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Estado de Minas PRIMEIRA LEITURA

'Balta'


10/12/2021 04:00 - atualizado 10/12/2021 08:22

Pedro Kalil 

O sol batia forte no rosto; o gosto do caf� ia se arrefecendo em minha boca. Esperava M., que se demorava. Contava os carros como quem gira uma ampulheta gasosa. Mais quatro carros azuis poderiam passar; sen�o, iria embora. Pensava no mingau de minha m�e. Um carro. No cheiro de um peito seco como o do fim da inf�ncia. Outro carro. Na natureza escorregadia da l�ngua enquanto lambia o c�u da boca. M. aparece virando a esquina carregando livros e passa direto por mim, como se eu tivesse me tornado um fantasma.

*

O problema era metade da bandeira da Para�ba, um pequeno peda�o da de S�o Paulo, uma faixa na do Rio Grande do Sul, alguns riscos na do Maranh�o, aquela estrela do Acre e um tri�ngulo na de Minas Gerais, era o que ouvia meu pai comentar com Floriano em um raro momento em que fisguei um segredo c�ncavo e que pagava com obnubila��o. Ao ouvir o que n�o poderia ser ouvido e processar o que n�o poderia ser processado, minha boca se descontrolou enquanto mordia um p�o na cozinha e entendia que o problema de meu sangue era por eu ter uma l�ngua e por eu ter dentes. Das veias s� corroeriam o quadril�tero f�tido de uma uretra cauterizada. 

*

A primeira vez que Albert retalhou a boca para proferir algum tipo de senten�a foi para detalhar, n�o sem um sorriso espantado na boca, a forma com que o joelho de R. havia sido esmagado, a ponto de ter a finura de uma t�nia. Sua pestil�ncia ressoava mais segura na parte baixa da casa, onde dava para redigir melhor a explana��o sobre como o sangue come�ara a sair pelos ouvidos � medida que um torniquete era embalsamado entre as costelas do rapaz. Na sua v�vida representa��o de uma urna mortu�ria, eu imaginava os corpos dos meus pais esmagados no carro quando a carga de m�rmore se desprendeu de um caminh�o e assaltou em cheio o vidro, que voava, anunciando o j�bilo da solid�o. 

*

A sensa��o de n�o ter o m�nimo controle sobre nossa percep��o do tempo � t�o esclarecedora quanto a de um afogamento. A diferen�a � que, quando o corpo � invadido pela �gua, sentimos no pulm�o o apaziguamento de todas as latitudes. Impossibilitado do sabor da varia��o dos dias, da Lua e das luzes, � s� a sensa��o t�rmica que ajuda a perceber que o mundo em sua volta n�o morreu e que s� voc� ali sobreviveu, mesmo que trancado em um bunker, sem saber quando tudo poder� ser habit�vel de novo. De alguma maneira, voc� n�o deseja mais sair, porque algum perigo l� fora � mais do que pronunciado. Entretanto, o impulso para ver todo o desastre te faz andar em dire��o � porta at� perceber que ela est� trancada por fora e que o fim do mundo n�o � alhures, mas aqui, na companhia de uma barata, matando o tempo e toda interpela��o.   

imagem do livro 'Balta - Fragmentos de deformação', de Pedro Kalil

* “Balta – Fragmentos de deforma��o”
* Pedro Kalil
* Fotografias de Patrick Arley
* Relic�rio Edi��es
* 126 p�ginas
* R$ 36,90 
* Lan�amento nesta sexta, �s 18h, na Livraria 
Quixote, Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi 

Sobre o livro

“Balta” � o nome recebido pelo narrador do livro por um amigo de seu pai, 
Floriano, que acreditava que o jovem seria de suma import�ncia para o futuro da p�tria. Apesar dos acontecimentos de “Balta” se concentrarem em um per�odo hist�rico – a �ltima ditadura brasileira –, o tempo � expandido,  constitu�do por v�rios peda�os da hist�ria de nossa rep�blica. Narrado em primeira pessoa, mas somente com fragmentos, “Balta” � novela constru�da como aporia: a interrup��o de forma��o se torna deforma��o, a impossibilidade de uma narrativa teleol�gica se transforma em fragmento, a confiss�o � para nublar os acontecimentos, aquilo que se mostra ao mesmo tempo se esconde e a linguagem rebusca na hora de deixar crua a viol�ncia. O projeto gr�fico, realizado por Mariana Mist Oeste, explora n�o s� o concreto na capa, mas o contraste com a abertura costurada da lombada e a flexibilidade das p�ginas, entre o texto do livro e as tarjas que emolduram os fragmentos.

Sobre os autores

Pedro Kalil � doutor em teoria da literatura e literatura comparada pelo PosLit da Fale/UFMG. Publicou “O menino que queria virar vento” (Aletria, 2012), “Charlotte-peixe-borboleta” (Relic�rio, 2016), 
“O ano da fuma�a” (Urutau, 2020) e “Autor/Autoria: Roland Barthes e Cahiers du Cinema” (EdUFAL, 2021). 

Patrick Arley � antrop�logo e fot�grafo, com mais de 10 anos de experi�ncia, com participa��es em exposi��es no Brasil e no exterior. Em 2015, foi selecionado para “The Exposure Award – Portraiture Collection”, no Museu do Louvre (Paris), com uma das imagens do trabalho que fez em Mo�ambique. Participou, em 2017, da exposi��o “Reinado de Chico Calu – Repert�rios Sagrados da Irmandade Os Carolinos”, no Museu Inim� de Paula, em Belo Horizonte.


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