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Em 'Os sentidos do sujeito', Judith Butler promove di�logos filos�ficos

Autora norte-americana trabalha com as ideias de Sartre, Descartes, Espinosa, Fanon e Kierkegaard


18/02/2022 04:00 - atualizado 17/02/2022 23:52

filósofa norte-americana Judith Butler
Judith Butler: nascida em 1956, em Cleveland (EUA), � voz ativa nos debates sobre direitos humanos e identidade de g�nero (foto: Divulga��o)

Em “Regras para o parque humano”, o fil�sofo alem�o Peter Sloterdijk nos lembra que os livros, como “observou certa vez o escritor Jean Paul, s�o cartas dirigidas a amigos”, frase que, em ess�ncia, explicita “a natureza e a fun��o do humanismo: a comunica��o propiciadora de amizade realizada a dist�ncia por meio da escrita”. Sloterdijk entende que, nos dias de hoje, “� apenas marginalmente que os meios liter�rios, epistolares e humanistas servem �s grandes sociedades modernas para a produ��o de suas s�nteses pol�ticas e culturais”.

Em sendo assim, um livro amplamente dial�gico como “Os sentidos do sujeito”, da fil�sofa norte-americana Judith Butler, tem um n�mero reduzido de destinat�rios, mas isso n�o nos impede de saudar seu lan�amento no Brasil e discorrer um pouco a seu respeito.

O volume � constitu�do por ensaios escritos entre 1993 e 2012. Dada a j� mencionada amplitude desses di�logos de Butler com a tradi��o filos�fica, a editora Aut�ntica tomou a boa decis�o de atribuir a tradu��o de cada texto a profissionais familiarizados com os diversos pensadores trazidos para a conversa. A equipe de tradutores, formada por Ana Luiza Gussen, Beatriz Zampieri, Gabriel Lisboa Ponciano, Kissel Goldblum, Luis Felipe Teixeira, Nathan Teixeira, Petra Bastone e Victor Galdino, foi coordenada por Carla Rodrigues.

Cronologia filos�fica

A autora n�o organizou os textos pela ordem de publica��o, dos mais antigos aos mais recentes, mas segundo uma cronologia filos�fica. No decorrer do livro, Butler lida com Descartes, Malebranche, Espinosa, Kierkegaard e Fanon, entre outros, adotando uma eficiente postura cr�tico-interpretativa e propondo desdobramentos condizentes com o seu pr�prio percurso. Na introdu��o, ela fala sobre o que daria alguma unidade ao conjunto de ensaios: “quando falamos sobre a forma��o do sujeito, invariavelmente presumimos um limiar de suscetibilidade ou de impressionabilidade que (...) precede a forma��o de um ‘eu’ consciente e deliberado”, ou seja, “essa criatura que sou � afetada por algo que est� fora de si mesma”, algo anterior que “ativa e informa o sujeito que sou”. Trata-se de uma “posi��o retrospectiva” e paradoxal, pois intenta “narrar alguma coisa sobre minha forma��o, que � anterior � minha pr�pria capacidade narrativa, e que isso, de fato, � o que possibilita essa capacidade narrativa”.

Butler alerta contra qualquer extremismo causal, por mais que a a��o n�o nos livre das nossas forma��es — e nisso ela se distancia do que chama de “existencialismo festivo”. Trata-se de um “cont�nuo processo formativo”, de uma “transitividade”, e “os contornos de uma rela��o �tica” surgem desse “paradoxo da forma��o do sujeito”. H� algo incontornavelmente social nesses sentidos do sujeito, por mais que o conte�do relacional seja marcado por antagonismos, disputas e rupturas.

No primeiro ensaio, “Como posso negar que estas m�os e este corpo sejam meus?”, a autora repensa a “gram�tica da pergunta” intr�nseca �s “Medita��es” cartesianas e o extravasamento do corpo, que “escapa aos termos da pergunta pela qual � abordado”. No segundo, “Merleau-Ponty e o toque de Malebranche”, “o ‘toque’ em quest�o n�o � o ato singular de tocar, mas a condi��o em fun��o da qual uma exist�ncia corp�rea � assumida”. A partir das leituras de Maurice Merleau-Ponty sobre Nicolas Malebranche, chegamos a um movimento filos�fico “mais fundamental”, no qual “se investiga o ponto de partida da pr�pria senci�ncia, a obscuridade e prioridade da sua condi��o animante”.

