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Longas finais de Godard refletem sobre crise est�tica e moral do cinema

Em seus �ltimos filmes, Godard circula pelo vazio entre ideia e met�fora, expondo os modos como o empobrecimento da linguagem esvazia a arte cinematogr�fica


23/09/2022 04:00 - atualizado 22/09/2022 23:11

Jean-Luc Godard
"Em seus longas finais, 'Filme socialismo', 'Adeus � linguagem' e 'Imagem e palavra', Godard circula pelo vazio entre ideia e met�fora, expondo os modos como o empobrecimento da linguagem � um �ndice da nossa rela��o arruinada com o tempo, a hist�ria, a mem�ria" (foto: Miguel MEDINA / AFP)

Ap�s a morte de Jean-Luc Godard, n�o foi dif�cil perceber que muitas das men��es e homenagens que circularam pela internet diziam respeito � primeira fase da carreira do cineasta franco-su��o, entre a irrup��o da Nouvelle Vague em 1959 e os estertores da d�cada seguinte, quando teve in�cio o chamado “per�odo revolucion�rio” de sua filmografia. Isso � compreens�vel. Filmes como “Acossado”, “Bande � part”, “O desprezo” e “Pierrot le fou” ainda exalam inven��o, frescor, humor e beleza. E conv�m mencionar que a fase seguinte (1968-79), n�o obstante acertos eventuais, � de uma aridez e de um tom panflet�rio n�o raro insuport�veis — pode-se afirmar que, por um tempo, Godard foi mais uma v�tima do mao�smo, na medida em que se prostituiu e canibalizou o pr�prio cinema em nome de um ideal criminoso.

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� poss�vel enxergar os anos 1980 como um per�odo de reavalia��o e “ressituamento” para ele. H� um retorno a certos patamares narrativos amistosos, mas sem prescindir do antinaturalismo, das sobreposi��es e da metalinguagem. “Paix�o”, “Carmen” e “Je vous salue, Marie” talvez sejam os melhores filmes dessa fase. Tamb�m s�o dessa �poca os primeiros cap�tulos da(s) “Histoire(s) du cin�ma”, produ��es de car�ter ensa�stico marcadas por associa��es visuais e verbais, que procuram refletir sobre a arte cinematogr�fica e suas rela��es com a hist�ria do s�culo 20. � interessante notar como certos expedientes utilizados nessa miniss�rie de oito cap�tulos, realizada entre 1989 e 1999, s�o integrados aos longas que Godard dirigiu no per�odo final da carreira, sobre o qual discorrerei a seguir.

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Talvez seja a fase mais rica do diretor. As discuss�es pol�ticas retornam com for�a aqui e ali, mas sem o panfletarismo de outrora. Vide, por exemplo, a maneira como a Guerra dos B�lc�s � enfocada em “Para sempre Mozart”. Temos, ali, duas jornadas: dos jovens que tentam chegar a Sarajevo para encenar uma pe�a de Musset e do velho cineasta que precisa lidar com os percal�os da profiss�o. H� v�rias mortes em curso, incluindo a do pr�prio cinema (ou de um tipo de cinema), mas todas s�o desespetacularizadas — assim como s�o desespetacularizadas a pr�pria guerra e a sua representa��o. A crise humanista ecoa nessa crise representacional, e Godard anula qualquer autocomisera��o, por um lado, e qualquer envolvimento emocional com a viol�ncia, por outro. Mozart tem “notas demais” para os ouvidos contempor�neos, diz algu�m a certa altura. E, assim, caminhamos surdos para o fim.

 

E � a Sarajevo que Godard retorna em “Nossa m�sica” (2004), bel�ssima reflex�o levinasiana estruturada em tr�s passeios dantescos: “Inferno”, “Purgat�rio” e “Para�so”. Na primeira parte, imagens de guerras e viol�ncias s�o usadas de maneira bem similar ao das “Histoire(s) du cin�ma”. Na segunda, “Purgat�rio”, um encontro de escritores (que inclui Juan Goytisolo e Mahmoud Darwish) na Sarajevo parcialmente reconstru�da do p�s-guerra serve de pretexto para Godard esmiu�ar as possibilidades de di�logo em um mundo conflagrado. A reconstru��o da ponte em Mostar, erguida no s�culo 16 e destru�da em 1993, � um s�mbolo dessas possibilidades reabertas. Assim, no “Para�so”, deparamo-nos com uma mulher-bomba que abdica de levar consigo vidas alheias. A viol�ncia direcionada unicamente a si ressignifica muito da viol�ncia perpetrada por outros contra outrem. A autoanula��o destr�i um mundo, mas n�o o mundo inteiro, al�m de dizer algo sobre este �ltimo — ser� que Godard pensava nisso ao optar pelo suic�dio assistido?.

 

Em seus longas finais, “Filme socialismo” (2010), “Adeus � linguagem” (2014) e “Imagem e palavra” (2018), Godard circula pelo vazio entre ideia e met�fora, expondo os modos como o empobrecimento da linguagem � um �ndice da nossa rela��o arruinada com o tempo, a hist�ria, a mem�ria. Perdemos a dimens�o interior do tempo, anterior a qualquer compreens�o hist�rica (e condi��o de possibilidade da mesma), dimens�o que nos constitui e nos situa. Tal perda nos agrilhoa nos calabou�os de um presente em chamas eternas, gratuito, dessignificado. H� um esvaziamento ontol�gico, e nos tornamos incapazes de elaborar met�foras que esclare�am algo acerca da nossa pr�pria condi��o. A ideia n�o encontra representa��o. A incapacidade de referir e metaforizar acelera o esvaziamento. A inoper�ncia da linguagem redunda em viol�ncia — lembremos dos jovens de “Para sempre Mozart”, que v�o a Sarajevo a fim de encenar uma pe�a e terminam cavando as pr�prias covas.

