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Estado de Minas PUBLICA��ES CENSURADAS

Leila Danziger faz releitura dos 'Cadernos do povo brasileiro'

Com refer�ncia � cole��o de �nio Silveira, a artista publica livro que associa publica��es censuradas na ditadura com os rostos das v�timas do autoritarismo


08/10/2021 04:00 - atualizado 08/10/2021 07:55

Capa do livro de Danziger
Editado pela Relic�rio, o livro de Danziger � resultante da instala��o art�stica 'Perigosos, subversivos, sediciosos (Cadernos do povo brasileiro)', exposta no Memorial da Resist�ncia, em S�o Paulo (foto: Divulga��o)
Como se um prego atravessasse minha m�o. Ao segurar o novo livro de Leila Danziger, “Cadernos do povo brasileiro”, sinto isso. Uma haste de cobre rasgando a capa, as p�ginas, a pele e o m�sculo, arrebentando os ossos e rompendo veias e art�rias. Receio olhar para o ch�o e encontrar uma po�a de sangue se espalhando mais e mais � medida que as gotas v�o caindo. Com a capa e a contracapa, a sensa��o foi a mesma. Mas o metal trespassou tamb�m os pensamentos, a x�cara de caf� da manh� seguinte, a tela do computador em que escrevo este texto, os degraus de casa, o asfalto na rua, a m�scara cir�rgica, o pre�o do feij�o, a fome estendida nas cal�adas, a bolsa de valores, a est�tua do assassino em chamas, a saudade de um abra�o, a marcha em defesa da terra, a hist�ria, a luta. 

Isso porque n�o h� como sair indiferente da galeria de imagens que forma a obra, pois ela nos remete n�o apenas a eventos do passado, mas, sobretudo, a condi��es estruturais que permanecem na atualidade, que fazem deste pa�s, nas palavras de Darcy Ribeiro, “moinhos de gastar gente”. Lan�ado pela Editora Relic�rio, o livro � resultante da instala��o art�stica “Perigosos, subversivos, sediciosos (Cadernos do povo brasileiro)”, exposta no Memorial da Resist�ncia, em S�o Paulo, entre outubro de 2017 e mar�o de 2018. O mesmo edif�cio que abrigou o Departamento Estadual de Ordem Pol�tica e Social do Estado de S�o Paulo (Deops-SP), onde pessoas foram presas, torturadas e mortas por agentes da ditadura militar, pr�ticas que se perpetuam at� hoje pelas periferias e aldeias ind�genas no Brasil, como tamb�m pontua o impactante trabalho da artista visual. 

A partir de documentos produzidos pela Comiss�o Nacional da Verdade (CNV), Danziger construiu a obra em duas partes: livros censurados por raz�es pol�ticas ou morais durante o regime; e retratos de v�timas do Estado, seja durante a ditadura, como Vladimir Herzog, Frei Tito e o povo waimiri atroari, seja mais recentemente, como Amarildo de Souza, Cl�udia Ferreira e os jovens de Costa Barros. No livro, a solu��o da artista para transpor a instala��o para a p�gina impressa galvaniza a rela��o perversa entre as imagens e os mecanismos que refor�am a sua aus�ncia. Entre os livros proibidos, est�o obras de Paulo Freire, Pl�nio Marcos, Frantz Fanon, Cassandra Rios e exemplares da cole��o que intitula o trabalho de Leila Danziger, professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora e poeta.

“Cadernos do povo brasileiro” foi um importante projeto de forma��o pol�tica no pa�s. Teve sua publica��o pela Civiliza��o Brasileira entre 1962 e 1964, sob lideran�a do grande editor �nio Silveira, em parceria com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o Centro Popular de Cultura da Uni�o Nacional dos Estudantes (CPC/Une), com papel fundamental na difus�o dos livros entre os movimentos sociais e sindicatos. Com moderno projeto gr�fico, os t�tulos vinham em forma de perguntas, como se nos escavassem, em busca do que somos feitos: Quem � o povo no Brasil? Por que os ricos n�o fazem greve?

De que morre o nosso povo?. Na instala��o, cada livro foi perfurado por um prego de cobre e fixado nas mesmas paredes que testemunharam a viol�ncia contra os corpos “perigosos, subversivos e sediciosos”. Na vers�o impressa, as imagens dos livros atravessados pelos pregos s�o entremeadas pelos retratos dos mortos como se tamb�m os perfurasse. Est�o ligadas pelo destino atroz a que a m�quina da morte do Estado e da colonialidade os lan�ou, rasurando seus nomes, apagando suas hist�rias e desaparecendo com seus corpos.

As fotografias, ent�o, os reivindicam. Cada uma � velada, em sua dupla acep��o, por uma p�gina de sum�rio, folha de rosto, dedicat�ria e outros paratextos dos livros censurados. O cr�tico franc�s G�rard Genette denomina esses elementos textuais de seuils, ou seja, “limiares”, o primeiro instante, limite m�nimo de um come�o. Na recusa “em dar continuidade � reprodu��o traum�tica dos rostos das v�timas”, Danziger n�o apenas d� outra configura��o ao tempo em que essas vidas foram violentamente lan�adas, mas tamb�m resgata seus v�nculos com a nossa hist�ria e exp�e a pot�ncia de suas margens. Como os retratos est�o cobertos por essas p�ginas, n�o h� como ver integralmente os rostos, mas conseguimos distingu�-los pelas bordas, pelos limites em que se (re)inscrevem. 

No Imp�rio Romano, as m�scaras mortu�rias reproduziam os tra�os do morto para que fosse lembrado, permanecendo, assim, vivo em uma dimens�o simb�lica. Elas se chamavam imago, palavra latina de onde vem “imagem”. Nas imagens de “Cadernos do povo brasileiro”, as p�ginas que cobrem os rostos delineiam um retrato fragmentado do nosso pa�s, mas refor�am sua presen�a na mem�ria coletiva, constituindo uma dolorosa e necess�ria interpreta��o do Brasil. 

*Rodrigo Jorge Ribeiro Neves � professor, cr�tico e doutor em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
 
“Cadernos do povo brasileiro”
• Leila Danziger
• Relic�rio Edi��es
• 184 p�ginas
• R$ 59,90

Sobre a artista

Leila Danziger � artista pl�stica, professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e poeta. No seu site, uma das defini��es para a sua express�o art�stica � “a investiga��o da p�gina impressa (jornal, livro, documento hist�rico), orientando-se pelos atritos entre a micro e a macro hist�ria, entre a mem�ria familiar e as constru��es da mem�ria de viol�ncias extremas”. Com trabalhos desenvolvidos por meio de impress�es gr�ficas, fotografia, v�deo, instala��o e escrita, ela homenageou Lasar Segall no trabalho “Navio de emigrantes”, que estabeleceu conex�o entre a crise de refugiados na 2ª Guerra Mundial e a crise imigrat�ria no s�culo 21.  Danziger participou recentemente da exposi��o coletiva “Sobre os ombros de gigantes”, na Galeria Nara Roesler de S�o Paulo e New York, e publicou, pela editora carioca 7Letras, o terceiro livro de poesias: “Cinel�ndia”.


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