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Respons�vel pela mais recente tradu��o em ingl�s de “Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas”, Flora Thomson-DeVeaux tem PhD em Portugu�s e Estudos Brasileiros pela Brown University. Pesquisadora conhecida tamb�m pela produ��o de podcasts como “Praia dos ossos”, da R�dio Novelo, ela chama “O turista aprendiz” de “pequena joia bruta” e lembra que, ap�s a leitura, os relatos grudaram nela “como um carrapato”. “Me identifico muito com o livro, tem uma sinceridade profundamente nele”, acredita.
“N�o considero nada praticamente intraduz�vel (haja vista a tradu��o magn�fica vindoura de ‘Grande Sert�o: Veredas’, da Alison Entrekin), porque sempre h� a possibilidade de uma transcria��o mais ou menos radical em rela��o � obra original”, avalia Flora Thomson-DeVeaux ao ser questionada sobre os desafios da tradu��o publicada pela Penguin Classics. “O que dificulta, muitas vezes, � a falta de contexto para a obra ser compreendida pelo p�blico-alvo.” Ela tamb�m revelou os t�tulos de obras brasileiras que teria interesse em traduzir. “Tem alguns livros estranhos na minha prateleira mental que penso com carinho – entre eles ‘Armadilha para Lamartine’, de Carlos e Carlos Sussekind, e ‘Os ratos’, de Dyon�lio Machado –, mas n�o tenho certeza dos meus pr�ximos passos. Tenho sempre a tenta��o de cair novamente nos bra�os do Machado”, conta.
A seguir, a entrevista de Flora Thomson-DeVeaux ao Pensar sobre a tradu��o de “O turista aprendiz” (o original em portugu�s est� dispon�vel no site do Iphan).
O que a levou a traduzir M�rio de Andrade e, na obra dele, o que a fez escolher “O turista aprendiz”?
A qu�mica que me leva a querer traduzir uma obra � um pouco misteriosa para mim at� hoje; � quase como a qu�mica que a gente sente ou n�o com uma pessoa, o famoso “bateu o santo”. � uma comich�o que vem quando voc� l�, uma sensa��o de ‘nossa, como ser� que eu traduziria isso?’ que n�o tem necessariamente a ver com estrat�gia editorial ou alguma afinidade mais �bvia, mas para mim � muito dif�cil de resistir.
No caso, n�o foi exatamente uma decis�o calculada essa de traduzir M�rio e, mais especificamente, “O turista aprendiz”. Depois de “Br�s Cubas”, eu quis traduzir um livro que nunca tivesse sido traduzido; e “O turista” foi um livro que grudou em mim que nem carrapato. Li pela primeira vez na �poca da Flip que homenageava ele e, desde ent�o, nunca mais consegui tirar “O turista” da minha cabe�a. O livro � uma pequena joia bruta – e acredito que, por isso, M�rio nunca chegou a destruir o manuscrito, como ele fez com tantos outros; mas ele tamb�m n�o conseguiu public�-lo em vida. � um livro que o incomodava, e � um livro que incomoda quem l�, no melhor sentido: um registro de paisagens estonteantes e de expectativas frustradas, com arroubos de �xtase em meio a longos estir�es de t�dio sarc�stico.
M�rio se define na introdu��o como um “antiviajante”. Qual a diferen�a de “O turista aprendiz” para outros relatos de viagem?
Eu abro o meu pref�cio brincando com Tolst�i, dizendo que todos os viajantes felizes se parecem, mas cada viajante infeliz � infeliz � sua maneira. M�rio realmente n�o � um viajante tranquilo; ele come�a a viagem arrependido de estar saindo de casa, leva um balde de �gua fria logo na chegada ao Rio de Janeiro, ao constatar que a entourage que ele imaginava tinha evaporado, e termina a viagem brincando que vai se trancar em casa e jogar a chave fora. E o resultado disso � que “O turista aprendiz” � a cr�nica de uma viagem feita, e tamb�m a cr�nica de outras tantas viagens n�o feitas – a viagem imaginada antes de sair de S�o Paulo, a viagem dos devaneios no t�dio lento dos trechos mon�tonos do rio, as viagens que M�rio passa a inventar depois de constatar o qu�o limitado ele vai ser enquanto membro da comitiva da Dona Ol�via.
