
Um estudo publicado no primeiro semestre deste ano pelo International Center for Journalists (ICFJ) mostrou que a viol�ncia de g�nero contra mulheres jornalistas tem acontecido por amea�as mis�ginas e ass�dio nas redes sociais. Al�m disso, aponta que a viola��o da privacidade e seguran�a digital aumenta os riscos f�sicos relacionados � viol�ncia sexual. Entre setembro e novembro de 2020, pesquisadores da Unesco fizeram mais de 900 entrevistas com profissionais de 125 pa�ses. A conclus�o do relat�rio � preocupante: 73% foram v�timas de ass�dio on-line em algum momento da carreira por causa do trabalho.
Al�m de dois extensos estudos de caso, o da filipina Maria Ressa, editora do Rappler Filipinas, e da brit�nica Carole Cadwalladr, rep�rter do The Guardian, a pesquisa re�ne 15 hist�rias detalhadas, incluindo a da brasileira Patr�cia Campos Mello, alvo de ataques ap�s assinar reportagens sobre o financiamento de disparos de mensagens falsas pelo WhatsApp, durante o processo eleitoral de 2018. Autora do livro “A m�quina do �dio”, que aborda esquemas criminosos que buscam a destrui��o de reputa��es pela internet, inclusive com a participa��o de l�deres populistas, ela foi amea�ada por ser mulher e jornalista.

Al�m de apresentar um tema extremamente atual, o livro destaca que o problema atravessa v�rias gera��es. Afinal, as jornalistas sofrem com epis�dios de humilha��o h� mais de um s�culo. Em 1887, Nellie Bly tinha apenas 23 anos quando foi autorizada pelo editor do jornal New York World, de Joseph Pulitzer, a se infiltrar como paciente em uma institui��o psiqui�trica de Nova York e denunciar todas as suas irregularidades. Por�m, aquela oportunidade n�o caiu do c�u. A jovem teve que batalhar muito para provar sua compet�ncia, j� que naquela �poca as mulheres n�o tinham direito ao voto e, em alguns estados americanos, tamb�m n�o podiam se divorciar ou mesmo usar cal�a comprida.
Bly, que foi escritora, inventora, empres�ria e filantropa, aliou perspic�cia, sagacidade e intelig�ncia para se tornar uma precursora da investiga��o jornal�stica. “Hoje, ocultar a pr�pria identidade para fazer uma reportagem � considerado anti�tico em quase todos os ve�culos de m�dia. Naquela altura, essa era uma das �nicas maneiras de expor falhas graves existentes nas institui��es. Al�m disso, era uma forma de as rep�rteres conseguirem cavar algum espa�o no ambiente patriarcal das reda��es. Foi justamente estimulada por sua revolta contra a opress�o das mulheres que Nellie Bly come�ou a escrever”, afirma Patr�cia Campos Mello.
A norte-americana perdeu o pai muito cedo e viu sua m�e ser amea�ada pelo segundo marido, que era um alco�latra violento. Aos 15 anos, estudava para ser professora e se indignava pelo fato de os meninos conseguirem tudo de maneira mais f�cil. A gota d’�gua veio quando leu o artigo “Para que servem as meninas?”, publicado pelo Pittsburgh Dispatch. O conte�do machista havia sido elaborado especialmente por causa da carta enviada por um pai preocupado porque suas cinco filhas ainda n�o tinham se casado. Mas a resposta n�o tardaria. Assinada por “�rf� solit�ria”, uma nova carta chegou � reda��o do jornal, agora questionando os motivos que levavam a sociedade a n�o dar �s meninas as mesmas chances que dava aos meninos.
Aquela atitude seria a porta de entrada de Nellie Bly para o jornalismo. Aos 21 anos, foi contratada pelo Dispatch, mas teve passagem curta. Ap�s nove meses, deixou o emprego porque s� lhe davam assuntos “mais femininos”, como jardinagem, moda e sociedade. A jovem queria muito mais. Ent�o, foi para o M�xico com o objetivo de construir uma carreira de correspondente internacional. Seis meses depois, teve que ir embora do pa�s porque escreveu reportagens cr�ticas sobre a ditadura de Porfirio D�az. Em meados de 1887, viajou para Nova York em busca de um emprego nos grandes jornais da cidade. Deu de cara na porta, ela era mulher.
