
Aus�ncia de perspectiva, desamparo, desesperan�a. O Brasil dos �ltimos anos j� podia ser vislumbrado em alguns dos filmes mais marcantes do cineasta Walter Salles. Mas, em “Terra estrangeira” e “Central do Brasil”, tamb�m apareciam possibilidades de enfrentamento da realidade a partir de encontros de pessoas bem diferentes – Alex (Fernanda Torres) e Paco (Fernando Souza Pinto), Dora (Fernanda Montenegro) e Josu� (Vinicius de Oliveira).
Dirigido por Salles e Daniela Thomas, “Terra estrangeira” completou 25 anos em 2021 e voltou � tela grande em c�pia restaurada, com a primeira exibi��o no Brasil na 45ª Mostra Internacional de Cinema de S�o Paulo. “O filme nasce como uma rea��o ao sil�ncio for�ado do desgoverno Collor, e de 25 anos de ditadura militar. � um filme regido pelo desejo urgente de refletir quem n�s �ramos naquele momento de nossas vidas, e de participar do renascimento da cinematografia brasileira”, lembrou Walter Salles, � �poca da exibi��o.
“Hoje, a desesperan�a se agravou. E t�o grave quanto o ex�lio f�sico � a sensa��o de estarmos exilados dentro do nosso pr�prio pa�s, que n�o mais reconhecemos”, afirma, em entrevista exclusiva ao Pensar, do Estado de Minas.
Urso de Ouro de melhor filme e Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim de 1998, “Central do Brasil” concorreu ao Oscar de melhor produ��o estrangeira e ainda � o filme mais popular de Walter Salles, visto por mais de 3 milh�es de espectadores – no Brasil e no exterior. O filme subsequente do diretor, “Abril despeda�ado”, completou 20 anos em 2021 e uma de suas tem�ticas – os conflitos violentos no interior do pa�s – continua bem atual.
“A escalada de viol�ncia assume contornos cada dia mais b�rbaros”, acredita o diretor. Ele revelou a motiva��o para o seu pr�ximo projeto, “Ainda estou aqui”, adapta��o do livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a m�e do escritor, Eunice Paiva, uma das protagonistas da luta contra a ditadura militar, v�tima das consequ�ncias do mal de Alzheimer em 2018. “� um relato ao mesmo tempo tr�gico e de uma grande beleza, que merece ser contado para nos lembrarmos de quem n�s somos, pelo que passamos, de onde viemos”, acredita.
“A escalada de viol�ncia assume contornos cada dia mais b�rbaros”, acredita o diretor. Ele revelou a motiva��o para o seu pr�ximo projeto, “Ainda estou aqui”, adapta��o do livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a m�e do escritor, Eunice Paiva, uma das protagonistas da luta contra a ditadura militar, v�tima das consequ�ncias do mal de Alzheimer em 2018. “� um relato ao mesmo tempo tr�gico e de uma grande beleza, que merece ser contado para nos lembrarmos de quem n�s somos, pelo que passamos, de onde viemos”, acredita.
Na entrevista, Salles revelou que ainda estava impactado pela morte de Arnaldo Jabor, ocorrida em 15 de fevereiro: “Simbolicamente, � como se uma gera��o que imaginou um pa�s independente, definido segundo seus pr�prios crit�rios est�ticos e pol�ticos, estivesse partindo sem ter tido tempo de passar o bast�o, em um dos momentos mais delicados da nossa hist�ria”, diz o cineasta, admirador de “Toda nudez ser� castigada” e “Tudo bem”.
A desesperan�a no futuro do pa�s move os personagens de “Terra estrangeira” a tentarem uma nova vida, fora do Brasil. Esse sentimento recrudesceu, permanece ou se intensificou?
O caos social e econ�mico dos anos Collor, retratado em “Terra estrangeira”, representou um ponto de inflex�o na hist�ria do pa�s. Oitocentas mil pessoas sem perspectiva de futuro, em grande parte jovens, partiram do Brasil. Como dizia Edward Said, o ex�lio pode ser tentador, mas � terr�vel de se experimentar. � o que Paco (Fernando Alves Pinto) e Alex (Fernanda Torres), personagens do filme, sentem na pele. Hoje, a desesperan�a se agravou. Aos milhares de brasileiros que tentam encontrar trabalho nos Estados Unidos atravessando a fronteira com o M�xico, somam-se centenas de cientistas que, com a asfixia de suas profiss�es, s�o obrigados a partir. T�o grave quanto o ex�lio f�sico � a sensa��o de estarmos exilados dentro do nosso pr�prio pa�s, que n�o mais reconhecemos. � uma impress�o de n�o pertencimento, dolorosamente palp�vel.
