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Estado de Minas INFANTIL

Primeiro livro infantil de Manoel de Barros ganha nova edi��o ilustrada

'Exerc�cio de ser crian�a' recria mundo encantado e on�rico do poeta modernista, um dos mais importantes autores brasileiros


08/10/2021 04:00 - atualizado 08/10/2021 07:49

Ilustração sobre o livro 'Exercícios de ser criança'
. (foto: Artes/EM)

''No aeroporto o menino perguntou:
– E se o avi�o tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e n�o respondeu.
O menino perguntou de novo:
– E se o avi�o tropicar num passarinho triste?
A m�e teve ternuras e pensou:
Ser� que os absurdos n�o s�o as maiores virtudes da poesia?
Ser� que os desprop�sitos n�o s�o mais carregados de 
poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza a liberdade e a poesia a gente aprende com as crian�as.
E ficou sendo.''

Assim, Manoel de Barros, um dos maiores poetas brasileiros e ganhador de 13 pr�mios liter�rios, inclusive dois Jabutis – o mais importante do pa�s –, estreou na literatura infantil, j� na curva dos 83 anos, quando fez pular pra fora de suas mem�rias, para deleite dos leitores j� encantados com seus (uni)versos, o menino das ''peraltagens'' em seu mundo pantaneiro. Em 1999, lan�ou ''Exerc�cios de ser crian�a'', que acaba de voltar ao mercado pela Companhia das Letrinhas. A obra cont�m duas hist�rias-poemas de elevada sensibilidade.

A primeira � ''O menino que carregava �gua na peneira'', que "quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos" e "at� fez uma pedra dar flor". E, por essas e outras grandezas, ouviu da m�e: ''Meu filho voc� vai ser poeta. Voc� vai encher os vazios com as suas peraltagens e algumas pessoas v�o te amar por seus desprop�sitos''. A outra � ''A menina avoada'', que monta num carro de bois imagin�rios atrelados num caixote e duas rodas de lata de goiabada, feito e puxado pelo irm�o, e naufraga num rio. E s� n�o morre afogada porque o rio tamb�m � inventado. As fantasias liter�rias de Manoel de Barros s�o enriquecidas nessa nova edi��o pelas belas ilustra��es de Fernanda Massotti e Kammal Jo�o.

Em vez de responder a cada uma das perguntas que recebeu sobre o livro na �poca, Manoel de Barros se manifestou com texto �nico, inclu�do na nova edi��o de ''Exerc�cios de ser poeta'', revelando a leveza de sua alma po�tica. Diz ele: “Acho que o que fa�o agora � o que n�o pude fazer na inf�ncia. Fa�o outro tipo de peraltagem. Quando era crian�a, eu deveria pular o muro do vizinho para catar goiaba. Mas n�o havia vizinho. Em vez de peraltagem, eu fazia solid�o. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo de milho era boi. (…) Precisei de fazer estes ‘Exerc�cios de ser crian�a’ porque s� tenho oitenta anos e muita inf�ncia. Sou agora manobreiro de palavras. A palavra est� me dando o peralta que n�o fui''.

A partir de ent�o, Manoel de Barros lan�ou outras obras infantis e espalhou versos literalmente ao vento que conquistaram leitores mundo afora, at� sua partida deste mundo, em 13 de novembro de 2014, pouco mais de um m�s antes de completar 98 anos. Nasceu em Cuiab�, em 19 de dezembro de 1916, e lan�ou sua primeira obra, ''Poemas concebidos sem pecado'', em 1937. Passou a inf�ncia na regi�o pantaneira, viveu no Rio de Janeiro e no exterior, voltou ao pa�s, casou-se, teve tr�s filhos – perdeu dois em vida – e viveu at� o fim em sua fazenda no Pantanal, em Campo Grande (MS), onde a exuber�ncia da natureza alimentou sua obra, das miudezas de uma formiga � grandeza das matas.

Manoel de Barros � modernista da chamada “Gera��o de 45’’. Ler, ou melhor, sentir seus versos, transcende o mero olhar, nos torna leves, quase flutuantes, leva a uma comunh�o com a natureza, faz os mais velhos reencontr�-la e os mais jovens, sugados pela tecnologia, descobri-la. Um lirismo que diminui o peso e as dores do mundo sobre nossos ombros. Sua poesia espont�nea e perene revoluciona a l�ngua com palavras inventadas, que, como ele mesmo diz, perturbam ''os sentidos normais da fala'', s�o ''palavras aben�oadas pela inoc�ncia''. S�o versos transgressores dos sentidos quando diz que ''escuta a cor dos passarinhos'', uma inoc�ncia arrebatadora e surreal sobre o ch�o firme. Seu mundo encantado lembra o mineiro Jo�o Guimar�es Rosa (1908-1968), outro grande art�fice da l�ngua, mas com o diferencial de manter sempre viva a pureza da crian�a escondida dentro do adulto. 

