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Estado de Minas CINEMA

An�lise: o cinema brasileiro entre armas e beijos

De 'Bacurau' a 'Deserto Particular' e 'Eduardo e M�nica', filmes recentes apostam em conflitos ou nos afetos como sa�das poss�veis para os impasses do pa�s


04/03/2022 04:00 - atualizado 04/03/2022 00:42

Cena do filme 'Bacurau'
'Bacurau': mais fortes s�o os poderes da bala e do fac�o (foto: Vitrine Filmes/divulga��o)

O cinema pode ser sin�nimo de divers�o e escapismo – os bilh�es arrecadados pelas superprodu��es da Marvel comprovam a face mais lucrativa do neg�cio audiovisual. Mas o cinema tamb�m inquieta e provoca. Mesmo sob o impacto das transforma��es ocorridas com a massifica��o do streaming, filmes podem nos fazer enxergar as tens�es da sociedade. E, por meio da releitura de g�neros cinematogr�ficos estabelecidos inicialmente no exterior, apontar as contradi��es e impasses de um pa�s.

Foi o que conseguiram, mais recentemente, realizadores de diferentes origens e propostas, ainda que n�o tenham atingido um p�blico t�o expressivo como alguns t�tulos da chamada “gera��o da retomada”, que reativou nos anos 1990 a produ��o audiovisual brasileira.  

Leia: 
Walter Salles: 'A sensa��o � de ex�lio em nosso pr�prio pa�s'


Um dos principais nomes da retomada, Walter Salles dirigiu dois longas-metragens (“Terra estrangeira” com Daniela Thomas, e “Central do Brasil”) que, mesmo duas d�cadas depois do lan�amento, ainda s�o capazes de espelhar a inquieta��o de muitos brasileiros, insatisfeitos com os rumos do pa�s e que t�m condi��es de especular sobre duas possibilidades. Sair do Brasil ou mergulhar no Brasil?

N�o � fun��o do cinema oferecer respostas, mas � poss�vel agu�ar esses questionamentos. Produ��es premiadas em festivais internacionais e direcionadas para o grande p�blico retomam as perguntas dos filmes de Salles e indicam duas formas de tentativa de supera��o de impasses em um pa�s despeda�ado: intensifica��o de conflitos (“Bacurau”), exacerba��o de afetos (“Deserto particular”). 

Em “A utopia no cinema brasileiro: matrizes, nostalgia, distopias” (Cosac Naify, 2006), L�cia Nagib destaca a inten��o de Salles e Thomas de fazerem “uma viagem desiludida � terra estrangeira” no primeiro longa-metragem da dupla (eles voltariam a trabalhar juntos em “Linha de passe”, que n�o provocou o mesmo impacto). “Havia a saudade da utopia de um Brasil paradis�aco que, de fato, existiu para uma classe m�dia degradada”, lembra a professora e ensa�sta, referindo-se ao ponto de partida do filme: o �xodo de brasileiros para Portugal ap�s o confisco determinado pelo plano econ�mico da ministra Z�lia Cardoso de Mello no in�cio do governo de Fernando Collor, em 1990.

As cicatrizes deixadas pela necessidade de mudan�a para uma na��o europeia apareceram tamb�m em outros dois longas que fizeram carreira internacional. Sob o �ngulo da necessidade da afirma��o de identidade, em “Praia do Futuro” (2014), de Karim �inouz; do ponto de vista da imin�ncia do desalinhamento da c�lula familiar em “Benzinho” (2018), de Gustavo Pizzi. Em ambos, a reconstru��o e a consolida��o de la�os de fam�lia s�o o que resta para personagens impelidos a deixar o pa�s.