� �poca da prepara��o de “Abril despeda�ado”, voc� comentou que o filme, mesmo situado em espa�o e tempo n�o definidos, n�o deixaria de estar ligado � quest�o da viol�ncia no Brasil. “A realidade atingiu um est�gio em que n�o h� fic��o que possa chegar aos seus p�s”, afirmou, em declara��o reproduzida no livro “Abril despeda�ado: A hist�ria de um filme”. Continua acreditando que � imposs�vel para a fic��o chegar ao atual est�gio da realidade brasileira?
A escalada de viol�ncia assume contornos cada dia mais b�rbaros – como atestam os assassinatos de Moise Kawagambe e de Durval Te�filo Filho, para citar os mais recentes. “O Brasil � um pa�s em que o racismo est� em carne viva”, afirma a soci�loga Vilma Reis. Essa banaliza��o da viol�ncia atinge jovens imigrantes, milhares de jovens negros nas periferias, centenas de lideran�as ind�genas. O genoc�dio virou pol�tica de Estado. “A temporada � de ca�a, e Bolsonaro armou os ca�adores”, proferiu recentemente o vereador Renato Freitas. Como dar conta dessa exponencializa��o da viol�ncia, e de suas ra�zes estruturais? A literatura tem cumprido bem esse papel. Penso no extraordin�rio “O avesso da pele”, de Jeferson Ten�rio, que fala como poucos da nossa crise identit�ria e do racismo estrutural brasileiro, ao mesmo tempo em que trata magistralmente de linguagem e literatura.
Qual g�nero cinematogr�fico seria mais adequado para retratar os �ltimos anos do Brasil?
Como dar conta das m�ltiplas formas de asfixia que nos afligem? S�o tantas frentes, que todos os instrumentos s�o necess�rios para retrat�-las: a fic��o, o document�rio, os registros no calor do momento, feitos nos celulares. Vi h� pouco um longa documental excepcional de Jorge Bodanzky, em fase final de montagem: “Amaz�nia – Minamata”. O filme faz a liga��o entre o uso indiscriminado de merc�rio nas terras invadidas por garimpos na Amaz�nia e as consequ�ncias do uso criminoso de merc�rio em Minamata, no Jap�o, nos anos 1950. Tanto em Minamata, quanto na Amaz�nia de hoje, � o futuro das pessoas que est� em jogo. O document�rio de Jorge Bodanzky � um soco no est�mago, um filme obrigat�rio.
Em “Deserto particular”, de Aly Muritiba, assim como em “Central do Brasil”, um dos protagonistas faz um deslocamento geogr�fico (da metr�pole urbana para o interior nordestino) que tamb�m acarreta num profundo deslocamento �ntimo. Depois de alguns conflitos, a supera��o de diferen�as vem pela necessidade de express�o de afeto. Acredita que a situa��o mostrada nos dois filmes pode sinalizar uma possibilidade de sa�da para um pa�s enfermo e exausto de conflitos?
“Deserto particular” � um grande filme, escrito, dirigido e interpretado com uma rara sensibilidade. Aly Muritiba abre possibilidades de escuta em um momento de absoluta incomunicabilidade. Sintomaticamente, “Compartimento 6”, um �timo filme finland�s que disputou a indica��o ao Oscar de melhor filme internacional este ano, trata de um tema similar. Nele, dois personagens diametralmente opostos encontram aos poucos pontos de converg�ncia, numa longa viagem de trem atrav�s da Sib�ria. Talvez estejamos cansados de tantas distopias. Essa transforma��o pelo afeto, em uma era marcada pela desumaniza��o da sociedade, tamb�m era o vetor de “Central do Brasil”.
Como estariam Dora e Josu� no Brasil de hoje?
Nessa terra em transe, Josu� e Dora estariam provavelmente sofrendo os efeitos de uma gest�o desastrosa nas �reas mais vitais da sociedade. Mas n�o estariam derrotados – ambos s�o guerreiros, eles n�o cederiam facilmente.
Quais produ��es audiovisuais recentes brasileiras o impressionaram? E da Am�rica Latina? Voc� tem acompanhado os trabalhos da produtora mineira Filmes de Pl�stico?
“Fico te devendo uma carta sobre o Brasil”, filme de estreia arrebatador de Carol Benjamim. Gostei muito de “Seiva bruta” de Gustavo Milan, um curta que trata de forma singular das quest�es do ex�lio e da emigra��o. Sou f� de Andr� Novais desde os curtas, e achei “Temporada” um filme de rara humanidade, com uma Grace Pass� em estado de gra�a. Os filmes de Andr� s�o habitados, ficam ecoando dentro de n�s. Gostei da inquieta��o e da mirada de “No cora��o do mundo”, de Gabriel Martins e Maur�lio Martins. E de “Ar�bia”, de Affonso Uch�a e Jo�o Dumans, um filme que me marcou. Ainda em Minas, gosto demais dos filmes de Cao Guimaraes, da sensorialidade que emana de cada viagem que ele nos prop�e. Cao � um artista e tanto.
Qual o impacto da atual gest�o no Minist�rio da Cultura e da Ancine na produ��o audiovisual brasileira? Est� mais dif�cil filmar?