Algum tempo depois, sem sucesso, tentou uma �ltima cartada. Foi ao New York World e se prop�s a voltar de navio da Europa para descrever as agruras enfrentadas pelos imigrantes que chegavam � Am�rica do Norte. A pauta n�o foi aprovada, mas desta vez lhe deram uma op��o: ser internada em uma institui��o conhecida pelo mau atendimento aos pacientes e relatar os problemas do local. Claro que Bly topou. Sem levantar qualquer suspeita, a rep�rter enganou policiais, ju�zes, enfermeiras e m�dicos para concluir aquele desafio. O resultado dessa aventura � narrado em primeira pessoa no livro “Dez dias num hosp�cio”.
Na s�rie de reportagens, Nellie Bly conta como foi a experi�ncia de ser internada em um local hostil, onde a comida era horr�vel, os banhos gelados e as pacientes, muitas delas v�timas da indiferen�a, do abandono e do descaso, sofriam humilha��es, amea�as, viol�ncia f�sica e psicol�gica. A jornalista sentiu na pele e presenciou os abusos cometidos por aqueles que deveriam cuidar dela e de suas colegas. Colocou sua sanidade mental � prova e denunciou todas as irregularidades do asilo de Blackwell’s Island. Dois anos depois, a norte-americana faria uma viagem ao redor do mundo em 72 dias, estabeleceria um recorde mundial e contaria a saga em um novo livro.
Trecho
“Deixei o hospital de alienados com prazer e remorso — prazer por ter uma nova chance de respirar o ar livre do para�so; remorso por n�o poder levar comigo algumas das mulheres desafortunadas que viveram e sofreram ao meu lado, e que acredito serem t�o s�s quanto eu mesma era e sou. E permitam-me dizer uma coisa: desde o momento em que entrei no hosp�cio da ilha, n�o fiz nenhum esfor�o para me manter no suposto papel de louca. Falei e agi exatamente como fa�o no meu dia a dia. Por incr�vel que pare�a, quanto mais eu agia e falava com lucidez, mais louca me consideravam, com a exce��o de um s� m�dico, cuja bondade e delicadeza n�o esquecerei t�o cedo.”
Entrevista
Patr�cia Campos Mello
Jornalista e autora do pref�cio da edi��o brasileira
“Esse tipo de jornalismo tem uma finalidade c�vica”
Quais s�o as semelhan�as e diferen�as que voc� observa entre as dificuldades enfrentadas por Nellie Bly no fim do s�culo 19 e as que jornalistas mulheres ainda encontram em 2021? Por qu�?
Acho que � muito louco pensar o quanto a gente n�o evoluiu. Obviamente que a vida dela era muito mais dif�cil. Ela estava em um momento em que, por exemplo, resolveu que queria ser correspondente internacional e teve que ir para o M�xico levando a m�e, porque n�o podia viajar sozinha, pois n�o pegava bem.
A condi��o da mulher, no geral, melhorou muito, mas eu acho mais chocante o quanto algumas coisas ainda resistem. Hoje em dia, principalmente nos �ltimos anos, com essa ascens�o de go- vernos populistas de direita, como voltou a ser um problema gigante ser mulher e ser jornalista. Voc� ser um alvo, ser criticada pelo g�nero e n�o pelo trabalho que faz. �bvio, existe mais autonomia, existem muitas rep�rteres, v�rias reda��es que t�m jornalistas em sua maioria, mas algumas coisas se mant�m. Por exemplo, poucas mulheres em cargos de chefia; a misoginia, tanto dos leitores quanto das fontes, dos governantes, isso tudo ainda � muito presente e n�o deveria ser, mais de cento e poucos anos depois.
Na sua opini�o, como a hist�ria de Nellie Bly pode inspirar profissionais de jornalismo, principalmente os que vivem e trabalham no Brasil? Por qu�?
Eu acho que, principalmente, o que deveria e poderia nos inspirar � entender e mostrar como funcionam os servi�os p�blicos e quando eles falham, quando n�o oferecem um servi�o bom para as pessoas. A gente mostrar esse tipo de jornalismo, que � um jornalismo c�vico. Que � quando a gente pode fazer alguma diferen�a, quando os rep�rteres v�o l� e, com uma den�ncia tipo a da Nellie Bly, provocam uma reforma para atender melhor as pessoas que dependem daquele tipo de servi�o p�blico.
Ent�o, eu acho que esse tipo de jornalismo que tem um resultado, uma finalidade c�vica, � muito importante hoje em dia. � manter a fun��o de guardi�o, de vigia, e o resultado � que, ao expor defici�ncias, erros ou at� crimes, conseguir reformas que melhoram a qualidade do servi�o p�blico para as pessoas.