Cena do filme 'Eduardo e Mônica'
'Eduardo e M�nica': supera��o de diferen�as pela empatia (foto: Paris Filmes/divulga��o)

Sem pressa e sem paternalismo

Para os milh�es de brasileiros a quem n�o � oferecida a chance de procurar no exterior uma vida menos ordin�ria, como aos personagens de “Terra estrangeira”, “Praia do Futuro” e “Benzinho”, a sobreviv�ncia � uma luta di�ria, que pode ser travada em meio a afetos conflitantes envolvendo at� a disputa pelo sentimento de maternidade (“Que horas ela volta?”, de 2015, de Anna Muylaert) ou sem catarse, com suor na testa e p�s fincados no ch�o. � o que ocorre com a personagem Juliana, interpretada de forma acertadamente contida pela extraordin�ria Grace Pass� no igualmente extraordin�rio “Temporada” (2018), de Andr� Novais Oliveira, vencedor do Festival de Bras�lia de 2018.

Assim como no ganhador do Candango de melhor filme do ano seguinte, “A febre”, de Maya Da-Rin, n�o h� a espetaculariza��o do melodrama. Prevalece a observa��o atenta, sem pressa e sem sentimentalismo, de transforma��es quase impercept�veis ocorridas na vida de uma agente de sa�de depois que ela sai de sua cidade natal, Ita�na, para Contagem, na grande Belo Horizonte.

“N�o � um filme de ‘den�ncia’, embora toda a brutalidade de uma sociedade injusta transpare�a a cada cena: temas como o racismo, a opress�o social e o desprezo ao meio ambiente aparecem de maneira ao mesmo tempo sutil e contundente”, observa Jos� Geraldo Couto na cr�tica “A poesia das pequenas coisas”, publicada no blog do Instituto Moreira Salles (IMS). “O interesse maior do diretor parece ser o de mostrar aquilo que resiste e sobrevive � desumaniza��o e � viol�ncia circundantes. Seu olhar mais atento � para a sagacidade e a coragem com que cada um ‘se vira’, d� a volta por cima, criando uma rede de solidariedade e afeto”, complementa o cr�tico. 

Cena do filme 'Benzinho'
'Benzinho': n�cleo familiar abalado pelo �xodo iminente (foto: Riofilme/divulga��o)

A utopia no sert�o

Se a protagonista de “Temporada” n�o precisou sair de Minas Gerais para passar por uma transforma��o, em outras ocasi�es o cinema nacional imp�s um deslocamento maior para se obter o efeito dram�tico pretendido. Foi assim o caminho tra�ado pelo roteiro de Jo�o Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein para os personagens de “Central do Brasil”, vencedor do Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim de 1998. Em seu livro, L�cia Nagib destaca “Central” entre os filmes que buscam a utopia no sert�o do Nordeste.

“� o ep�tome da redescoberta apaixonada do Brasil, com a nostalgia rom�ntica que sai de uma p�tria indefinida para a euforia da p�tria reencontrada”, analisa Nagib, lembrando que a narrativa se desloca do universo moderno e repleto de amea�as da metr�pole carioca para o “isolamento seguro e confort�vel do Brasil arcaico, perfazendo assim o movimento contr�rio dos migrantes brasileiros”. 

N�o h� nada seguro ou confort�vel no povoado nordestino de Bacurau, t�tulo do mais provocativo longa-metragem de Kleber Mendon�a Filho. Muito pelo contr�rio. A morte ronda os personagens desde os primeiros minutos, com os caix�es arremessados na estrada que leva a m�dica Teresa (Barbara Colen) de volta � sua cidade, no interior pernambucano. No livro publicado pela Companhia das Letras com os roteiros dos tr�s longas-metragens que dirigiu em 10 anos, Mendon�a Filho reconhece que, do primeiro (“O som ao redor”) para o terceiro (“Bacurau”, com Juliano Dornelles), “houve uma subida de tom, que acompanhou as altera��es de rota observadas no Brasil na sua hist�ria recente”. Ele define os longas, escritos entre 2008 e 2018, como “retratos brasileiros” e “frutos inevit�veis e indissoci�veis do pa�s”. 