 

 

As doen�as da Europa

 

“Filme socialismo” dirige-se � “pobre Europa” e observa o brutal degringolar do continente, hoje t�o adoecido e governado por canalhas que, diferentemente dos de outrora, “podem ser sinceros”. A certa altura, Godard recupera imageticamente dois momentos terr�veis do s�culo 20: o massacre nas escadarias de Odessa (imortalizado por Eisenstein em “O encoura�ado Potemkin”) e a ocupa��o nazista. Com sua capacidade inigual�vel de fazer colagens e estabelecer sentidos, Godard mostra que a hist�ria europeia � o desenrolar de uma mesma e intermin�vel crise.

 

“Adeus � linguagem”, por sua vez, recorre a Rilke e “literaliza” alguns dos versos mais belos da oitava das “Elegias de Du�no” (aqui na tradu��o de Dora Ferreira da Silva, Ed. Biblioteca Azul): “Com todos os seus olhos, a criatura v� o Aberto. / Nosso olhar, por�m, foi revertido e como armadilha / se oculta em torno do livre caminho. / (…) H� no entanto / esses olhos calmos que o animal levanta, / atravessando-nos com seu mudo olhar. / A isto se chama destino: estar em face / do mundo, eternamente em face. / (…) / E ele tudo v�, puro e inconsciente de si, onde / n�s vemos futuro, em tudo se v� / e salvo para sempre”. H� uma refer�ncia verbal e outra visual (na figura de um c�o) aos versos. Um casal se encontra e se desencontra, enquanto as esta��es passam e o tal cachorro (“puro e inconsciente de si”) circula, livre inclusive do tempo. O casal se ausenta, antepondo a linguagem ao corpo. N�o disp�em da linguagem, mas s�o dispostos por ela. O c�o est� a salvo de tudo isso; as pessoas “est�o nuas”, coisa que ele naturalmente “�”. Ele est� “em face do mundo”; o homem e a mulher, infensos ao mundo.

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Em vista disso, com seus olhares “revertidos”, eles se debru�am sobre a estrutura intrinsecamente ruidosa da realidade humana. Digressionam sobre “a segunda vit�ria de Hitler” e o triunfo hodierno da biopol�tica (o termo foulcaultiano n�o � usado por Godard). E, ao digressionar, pelo que dizem e n�o, explicitam o esvaziamento da linguagem por si mesma (da� o “adeus”), tornada um c�digo ins�pido que, em nosso cotidiano, no m�ximo sinaliza a impossibilidade de qualquer comunica��o real.

 

E chegamos a “Imagem e palavra”. Passagens de “Histoire(s) du cinema” s�o reaproveitadas. Muda, entretanto, o sentido: se naquele projeto havia (tamb�m) a preocupa��o de ressaltar certa pluralidade e erigir uma rica “contra-hist�ria” do cinema, agora esse friccionar serve mais para explicitar a crise est�tica e moral de qualquer possibilidade de representa��o. O termo “crise”, como nos lembrou M�rio Ferreira dos Santos, remete � separa��o e ao abismo. Assim, a voz de Godard ecoa das profundezas do nosso presente, e n�o tem mais o tom convocat�rio de uma (re)descoberta.

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Embora o cineasta n�o invista em um tatear de cunho ontol�gico, a crise que ele explicita, esse abismar-se no abismo, tamb�m aponta para aquela crise maior ou anterior, referida em “Adeus � linguagem”. “Imagem e palavra” revira, desmembra e exibe o cad�ver do cinema enquanto “locus” humanista de representa��o da realidade. Se antes tivemos “Histoire(s) du cinema”, agora temos “Histoire(s) d’�chec”: hist�ria(s) do malogro, do fracasso.

 

O fracasso representacional do cinema reflete, assim, o fracasso do nosso olhar, o qual �, tamb�m, ind�cio do nosso fracasso civilizacional. A “realidade” ri dos nossos esfor�os de abarc�-la — observe como Godard �s vezes mistura imagens violentas de filmes com flashes de massacres reais; e note como ambas as coisas possuem um incontorn�vel vigor est�tico, sobretudo quando justapostas dessa maneira. A permuta entre o “real” e o “ficcional” cria uma terceira e ruidosa ordem de imagens, no intervalo entre uma coisa e outra. A crise est� no intervalo. O abismo � uma tal interdi��o, e fala por meio desse aparente descarrilhar de planos e sons que se digladiam para alcan�ar sentidos ulteriores, imprevis�veis, e nos pegar pelo contrap�. De novo, e sempre, acompanhamos o arrastar do cad�ver humanista. Frente ao esgar�amento e �s cat�strofes que testemunhamos, nosso vocabul�rio se mostra cada vez mais insuficiente, e as imagens, tornadas gratuitas, adquirem o teor pornogr�fico que, longe de dar conta do mundo, acabam por substitu�-lo por um falsear grotesco.

 

A capacidade de refletir acerca do “estado preciso de nossa mis�ria” era o que tornava Godard inigual�vel e insubstitu�vel. Com a sua morte, estamos mais miser�veis do que nunca.

 

 

* Andr� de Leones � autor do romance “Eufrates” (Jos� Olympio), entre outros 


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