Theo Angelopoulos (1935-2012): �tica e est�tica
(foto: fotos: divulga��o)
A filmografia do cineasta grego Theo Angelopoulos, um dos mais celebrados do cinema europeu p�s-1968, � marcada pela tessitura m�tica da Gr�cia, ber�o da civiliza��o ocidental, pela sua enorme heran�a art�stica, hist�rica, cultural e pela hist�ria contempor�nea. O cineasta morreu em janeiro de 2012, aos 76 anos, atropelado por um motociclista em Pireu, nos arredores da capital grega, onde buscava locais para seu novo filme, que pretenderia discutir as consequ�ncias da crise europeia no pa�s.
Angelopoulos deixou importante legado no cinema ao realizar um di�logo com a mem�ria, que, no campo da linguagem cinematogr�fica, est� representada pela utiliza��o de enquadramentos, longos e silenciosos planos, abertos ou m�dios e planos sequenciais, de modo a recortar as cenas em pequenas unidades, quase aut�nomas, com extremo rigor e sensibilidade.
O cineasta realizou 15 longas-metragens e, em seus filmes, � poss�vel identificar aspectos recorrentes, como viagem, hist�ria, mem�ria e testemunho, sobretudo a partir de “Viagem a C�tera” (1984) e nos filmes que se sucedem, como “Paisagem na neblina” (1988), “Um olhar a cada dia” (1995), “A eternidade e um dia” (1998), “O passo suspenso da cegonha” (1991) e “A poeira do tempo” (2009).
Obras marcadas por tem�ticas de forte dimens�o dram�tica, �tica e humanista, por impasses hist�ricos, neblina, fronteiras, deslocamentos e abordagens subjetivas, bem como alegorias, refer�ncias mitol�gicas e desilus�es acerca da civiliza��o moderna. Filmes que guardam ecos do passado e estilha�os do presente.
Em “Paisagem na neblina”, os irm�os Voula, de 11 anos, e Alexander, de 6, saem da casa materna, na Gr�cia, � procura do pai desconhecido, que supostamente vive na Alemanha. Juntos, lan�am-se em uma jornada cheia de riscos, contato com o obscuro e perda da inoc�ncia, atravessada por err�ncia e por desterritorializa��o – vista aqui n�o s� como deslocamento de espa�o geogr�fico, mas como territ�rio em sua vers�o existencial. Vida que � feita em tr�nsito, na fronteira, em meio � neblina.
A narrativa � marcada pela trag�dia, e isso se materializa no ofuscamento das imagens em camadas de neblina, no desamparo e na brutalidade do estupro sofrido por Voula. A mem�ria do pai ausente � o fio condutor da jornada empreendida, uma viagem em busca de um passado que d� sentido ao presente. Mesmo estando frente ao mundo hostil e violento, os irm�os prosseguem o percurso em meio ao sonho e ao desejo pelo reencontro. A carta imagin�ria, escrita pelo pequeno Alexander, � um dos momentos mais ternos do filme: “Estamos viajando, soprados como folhas ao vento. Um mundo estranho. Palavras e gestos que n�o entendemos. E a noite nos assusta, mas estamos felizes e vamos em frente.”
Um poema cinematogr�fico. Assim pode ser definido o filme “A eternidade e um dia”, que condensa, em duas horas, a vida de Alexander, consagrado poeta e escritor grego, paciente terminal que luta contra a morte. Do encontro com o menino que foge da pol�cia grega e de traficantes de crian�as para retornar ao seu pa�s de origem, Alb�nia, nasce uma amizade marcada pela urg�ncia do tempo.
Vencedor da Palma de Ouro em Cannes de 1998, o filme trabalha o tempo, a ternura, a alteridade e a descoberta do amor n�o s� na breve rela��o com o garoto, mas nas cartas deixadas pela falecida mulher. Uma obra extremamente sens�vel na qual vida, mem�ria, neblina e morte revelam camadas temporais.
A eternidade e um dia
Paisagem na neblina
Os filmes de Angelopoulos s�o obras marcadas por tem�ticas de forte dimens�o dram�tica, �tica e humanista, por impasses hist�ricos, neblina, fronteiras, deslocamentos e abordagens subjetivas, bem como alegorias, refer�ncias mitol�gicas e desilus�es acerca da civiliza��o moderna: guardam ecos do passado e estilha�os do presente
Um cinema err�tico
“Le regard d’Ulisses”, que no Brasil recebeu o nome de “Um olhar a cada dia”, tem como protagonista A., um cineasta grego que partiu para o ex�lio nos EUA, l� permanecendo por 35 anos. Angelopoulos retoma a “Odisseia”, um dos principais poemas �picos da Gr�cia Antiga atribu�dos a Homero, para narrar a trajet�ria de Ulisses na contemporaneidade, situando-a no conflito na primeira metade dos anos de 1990 do s�culo 20. No filme, a “Odisseia” funciona como refer�ncia principal, mas v�rias outras s�o utilizadas pelo cineasta, como o mito de Orfeu, frases de Plat�o, fragmentos de “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, e versos dos poetas T. S. Eliot e Rainer Maria Rilke.
O cineasta refaz a trajet�ria dos irm�os Manakis, pioneiros nos primeiros registros cinematogr�ficos dos B�lc�s, apresentando um olhar contempor�neo sobre a Gr�cia.N�o por acaso, o filme se inicia com a voz em off que questiona: “Mas � verdade? � o primeiro olhar? O primeiro filme?”. O caminho que esse olhar percorrer� � o da viagem, da “Odisseia” de Ulisses ou de A.
A busca dos tr�s rolos de filme dos irm�os Manakis – jamais revelados at� ent�o – tem in�cio em Florina, cidade grega, e transforma-se no pretexto que o conduz em sua viagem existencial e ao seu pr�prio passado, em meio aos conflitos de um presente dilacerado. Mas o que atravessa “Um olhar a cada dia”? Seria poss�vel o reencontro de um olhar primeiro e transcendente? De um olhar que ultrapassasse as imagens contempor�neas e que permitisse ir al�m, algo como recuperar nossa capacidade de enxergar o invis�vel? O filme tem como ep�grafe a seguinte frase de Plat�o: “Se a alma quer se reconhecer/ Deve-se olhar dentro de uma alma”.
A viagem tem seu ponto final em Sarajevo, em plena guerra, onde est�o os tr�s rolos de filme. N�o por acaso, a narrativa � conduzida para esse cen�rio de barb�rie e de morte. � l� que Ulisses ou A. vai encontrar os filmes perdidos, guardados com enorme zelo por Ivo Levi, diretor da cinemateca da cidade, um colecionador de imagens desaparecidas.
Mas � em meio � neblina, presente no filme, um momento de tr�gua e durante um passeio no rio, que toda a fam�lia de Ivo � executada, sob o olhar incr�dulo de Ulisses. N�o se v� nada nesse momento, apenas a tela branca ou sob efeito da neblina.
Ver ou rever os filmes de Angelopoulos � fazer um mergulho nas muitas possibilidades de reflex�es acerca da humanidade apresentadas pelo cineasta em suas obras que tanto dialogam, dialeticamente, com a mem�ria, o passado, o presente e com as quest�es existenciais. Na analogia dos filmes perdidos e na busca para encontr�-los, um outro sentido para a exist�ncia humana. Brilhante esfor�o para tratar temas t�o caros e delicados.
*Mestre em artes visuais pela Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), M�rcia Mendon�a � professora, pesquisadora e jornalista.