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Estado de Minas COMPORTAMENTO

Autores alertam para a tirania da felicidade, do prazer e do pensamento positivo

Ideia de que 'ser feliz depende apenas de voc�' gera s�rios custos para a sa�de mental


14/05/2022 15:58 - atualizado 14/05/2022 18:52

Menina de costas desenha rosto feliz na parede
A ideia de que ser feliz � uma responsabilidade individual foi incorporada por acad�micos, formadores de opini�o, economistas e pol�ticos, apontam autores (foto: Getty Images)

No filme Margin Call - O Dia Antes do Fim (EUA, 2011), um banco americano de investimentos demite 80% de seus empregados durante o colapso financeiro de 2008. O personagem de Kevin Spacey � o chefe do setor de risco da empresa e, logo ap�s os desligamentos, batendo palmas, ele dirige algumas palavras aos funcion�rios restantes:




"Voc�s ainda est�o aqui por uma raz�o. Oitenta por cento do nosso pessoal acaba de ser mandado para casa. Passamos a �ltima hora dizendo 'tchau'. