No Arquivo P�blico Mineiro, entre documentos oficiais de Estado e a��es de homens pol�ticos, cientistas, escritores, a historiadora e escritora Eliane Marta Teixeira Lopes encontrou, por acaso, o nome de Constan�a Guimar�es, jovem mineira de Ouro Preto, filha do escritor Bernardo Guimar�es. No livro 'Constan�a - Cartas 1871-1888', pela Editora Quixote Do, que cont�m uma chave de leitura dos 'personagens' citados e fac-s�mile das cartas, Eliane desenvolve um ensaio sobre a �poca da jovem, final do s�culo 19, a vida das mulheres, as 'inditosas', cuidando da casa, tendo filhos um atr�s do outro, e sobre a 'peste branca' por meio de men��es liter�rias como Rilke, Kafka, Maiakovski, ou personagens acometidos pela tuberculose.
Ali, no Arquivo, aconteceu o encontro de duas escritas: a de Constan�a, atrav�s de um punhado de oito cartas �s primas, no ano anterior � sua morte por tuberculose, com apenas 16 anos, em 1888, e a de Eliane Marta, que guarda em sua biblioteca particular um acervo de mais de 4 mil cartas, autora de 'Querido algu�m', um livro po�tico sobre correspond�ncia. Mas, para al�m da import�ncia hist�rica dessa correspond�ncia, foi um encontro afetivo de duas mulheres separadas por mais de um s�culo e unidas, agora, pela escrita. A seguir, uma entrevista com a organizadora das cartas da jovem Constan�a.

O que voc� pesquisava no Arquivo P�blico Mineiro?
Eu tinha um grupo de pesquisa formado por m�sicos e pesquis�vamos justamente a forma��o dos m�sicos mineiros dos s�culos 18 e 19. A quest�o era: como se dava essa forma��o – j� que n�o havia escolas de m�sica?. Qual o m�todo de aprendizado? Eles olhavam arquivos em Itabirito, Ouro Preto e Mariana; eu, no Arquivo P�blico Mineiro.
L�, entre pastas de documentos, vi uma intitulada “Constan�a Guimar�es”. Isso me chamou muito a aten��o porque em arquivos os nomes de mulheres s�o muito raros. Eles guardam principalmente os neg�cios de Estado, a hist�ria de homens probos. Foi ent�o um acaso ter sido chamada pelo nome dessa jovem mulher.
E como foi este encontro?
Fiquei muito emocionada, muito excitada. Ali se abria um campo livre: ningu�m tinha manuseado aquelas cartas! Peguei tamb�m a �nica foto dela, num vestido listrado, os cabelos cacheados.
Mas por que o interesse por Constan�a, que n�o tinha uma obra e nem sequer era uma mulher adulta?
Pela simples exist�ncia dela. Claro que, ao abrir a pasta, estava l�: filha do escritor Bernardo Guimar�es, que frequentou a minha vida liter�ria com livros como “A escrava Isaura”, “O elixir do Paj�” e outros. Essas informa��es deram relevo hist�rico �s cartas – mas se fosse a filha de um z�-ningu�m, para mim seria a mesma coisa. Constan�a era, naquele momento, uma quase adolescente, esquecida naquela pasta. Isso me lembra a fil�sofa Nicole Loraux, quando se debru�a sobre as l�pides de mulheres gregas, com epit�fios apenas de “boa m�e”, “esposa dedicada”.
Ou a descri��o de Norberto Bobbio, quando narra a exist�ncia de uma irm�zinha que viveu apenas poucas horas. Ele escreve que ningu�m saber� dela, a n�o ser por aquelas poucas linhas do seu texto. � o que Michel De Certeau chama de “t�mulo escritur�rio” em “A escrita da hist�ria”, que releio sempre: ele estabelece essa rela��o entre hist�ria e morte. Tive uma turma na Faculdade de Educa��o que, num exerc�cio, tinha v�rias op��es de documentos para trabalhar. Ningu�m quis ler “Cartas � minha m�e”, de um romano da Antiguidade. Quando perguntei o motivo do desinteresse, me responderam: ‘Ah, m�e n�o � mulher!’.
Ou a descri��o de Norberto Bobbio, quando narra a exist�ncia de uma irm�zinha que viveu apenas poucas horas. Ele escreve que ningu�m saber� dela, a n�o ser por aquelas poucas linhas do seu texto. � o que Michel De Certeau chama de “t�mulo escritur�rio” em “A escrita da hist�ria”, que releio sempre: ele estabelece essa rela��o entre hist�ria e morte. Tive uma turma na Faculdade de Educa��o que, num exerc�cio, tinha v�rias op��es de documentos para trabalhar. Ningu�m quis ler “Cartas � minha m�e”, de um romano da Antiguidade. Quando perguntei o motivo do desinteresse, me responderam: ‘Ah, m�e n�o � mulher!’.
Essa correspond�ncia de Const�ncia termina por iluminar, indiretamente, a figura do pai, o escritor Bernardo Guimar�es.
Sem d�vida. Eu, como ela, como muitas mulheres, fomos escritoras precoces. Tenho, at� hoje, um caderno de capa dura com “Pensamentos”, em letras douradas, um presente de anivers�rio da minha inf�ncia. E mais de 4 mil cartas recebidas ao longo da vida, inclusive uma de minha v�. Ela estava no Rio e adoeceu. A carta chegou depois de sua morte e se dirige ao meu av�: “Meu velho”, escreve ela, e vai perguntando, contando novidades, falando das visitas. As pessoas perderam a no��o do que significava uma carta: a corporeidade da letra; o momento de ler. Perderam a ideia do significado de correspond�ncia. Receber uma carta pode ser uma eventualidade. Mas manter uma correspond�ncia n�o � gesto ocasional – � desejo, compromisso.