Se em “O som ao redor” a viol�ncia � latente, mas n�o explicitada, criando um clima de fogo brando chamado pelo autor de “tens�o difusa”, os embates em “Aquarius” s�o mais diretos – basta lembrar as discuss�es �speras de Clara (S�nia Braga) com Diego (Humberto Carr�o), playboy do setor imobili�rio. A temperatura ferve de vez em “Bacurau”. � pau, � pedra, � tiro na cara, � crian�a morta, � cabe�a cortada, � o fim do caminho da concilia��o. Exagero? Nem tanto. Basta lembrar que, no in�cio deste ano, um menino de 9 anos, filho do l�der de uma associa��o de agricultores, foi assassinado a tiros por homens encapuzados em uma regi�o de Pernambuco com hist�rico de violentas disputas agr�rias.

Em “Central do Brasil”, o sert�o era o lugar da concilia��o e do apaziguamento dos contr�rios, como define o cr�tico Luiz Zanin Oricchio no livro “Cinema de novo: um balan�o cr�tico da retomada” (Esta��o Liberdade, 2003); em “Bacurau”, o interior nordestino volta a ser o espa�o “da express�o m�xima da divis�o e da disson�ncia”, como fizeram Ruy Guerra (“Os fuzis”), Glauber Rocha (“Deus e o diabo na terra do sol”) e outros expoentes do cinema novo nos anos 1960. Os conflitos nacionais – recentes e seculares – explodem nas paredes das casas, da escola e do museu de Bacurau.

Coube aos diretores, por meio da uni�o dos c�digos do cinema de g�nero (fic��o cient�fica, horror, filme de guerra, faroeste) com elementos que misturam o passado e o presente (o cangaceiro queer Lunga, encarnado por Silvero Pereira), proporcionar, por meio da catarse, a possibilidade imagin�ria de um acerto de contas de milh�es de brasileiros com as desigualdades do pa�s. Vingan�a sangrenta, justi�a com as pr�prias m�os. Mais fortes s�o os poderes da bala e do fac�o.

Cena do filme 'Temporada'
'Temporada': a observa��o da luta di�ria pela sobreviv�ncia (foto: Netflix/divulga��o)

Deslocamento geogr�fico e �ntimo 

Integrante do elenco de “Bacurau”, Antonio Saboia � um dos protagonistas de “Deserto particular” (2021), o longa-metragem escrito por Aly Muritiba e Henrique dos Santos e indicado pelo Brasil para tentar uma vaga ao Oscar de melhor produ��o n�o falada em ingl�s. Se, no filme dos cineastas pernambucanos, Saboia interpreta um dos “sudestinos” que descobrem, tardia e tragicamente, que os invasores estrangeiros n�o o consideram como um semelhante, no longa de Muritiba ele d� vida a Daniel, personagem que, por meio de um deslocamento geogr�fico e �ntimo, consegue uma segunda chance.

Produto de uma fam�lia marcada pelo autoritarismo da figura paterna e afastado das ruas depois de cometer um ato de viol�ncia, o policial mora com o pai e a irm� em uma casa habitada por mon�logos e sil�ncios. Atra�do pelo desejo de se relacionar com Sara, que conhece apenas virtualmente e mora no interior da Bahia, Daniel deixa a frieza de Curitiba e atravessa o pa�s at� chegar � quentura baiana de Sobradinho, cidade nascida com a represa hom�nima, em 1973. J� no seu destino, ele tem a chance de repetir a trajet�ria de Dora de “Central do Brasil” e, mesmo com a “consci�ncia pessoal em crise”, como definiu Zanin Oricchio a respeito da personagem de Fernanda Montenegro, ressignificar seus afetos.

Para isso, por�m, ter� de se permitir uma transforma��o ao ser provocado pela exist�ncia de Robson (Pedro Fasanaro, impressionante), jovem carregador de frutas que, massacrado pela opress�o familiar e religiosa, planeja deixar a sua cidade. “� um filme de amor, feito em um pa�s conflagrado, dividido e pautado pelo discurso do �dio”, definiu o diretor baiano � �poca do discreto lan�amento nos cinemas, em novembro de 2021. 

O in�cio da concretiza��o da paix�o de Daniel por Sara em “Deserto particular” se d� ao som de can��o rom�ntica dos anos 1980 “Total eclipse of the heart”, na voz de Bonnie Tyler, uma das preferidas dos karaok�s. Curiosamente, o mesmo hit radiof�nico embala o momento decisivo do encanto despertado pelo adolescente Eduardo (Gabriel Leone, not�vel) em uma mulher mais velha, M�nica (Alice Braga, � vontade no papel), na feliz adapta��o de Ren� Sampaio para a m�sica de Renato Russo.