“O turista” carrega uma ang�stia constante, uma dificuldade imensa do M�rio de se entregar ao momento e se sentir � vontade fora de lugar, e acredito que foi essa ang�stia, essa tens�o permanente, que fez com que o livro ganhasse um lugar cativo na minha prateleira. Eu me identifico muito com o livro. Tem uma sinceridade profundamente dolorida nele.
Quais foram os maiores desafios ao traduzir para o ingl�s? E qual a parte dos relatos mais a impressionou?
Os maiores desafios nesta obra tinham a ver com seu aspecto polif�nico e etnogr�fico. M�rio viaja com os olhos e ouvidos abertos, catando falas no ar como quem captura borboletas, e trazendo para o texto. O resultado � necessariamente fragmentado, imposs�vel de reconstituir com alguma fidelidade. Quando traduzi “Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas”, a minha maior dificuldade no come�o era estabelecer justamente a voz do narrador defunto; uma vez que eu conseguia “ouvir” Br�s Cubas, tudo come�ou a fluir melhor. Com “O turista”, n�o � uma voz, s�o muitas – e n�o s�o s� as vozes que M�rio registra a seu redor. Ele tamb�m vai alternando entre personalidades, uma mais �ntima, outra mais po�tica, um tom pseudo-antropol�gico pomposo, outro mais folcl�rico...
S�o muitos momentos no texto que me marcaram, e foi um deleite puro traduzir “O turista” enquanto eu estava basicamente presa em casa por motivos pand�micos. Apesar de toda a professada dificuldade em capturar aquilo que estava vendo, M�rio consegue cristalizar as paisagens mais espantosas: uma multid�o inimagin�vel de p�ssaros em revoada, a metamorfose de um amanhecer amaz�nico, o bote magn�fico de um jacar�-a�u abocanhando um pato.
Qual o Brasil que M�rio de Andrade mostra aos brasileiros - e, agora, aos estrangeiros - com “O turista aprendiz”?
O Brasil do livro � um Brasil que n�o se reconhece, um Brasil cindido. A viagem que M�rio faz chega a colocar em quest�o qualquer no��o de pa�s. O que une a viv�ncia urbana paulistana dele � experi�ncia de vida do rapaz em Barreira do Tapar� que carrega lenha no vapor e quer aprender a ler “mais que dinheiro”? Tem uma cena emblem�tica em Tef� em que os viajantes assinam um livro de visitas, indicando a origem de cada um; tem ga�cho, paulista, e amazonense, e o M�rio � o �nico que assina simplesmente como “brasileiro” – mas essa declara��o est� constantemente sendo colocada em xeque. Para o p�blico estrangeiro, o livro � uma janela para a Amaz�nia de 1927, emoldurada por uma perspectiva muito diferente da vasta maioria dos relatos amaz�nicos: temos um narrador que ao mesmo tempo se identifica e n�o se encontra ali.
“The apprentice tourist”
- M�rio de Andrade
- Tradu��o para o ingl�s:
- Flora Thomson-DeVeaux
- Penguin Classics
- 205 p�ginas
Nova tradu��o de “Macuna�ma”
A obra mais conhecida de M�rio de Andrade ganhou nova tradu��o em ingl�s. “Macuna�ma: the hero with no character” foi publicado pela editora New Directions, nos Estados Unidos, e pela Fitzcarraldo, no Reino Unido. A tradu��o � de Katrina Dodson, a mesma que levou para o ingl�s os “Contos completos” de Clarice Lispector. “Macuna�ma” � um romance, ou uma ‘raps�dia’ como Andrade o chamava, que revela uma linguagem experimental capaz de misturar agressivamente o portugu�s coloquial com o tupi e outras l�nguas ind�genas ao lado de palavras com ra�zes africanas, refletindo a colis�o sincr�tica de comunidades do pa�s”, explica Katrina Dodson, em seu site.