A cultura vive o mesmo estado de asfixia que gangrenou o pa�s como um todo. O Brasil nunca tratou t�o mal sua mem�ria p�blica e coletiva. O cinema sobrevive malgrado toda a for�a contr�ria para anul�-lo. A falta de regulamenta��o em rela��o �s plataformas tamb�m � alarmante quando comparada com os pa�ses europeus, onde essa rela��o � regida por normas que fazem sentido para todos.
“As hist�rias que eu escrevo ser�o sempre para telas muito grandes”, afirmou Pedro Almod�var recentemente, em entrevista publicada em O Globo. E as hist�rias que voc� quer contar? Filmes como “Central do Brasil” e “Terra estrangeira” teriam provocado o mesmo impacto se houvessem sido lan�ados diretamente nas plataformas de streaming?
Concordo com todos que defendem que um filme deve estrear na tela do cinema, como parte uma experi�ncia coletiva – o que acontece desde os irm�os Lumi�re. Penso que estamos caminhando para a coabita��o entre o cinema e as plataformas. Isso dito, a volta �s salas de cinema depende de um controle eficaz da pandemia – e, portanto, do respeito � ci�ncia. Pa�ses que foram mais consequentes nesse combate s�o aqueles onde a frequ�ncia nos cinemas voltou mais rapidamente, como na Austr�lia.
“Ainda estou aqui”, t�tulo do livro de Marcelo Rubens Paiva que voc� anunciou como um de seus pr�ximos projetos, tamb�m se aplica ao cinema como o conhecemos no s�culo 20? Por que levar essa hist�ria �s telas?
O livro de Marcelo me impactou profundamente pela sua extraordin�ria dimens�o humana e pol�tica. � um relato ao mesmo tempo tr�gico e de grande beleza, que merece ser contado para nos lembrarmos de quem n�s somos, pelo que passamos, de onde viemos. E, sim, o filme dever� estrear primeiro na tela grande.
“O passado � conservado por ele mesmo, nos segue por toda a vida. Mas a mem�ria tamb�m se apaga”, lembra Marcelo Rubens Paiva em “Ainda estou aqui”, ao descrever a situa��o da m�e, com Alzheimer. “Mas e quando o presente n�o faz sentido? Quando ele passa a n�o existir, vira um furac�o de imagens, um vento que impede de se enxergar com clareza?”, ele questiona. Acredita que o presente, no Brasil, tamb�m perdeu o sentido e mergulhamos em “um furac�o de imagens”? Qual a import�ncia de preservar o passado, de resgatar a mem�ria nesse cen�rio?
Sem conhecer e habitar esse passado, seremos condenados a repetir os erros no presente. No personagem de Eunice Paiva, h� a busca pelo resgate de uma mem�ria individual, mas tamb�m coletiva. Restam muitas est�rias do Brasil a serem contadas, e essa � uma delas.

O resgate da mem�ria
Walter Salles vai dirigir a adapta��o para as telas de “Ainda estou aqui” (Alfaguara, 2015), de Marcelo Rubens Paiva. O livro narra a luta de Eunice Paiva, vi�va do deputado Rubens Paiva e m�e do escritor, contra o mal de Alzheimer nos �ltimos anos de vida. “� uma doen�a que ataca toda a fam�lia”, lembra o autor no cap�tulo “O alem�o impronunci�vel”. “Como Deus pode ser t�o imprudente e imputar tanto sofrimento a uma pessoa s�? Essa doen�a n�o era para acontecer, n�o tinha que acontecer, n�o nela! Por que prova��o mais a minha fam�lia devia passar? Por que nos testavam at� o limite? Chega! Quer�amos um descanso. N�o ter�amos”, narra Marcelo.
Como pano de fundo, a batalha da fam�lia para resgatar a mem�ria de Rubens Paiva, desaparecido pol�tico, morto durante a ditadura militar, e a reconstitui��o de uma trajet�ria admir�vel, que incluiu a mudan�a de rumo de vida quando, m�e de cinco filhos, Eunice se formou em direito, passando a defender causas como os direitos dos povos ind�genas.
Como pano de fundo, a batalha da fam�lia para resgatar a mem�ria de Rubens Paiva, desaparecido pol�tico, morto durante a ditadura militar, e a reconstitui��o de uma trajet�ria admir�vel, que incluiu a mudan�a de rumo de vida quando, m�e de cinco filhos, Eunice se formou em direito, passando a defender causas como os direitos dos povos ind�genas.
Filmografia
“A grande arte” (1991)
“Terra estrangeira” (1995, com Daniela Thomas)
“O primeiro dia” (1998, com Daniela Thomas)
“Central do Brasil” (1998)
“Abril despeda�ado” (2001)
“Di�rios de motocicleta” (2004)
“�gua negra” (2005)
“Linha de passe” (2008, com Daniela Thomas)
“On the road: na estrada” (2012)
“Jia Zhangke: Um homem de Fenyang” (2014)