“O desejo de viver: a ‘�tica’ de Espinosa sob press�o”, o ensaio seguinte, fala sobre como essa �tica sob press�o honraria “o desejo sem colapsar em uma defesa egoman�aca (...) da propriedade” e “a puls�o de morte sem deixar que ela apare�a como viol�ncia”. No quarto texto, “Sentir o que � vivo no outro: o primeiro amor de Hegel”, Butler aborda um fragmento escrito pelo fil�sofo alem�o na juventude, no qual busca “descobrir o que mant�m o amor vivo e o que � vivo no amor” e aponta para como o amor, mesmo sendo singular, “precisa sempre tomar mais que uma forma singular”.

 “O desespero especulativo de Kierkegaard” � uma defesa da reflex�o hegeliana frente �s cr�ticas nem sempre “justas” do dinamarqu�s, “que constr�i sua no��o de indiv�duo nos limites mesmos do discurso especulativo a que procura se opor”. Aos interessados em se aprofundar no tema, sugiro o livro “Kierkegaard’s relation to Hegel reconsidered”, de Jon Stewart.

“A diferen�a sexual como uma quest�o �tica: as alteridades da carne em Irigaray e Merleau-Ponty” trata da ambival�ncia e das contradi��es da leitura feminista de Merleau-Ponty feitas por Irigaray, inadvertidamente caracterizada pelo “entrela�amento constitutivo” hermen�utico caracter�stico das “rela��es da carne”.

O derradeiro ensaio, “Viol�ncia, n�o viol�ncia: Sartre sobre Fanon”, analisa o pref�cio de Sartre para “Condenados da Terra”, de Frantz Fanon, no qual o franc�s reitera a tradi��o de n�o reconhecimento do outro ao tentar critic�-la, e investe em uma apologia da viol�ncia do colonizado “como a rota em dire��o � identidade, � ag�ncia, (...) � vida”. Contraposta a isso, est� a posi��o do pr�prio Fanon, que pensa a cria��o de um “novo homem” ancorada na reflexividade e a “recorporifica��o do humanismo” como uma alternativa poss�vel � viol�ncia, pois “n�o pode haver inven��o de si sem o ‘voc�’”.

Por fim, algo a ser sublinhado no procedimento de Butler � que, em seu di�logo com outros pensadores, ela presta uma aten��o especial � linguagem com que cada ideia � articulada. N�o se trata de um mergulho filol�gico de ares heideggerianos, mas uma aten��o cuidadosa � voz do outro. Essa observ�ncia � um dos elementos que enriquecem “Os sentidos do sujeito” e as correspond�ncias que estabelece t�o bem.

* Andr� de Leones � escritor, autor de romances como "Eufrates" e "Abaixo do para�so", entre outros
Capa do livro 'Os sentidos do sujeito'

“Os sentidos do sujeito”
De Judith Butler
Coordena��o de tradu��o de Carla Rodrigues
Aut�ntica Editora
256 p�ginas
R$ 59,80

TRECHO 

“Entregamos nossos corpos a todo mundo, para al�m mesmo do reino das rela��es sexuais: por meio do olhar, do toque. Voc� entrega seu corpo a mim, eu entrego o meu a voc�: existimos para o outro, enquanto corpo. Mas n�o existimos da mesma maneira enquanto consci�ncia, enquanto ideias, ainda que ideias sejam modifica��es do corpo.
(...)

O ‘voc�’ pode muito bem tomar o lugar de ‘homem’ na busca pelo humano que est� al�m do horizonte constitu�do do humanismo. Se h� uma rela��o entre esse ‘voc�’ que busco conhecer, cujo g�nero ainda n�o pode ser determinado, cuja nacionalidade n�o pode ser pressuposta e que me compele a renunciar � viol�ncia, ent�o esse modo de endere�amento articula um desejo – n�o apenas um futuro n�o violento para a humanidade, mas tamb�m uma nova concep��o do humano que tem, como precondi��o de sua cria��o, alguma forma de toque que n�o seja a viol�ncia.”

(Trecho do ensaio “Viol�ncia, n�o viol�ncia: Sartre sobre Fanon”, de Judith Butler)


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