantidade de absurdos.

Mas sejamos justos: que m�e n�o padece desse calafrio?. Do filho que d� errado, que se perde ou � perdido. Isso � como um cord�o umbilical, nenhuma m�e nasce sem ele. S� que em Cust�dia o estremecimento tinha agravantes. Mais do que o medo do filho extraviado, existia o medo de reconhec�-lo, de s�bito, em um dos g�meos. Em um gesto, em uma palavra, em um olhar… saber qual dos dois era Caim. Cust�dia era uma m�e atormentada por duas trag�dias: a do filho que mata e a do filho que � morto.

Na companhia desse pavor, tampou os olhos com m�os firmes e, por n�o ver ningu�m, achou que n�o seria vista. Como a brincadeira de cobrir o rostinho de um beb� com uma fralda, gritando entusiasmada ao retir�-la: “Achou!”.

Foi exatamente isso o que Cust�dia fez: reduziu o funcionamento do mundo ao seu ponto de vista. Um esfor�o descomunal para que os meninos se tornassem iguais, indistingu�veis, e assim se tornassem um s�: Abel. As mesmas roupas, o mesmo quarto, os mesmos brinquedos compartilhados e o mesmo nome. Um nome “Abel” em dois corpinhos, que um dia seriam dois desejos e, depois disso… sabe-se l� quanta bagun�a. Mas Cust�dia n�o antecipava o que viria pela frente… Urgente era o que estava diante dela: a lamban�a do b�bado insuport�vel que ela decidiu limpar pondo uma fraldinha nos olhos de todos! Seria razo�vel, contudo, n�o julg�-la apressadamente. Que mulher religiosa dormiria tranquila tendo um filho chamado Caim e outro Abel? Nem mesmo um ateu convicto passaria por debaixo dessa escada assobiando.

Abel e Abelzinho, por mais absurdo que pare�a, foi a solu��o encontrada para os primeiros seis anos de vida dos g�meos. Inveross�mil como s� a realidade sabe ser. Os dois aprenderam a negociar quem seria quem quando era necess�rio negociar. Sem disputas. Apenas a pat�tica l�gica na irracionalidade do medo. O que era de um era do outro, de maneira que os dois cresciam embolados, ora sendo Abel, ora sendo Abelzinho… Como se negar a exist�ncia de dois fizesse desaparecer o lugar onde, irremediavelmente, alguma coisa ia sendo diferente em cada um deles. Ningu�m pode deter um corpo, nem sua plasticidade �nica. Mas Cust�dia achou que podia.

Naquele primeiro dia de aula, diante do port�o do Col�gio Santa Maria, ela carregava um peso no cora��o, n�o s� por se separar pela primeira vez dos g�meos, mas porque era o dia em que, oficialmente, Caim passaria a existir. Um pesadelo que Cust�dia pensara poder adiar para o resto da vida. A escola exigia a certid�o de nascimento. Esse nome seria pronunciado na hora da chamada, duas letras depois de Abel. Seria gritado no recreio, seria registrado na capa dos cadernos, no topo do boletim. Seria entoado pelo professor diante da turma, em pian�ssimo ou fort�ssimo, conforme o elogio ou o pux�o de orelha. Seria, sobretudo, cochichado, maliciosamente, com perplexidade, pelos corredores, pelos que n�o acreditariam em dois irm�os a quem os pais haviam tido a insensatez de dar os nomes de Caim e Abel. Uma vergonha eterna. O fato � que o truque de embolar os meninos, ao qual Cust�dia tanto se dedicara, acabava ali, naquele primeiro dia de aula.

Cust�dia reviveu a vontade arrebatadora de odiar Antunes. Que raiva ela sentia daquela estupidez.

— Voc� resolva isso — disse a ele, quebrando uma rotina de poucas palavras que mantinha a conviv�ncia entre os dois poss�vel.
 
Trecho de “V�spera” (Record), terceiro romance de Carla Madeira, que chega �s livrarias na pr�xima segunda-feira (25/10). Nascida em Belo Horizonte, em 1964, Carla publicou antes “Tudo � rio” (2014) e “A natureza da mordida” (2018). Formada em jornalismo e publicidade, foi professora de reda��o publicit�ria na UFMG e � s�cia e diretora de cria��o da ag�ncia de comunica��o L�pis Raro 


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