O cineasta, nascido em Bras�lia e radicado no Rio de Janeiro, havia levado �s telas outro sucesso da Legi�o Urbana, “Faroeste caboclo”. Mas o �xito de Ren� na com�dia rom�ntica “Eduardo e M�nica” � ainda maior – desta vez, ele nos oferece um espelho para enxergarmos n�o a doen�a, mas a possibilidade de cura.

“Faroeste caboclo” chegou aos cinemas em 2013, pouco antes da eclos�o das manifesta��es que levaram milh�es de pessoas �s ruas para protestar contra a classe pol�tica. Era um pa�s eri�ado, aceso, altamente inflam�vel. Naquele cen�rio, tornava-se imposs�vel o apaziguamento – tamb�m invi�vel para Jo�o de Santo Cristo (Fabr�cio Boliveira, inesquec�vel), o homem que se deslocou da Bahia para Bras�lia porque “queria falar com o presidente pra ajudar toda essa gente que s� faz sofrer”.

Santo Cristo � v�tima de discrimina��o “por sua classe e sua cor”, mas tamb�m � alvo porque sabia dan�ar “com �dio de verdade”, como diz a letra de outra m�sica da Legi�o, citada na cena luminosa com o encontro dos protagonistas dos dois filmes. 

Em “Eduardo e M�nica”, o clima � bem diferente da tens�o social e racial de “Faroeste”. Os dois jovens brancos, de classe m�dia, podem brincar na c�pula do Congresso Nacional sem ser importunados por militares ou seguran�as – como, diga-se de passagem, foi poss�vel at� os anos 1980. Manifesta��o pol�tica, para o imaturo Eduardo, desperta somente estranhamento: “Esse povo n�o trabalha?”, questiona o adolescente, ao se deparar com um protesto no Parque da Cidade.

“D� trabalho consertar o Brasil”, rebate a intelectualizada M�nica, nas palavras escritas pelo roteirista Matheus Souza com as colabora��es de Cl�udia Souto, Jessica Candal Sato e Michele Franz. Tendo apenas a diferen�a de idade como barreira, os dois podem deixar a porta aberta para a paix�o como ela deve ser vivida. Exercitam a empatia, buscam um no outro, como se n�o houvesse amanh�.

“Eu quero que voc� se coloque no meu lugar, tenta imaginar como se fosse eu”, diz o secundarista ao pedir uma chance � estudante de medicina. No Brasil enfermo e exausto, hist�rias de supera��o de diferen�as por meio de sorrisos, abra�os e beijos, como “Deserto particular” e “Eduardo e M�nica”, s�o um b�lsamo para as retinas. Se a fic��o conseguiu antever a realidade e viveremos em um pa�s menos cindido e mais afetuoso, ao menos capaz de oferecer melhores condi��es de trabalho e de vida a brasileiros como os personagens de “Temporada”, “Que horas ela volta?” e “A febre”, somente os dias – e, talvez, as urnas – ir�o nos trazer a resposta. 

SAIBA ONDE ASSISTIR A FILMES QUE INTERPRETAM O BRASIL

“A febre”
Netflix

“Aquarius”
“Bacurau”
 
“Benzinho” 
LookeTelecineGloboplay 
 
“Central do Brasil”
 
“Deserto particular”
N�o est� dispon�vel nas plataformas de streaming. Saiu de cartaz em BH.
 
“Eduardo e M�nica” 
Em BH, est� em cartaz no Cineart Shopping Del Rey, Una Cine Belas Artes, Cineart Ponteio Lar Shopping e Cineart Boulevard Shopping. Recomenda-se conferir previamente a programa��o das salas.

“Faroeste caboclo”
Globoplay

“O som ao redor”
NetflixTelecineGloboplay

“Praia do Futuro”
“Que horas ela volta?”
“Temporada” 




 



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