
Pela tradu��o de “Ulysses”, Galindo ganhou um Jabuti da C�mara Brasileira do Livro e o pr�mio da Associa��o Paulista de Cr�ticos de Arte. A mesma Associa��o que lhe deu outro pr�mio pelo empenho de levar � l�ngua portuguesa “Gra�a infinita”, o grande romance de David Foster Wallace.
Nesta entrevista exclusiva ao Pensar, o escritor, tradutor e professor de hist�ria da l�ngua portuguesa da Universidade Federal do Paran� Caetano Galindo comenta as pr�prias revis�es feitas em “Ulysses” e a tradu��o em andamento — desde 2005 — do “Finnegans Wake”.
Nesta edi��o especial, voc� revisita o texto da pr�pria tradu��o e faz uma releitura “que reflete algo do que hei de ter aprendido”. Mas na nota do tradutor, h� 10 anos, voc� dizia se despedir do livro. O que mudou na sua abordagem da obra de Joyce?
Sobre me despedir da tradu��o, bom... s� termina quando acaba, n�? N�o � a coisa mais comum do mundo voc� retornar e revisar inteira uma tradu��o que continua sendo editada, mas o “Ulysses” tamb�m n�o � o livro mais comum do mundo! O que mudou pra mim, se for pra sintetizar, tem a ver com uma meia d�zia de solu��es que de fato n�o me deixaram feliz na �poca, e que agora eu pude substituir e, acima de tudo, talvez uma sensa��o geral ler o livro com mais distanciamento, menos preocupa��o (inclusive preocupa��o de impressionar), mais atento ao efeito geral e ao impacto humano. Acho que este novo “Ulysses” est� mais “redondo”, e que a minha m�o ali est� um tanto menos pesada.
"Leopold Bloom � encantador, esquisito, divertido, pervertido, interessado, acima de tudo curioso."
Caetano W. Galindo, tradutor de "Ulysses"
Qual o retorno que voc� teve do tal “leitor comum” a quem voc� dirige o seu guia “Sim, eu digo sim”? O leitor brasileiro abriu m�o de s� relegar o romance ao conceito de dif�cil e j� se disp�e a sabore�-lo ou ainda se encontra no ponto de s� reclamar das pedras no caminho?
Olha, tenho a impress�o de que, entre a publica��o da tradu��o do Houaiss (em 1966) e o dia de hoje, o livro foi gradualmente saindo desse lugar de “cl�ssico herm�tico intoc�vel” e assumindo uma posi��o mais central e mais acess�vel. A tradu��o da professora Bernardina da Silveira Pinheiro teve um impacto importante, e acho que a minha (e depois o guia) tamb�m deu uma m�o. O livro continua sendo dif�cil, � claro, mas h� mais vias de acesso, mais aux�lio, e o pr�prio leitorado brasileiro tamb�m se sofisticou um bocado nesse tempo. N�o sei se o “Ulysses” chegar� um dia a ser um livro tipicamente destinado a esse “leitor comum”. Mas acho que j� estamos numa situa��o em que esse dito leitor comum tem plenas condi��es de acesso ao livro.
Qual foi o crit�rio usado para selecionar os ensaios que iriam comparecer neste volume? Sobretudo quando se leva em conta que existem alguns “aparatos de aux�lio” em portugu�s.
Os ensaios s�o todos originais, at� pra dar conta desse fato, de que h� outros conjuntos de textos por a�. Mesmo os dois exemplos da recep��o dos anos 1920 est�o sendo publicados aqui pela primeira vez. E todos os textos produzidos para a nossa edi��o partem desse novo momento. � muito diferente escrever sobre o “Ulysses” nos anos 1980-1990, quando a presen�a do livro no Brasil era uma, e escrever agora, no centen�rio, com tr�s tradu��es circulando e o livro muito mais lido. A gente est� em posi��o de olhar com mais tranquilidade pro livro. Menos pol�mica, menos propaganda, menos academicismo.
Tendo enfrentado as dificuldades (e, v� l�, as del�cias) na tradu��o, voc� se sente estimulado a seguir adiante e traduzir o ainda mais complicado “Finnegans Wake”? No final do seu guia voc� diz que a tradu��o est� “em curso”. � poss�vel pensar em prazos ou ainda � cedo?
A tradu��o do “Wake” est� “em curso”, sem exagero, desde 2005, mais ou menos. Agora em mar�o deve sair na Penguin/Companhia o volume com o teatro e os livros de poesia de Joyce, e com isso fica faltando apenas este livro pra gente publicar a obra completa de Joyce. Eu espero conseguir me dedicar mais diretamente a isso nos pr�ximos dois anos, porque minha meta pessoal � publicar a tradu��o, e quem sabe algum tipo de “guia” at� 2024.
Sendo James Joyce t�o inteligente e erudito, capaz de misturar refer�ncias e l�nguas no ensopado do romance, por que voc� acredita que ele criou um personagem central t�o ao r�s do ch�o? O artefato teria falhado se Leopold Bloom fosse um intelectual t�o sofisticado quanto o criador?
Essa � uma superpergunta. Vem comigo. Joyce come�a (em “Dublinenses”) escrevendo sobre uma cidade. Dali ele retira um “eu” (no “Retrato do artista quando jovem”), e n�o um eu qualquer, mas um alter ego, baseado muito diretamente nele mesmo. Ele olha pro umbigo, portanto. No “Finnegans Wake”, ele vai olhar pro mundo todo, e al�m. Os personagens v�o se derreter e se misturar com tudo mais. Mas esse �ltimo passo s� foi poss�vel porque o “Ulysses”, que come�a como uma segunda parte do “Retrato”, passa pelo lind�ssimo choque t�rmico que � a entrada de Leopold Bloom, e, depois, pela coda com a voz de Molly. O projeto todo do livro se baseia nesse contraste, e na decis�o acertad�ssima de ir gradualmente abandonando o alter ego, o umbigo, o mundo conhecido, pela vida real de um cidad�o qualquer. Por�m, vale lembrar que Bloom � tudo, menos um cidad�o “qualquer”. Ele � encantador, esquisito, divertido, pervertido, interessado, acima de tudo curioso.