Se voc� fosse uma colega de Nellie Bly no fim do s�culo 19, sobre qual tema gostaria de escrever com ela? E se ela estivesse viva hoje, sobre o que voc�s poderiam investigar juntas?
Eu adoraria ter feito essa exata mat�ria que ela fez, eu amaria. �bvio que hoje em dia a gente n�o usa mais isso, de falsear a sua identidade, embora seja interessante lembrar que em nenhum minuto ela fingiu que tinha um dist�rbio psiqui�trico.
Ela ficou como ela era e, mesmo assim, esses supostamente m�dicos especialistas, v�rios que a examinaram, n�o acharam que ela n�o tinha um problema psiqui�trico. Mas eu amaria ter feito essa mat�ria, entrar numa institui��o psiqui�trica e mostrar. Porque ali estava uma parte muito marginalizada da sociedade, eram imigrantes que j� tinham uma situa��o secund�ria ou submissa por serem mulheres, e, al�m disso, com pouco dinheiro. E ela (Nellie Bly) consegue mostrar isso vivendo, mostrando o dia a dia.
Voc� v� nos pequenos detalhes como era o p�o com a manteiga ran�osa, a sopa, as pequenas coisas, como era ficar sentado na cadeira, esses detalhes tornam a den�ncia e a reportagem muito mais eficiente, ao conseguir trazer mudan�as. E sobre o que a gente poderia investigar juntas? Bom, eu acho que ela seria uma parceira maravilhosa de mat�rias. Eu a vejo muito animada, com muito “sangue nos olhos”. Um tema que eu fiz um pouco, mas que gostaria de ter feito mais e mais aprofundado, � sobre a qualidade do atendimento de pessoas com COVID.
Ir aos hospitais p�blicos, ver como � que essas pessoas s�o atendidas, se os hospitais t�m equipamento ou n�o t�m, se est�o tentando emplacar kit COVID, esse tipo de coisa. A outra seria, por exemplo, acompanhar pessoas que participam de manifesta��es, como as ocorridas no �ltimo 7 de setembro. N�o as pessoas que est�o ali por um motivo leg�timo de manifestar apoio ao presidente e festejar a data da Independ�ncia, mas as pessoas que realmente acham que uma interven��o militar seria boa no Brasil e a gente acompanhar e entender a cabe�a dessas pessoas. Pegar um �nibus e ir com eles para Bras�lia e ver como �.
Eu acho que essa seria uma reportagem sensacional, inclusive para entender por que uma parcela da popula��o acha que seria bom ter um regime ditatorial.
Por que o jornalismo investigativo � t�o necess�rio, mas, ainda assim, h� uma escalada de viol�ncia contra rep�rteres em v�rios pa�ses? Como mudar essa situa��o?
Eu acho que o jornalismo investigativo est� sob ataque porque o ideal dessa �ltima safra de l�deres populistas, de esquerda e de direita, � controlar completamente a comunica��o pol�tica com os seus apoiadores. Eles querem ter controle sobre a mensagem. E as redes sociais, nesse sentido, s�o muito �teis, porque tentam desviar do filtro da imprensa profissional se comunicando diretamente, muitas vezes com mensagens descontextualizadas ou realmente mentirosas, falsas.
A� vem o jornalista, principalmente o investigativo, que � a pessoa que vai puxar o fio da meada e mostrar: “Olha, estou com esse documento, n�o � assim, isso que voc� falou n�o � verdade”, etc. Ent�o ele � visto como um obst�culo para o controle da mensagem pol�tica desses l�deres, que n�o querem ser questionados. No meio disso, eu acho que, como temos uma ascens�o de governos mais autorit�rios, eles se sentem autorizados a fazer ataques cada vez mais agressivos contra os jornalistas.
O que a gente tem que tentar fazer � continuar investigando, seja quem for, seja da direita, seja da esquerda, governo ou oposi��o, e n�o se intimidar. Claro, � dif�cil. Esses ataques est�o cada vez mais assustadores, mas a gente tem essa obriga��o de continuar investigando. Uma parcela da sociedade, no meio dessa “infodemia”, avalanche de desinforma��o, elei��es, voto impresso, valoriza o papel do jornalismo em tentar responsabilizar os atores do governo.
Est�o valorizando mais o jornalismo e entendendo que ter um jornalista profissional ali, n�o se posicionando a favor de A, B ou C, mas tentando ouvir todos os lados, consultando os documentos para chegar � verdade, � importante. E a �nica coisa que a gente pode fazer � continuar investigando.