E por falar em passarinho, em ''Menino do mato'' ele ensina: ''A maneira de dar canto �s palavras o menino aprendeu com os passarinhos”. Essa lindeza po�tica e filos�fica nos remete a outro grande poeta, o ga�cho M�rio Quintana (1906-1994), e seu ''Poeminho do contra'', sempre lembrado diante de adversidades: “Todos esses que a� est�o atravancando meu caminho. Eles passar�o... Eu passarinho!''. E como n�o se encantar e n�o querer ler o Manoel de Barros que decreta:  “Poesia � voar fora da asa’’. Ele disse um dia que gostaria de ser lembrado como ‘’um ser aben�oado pela inoc�ncia e que tentou mudar a fei��o da poesia’’. Conseguiu.

OBRAS DE MANOEL  DE BARROS


Poemas concebidos sem pecado (1937)
Face im�vel (1942)
Poesias (1956)
Comp�ndio para uso dos p�ssaros (1961)
Gram�tica expositiva do ch�o (1969)
Mat�ria de poesia (1974)
Arranjos para assobio (1982)
Livro de pr�-coisas (1985)
O guardador de �guas (1989) – Pr�mio Jabuti
Concerto a c�u aberto para solos de ave (1991)
O livro das ignor��as (1993)
Livro sobre nada (1996)
Retrato do artista quando coisa (1998)
Ensaios fotogr�ficos (2000)
Tratado geral das grandezas do �nfimo (2001)
Poemas rupestres (2004)
Menino do mato (2010)
Escritos em verbal de ave (2011)

Mem�rias inventadas
A inf�ncia (2003)
A segunda inf�ncia (2006)
A terceira inf�ncia (2008)

Livros infantis
Exerc�cios de ser crian�a (1999)
O fazedor de amanhecer (2001) – Pr�mio Jabuti
Cantigas por um passarinho � toa (2003)
Poeminha em L�ngua de brincar (2007)
Ilustração sobre o livro 'Exercícios de ser criança'
. (foto: Artes/EM)


EXERC�CIOS DE SER CRIAN�A
• Manoel de Barros
• Ilustra��es de Fernanda Massotti e Kammal Jo�o
• Companhia das Letrinhas
• 48 p�ginas
• R$ 54,90

“Cresci brincando no ch�o”

“Acho que o que fa�o agora � o que n�o pude fazer na inf�ncia. Fa�o outro tipo de peraltagem. Quando era crian�a, eu deveria pular o muro do vizinho para catar goiaba. Mas n�o havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solid�o. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo de milho era boi. Eu era um serzinho mal resolvido igual um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no ch�o, entre formigas. De uma inf�ncia livre e sem comparamentos.

Eu tinha mais comunh�o com as coisas do que compara��o. Porque se a gente fala a partir de ser crian�as a gente faz comunh�o: De um orvalho e sua aranha. De uma tarde e suas gar�as. De um p�ssaro e sua �rvore. Ent�o eu trago das minhas ra�zes crianceiras a vis�o comungante e obl�qua das coisas. Eu hoje n�o pulo sequer uma pedra, pra falar em peraltagem, mas fa�o pior com as palavras. Precisei de fazer estes ‘Exerc�cios de ser crian�a’ porque s� tenho oitenta anos e muita inf�ncia. Sou agora um manobreiro de palavras. A palavra est� me dando o peralta que n�o fui''.

• Texto escrito por Manoel de Barros sobre seu primeiro livro infantil publicado na nova edi��o de ''Exerc�cios de ser crian�a' '

O menino que carregava 
�gua na peneira

Tenho um livro sobre �guas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava �gua na peneira.

A m�e disse
que carregar �gua na peneira
era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irm�os.

A m�e disse que era o mesmo que
catar espinhos na �gua.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em desprop�sitos.

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A m�e reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios s�o maiores
e at� infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar �gua na peneira

com o tempo descobriu que escrever
seria o mesmo que carregar �gua na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
novi�a, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E come�ou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um p�ssaro
botando ponto no final da frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prod�gios.
At� fez uma pedra dar flor!
A m�e reparava o menino com ternura.

A m�e falou:
Meu filho voc� vai ser poeta.

Voc� vai carregar �gua na peneira a vida toda.

Voc� vai encher os
vazios com as suas
peraltagens e algumas pessoas
v�o te amar por seus
desprop�sitos.

Caderno de aprendiz 

Eu queria ser banhado por um rio
como um s�tio �.
Como as �rvores s�o.
Como as pedras s�o.
Eu fosse inventado de ter uma gar�a
e outros p�ssaros em minhas �rvores.
Eu fosse inventado como as pedrinhas
e as r�s em minhas areias.
Eu escorresse desembestado sobre as grotas
e pelos cerrados como s� rios.
Sem conhecer nem os rumos como os andarilhos.
Livre, livre � quem n�o tem rumo.

•  Esse � um dos 36 poemas de ''Caderno de aprendiz'', 
primeira parte do livro ''O menino do mato''

Retrato do artista 
quando coisa

A maior riqueza do homem 
� sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado. 
Palavras que me aceitam
 como sou — eu n�o aceito.
N�o aguento ser apenas
um sujeito que abre portas,
que puxa v�lvulas, que olha o rel�gio,
que compra p�o �s 6 da tarde, 
que vai l� fora, que aponta l�pis,
que v� a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu preciso ser 
Outros. Eu penso renovar
o homem usando borboletas.

•  Poema do livro hom�nimo


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