Como era o mundo de Constan�a nessas cartas?
� um mundo dentro e fora da fam�lia. N�o fala dos irm�os. Mas fala da m�e e da irm�: “Isabel fica na janela para ver os rapazes que v�o para �gua Limpa”. Ou “minha m�e est� tomando conta de tudo que fa�o, n�o deixa que eu me canse”. Mas, sobretudo, de casamentos, namoros e mortes. Os rapazes que menciona n�o s�o os que ela queria – para alguns, ela usa a express�o “verdadeiros vomit�rios”. Escreve sobre as visitas que recebe. Fala tamb�m do mundo externo: da ida a um sarau, por exemplo. Ouro Preto tinha uma vida art�stica muito intensa. Na Casa da �pera (hoje Teatro Municipal Casa da �pera), se apresentavam companhias, concertos vindos do Rio de Janeiro. Constan�a lia. Nessas cartas, d� not�cias de dois livros que tinha lido, de forma cr�tica. N�o podemos esquecer que estudou na Escola Normal.
Constan�a tamb�m critica a vida no Rio de Janeiro...
Ela fala do calor, do suor e das “tagarelas fluminenses”. Constan�a tem um senso de humor, uma ironia muito fina, naturalmente aprendido no ambiente familiar, principalmente com o pai. Era uma vida modesta a da fam�lia de Bernardo Guimar�es, mas rica intelectualmente (quando morreu, houve a ideia de se fazer uma campanha para ajudar a vi�va e os filhos). Como eu disse, Ouro Preto era muito intelectualizada, havia a Escola de Minas, a obra de Aleijadinho nos adros das igrejas, nos altares. A cidade tinha os maiores compositores de m�sica sacra. Para tudo se criava um te-d�um. Para nascimentos, mortes. Houve at� um te-d�um da degola em homenagem a Tiradentes. Era esse o ambiente em que ela viveu. Como morreu em 1888, um m�s depois do seu anivers�rio, n�o viu a chegada do trem, o cal�amento, a instala��o do esgoto, a luz el�trica.
E a lenda de que ela foi a musa, noiva de Alphonsus de Guimaraens?
Em um livro recentemente publicado, “A tulipa azul”, o neto do poeta, Afonso Henriques Neto, refere-se a ela dessa forma, a partir de poemas e documentos. Mas nada em suas cartas me autorizaria a tanto e eu quis respeit�-la.
No seu ensaio, voc� analisa a correspond�ncia e o contexto dela, principalmente a quest�o da “peste branca”, a tuberculose.
A leitura dessas cartas se d� � sombra dessa morte anunciada para n�s. Porque ela n�o sabe que est� morrendo. Mas n�s sabemos o tempo todo. A mesma sombra da morte que h� em outros di�rios como os de Rilke. H� uma correspond�ncia entre Maiakovski e Maria Tsvetaeva. Ele est� se aproximando da morte, n�s, leitores, sabemos – mas os dois, n�o. Isso em 1926. Ou o personagem Hans Castorp, de “A montanha m�gica”. O tempo todo ele melhora, mas tamb�m o tempo todo piora.
Todos do mesmo mal, a “peste branca”. Voc� fala, no seu ensaio, que Constan�a “mais sofreu do que viveu”.
O sofrimento depende de onde a tuberculose ataca. Nos pulm�es, as tosses intermitentes, ininterruptas, as golfadas de sangue. O tratamento doloroso que deixa bolhas nas costas dela. O rem�dio que � tamb�m veneno, o m�dico que cura, mas tamb�m anuncia a morte. A febre, sempre � mesma hora do dia. E o cansa�o. Um cansa�o que a impede at� de escrever. As cartas s�o para ela uma forma de exist�ncia, porque sem a presen�a f�sica, os outros se esquecem. O t�dio. H� um momento em que ela escreve: “Tudo me aborrece, nada me contraria”. Ao final, at� os pequenos prazeres s�o interditados, como Kafka, quando diz ter saudades de tomar uma cerveja gelada. No caso de Constan�a, de n�o poder comer mais jabuticabas. H� tamb�m uma �tica, um gesto de compaix�o em rela��o a essa jovem que viveu t�o pouco. Traz�-la para perto de n�s, para o conv�vio de outras pessoas.
Trechos
“Por mais que eu queira pensar que est�s muito satisfeita ahi, n�o posso acreditar que uma mineira, livre filha das montanhas acostumada a respirar o ar livre de sua terra, possa viver suando 24 horas por dia e ouvindo as conversas estupidas e insensatas d’essas tagarellas fluminenses.”
“Se eu n�o enlouquecer � porque morrerei muito mo�a. Eu j� tenho muito medo de estar doida.”
“Julinha, escrevo-te agora, n�o com o intento de approveitar esta nesga, mas sim para n�o esfriar a nossa correspond�ncia, se n�o te escrevo mais � porque a luz se me somme dos olhos e a m�o can�ada desfallece.”
“(...) porque, bem sabes que quando se est� aqui falla-se na gente, mas sem isso � o mesmo que n�o existir”.

Organiza��o de Eliane Marta Teixeira Lopes
Quixote DO Editora
144 p�ginas
R$ 50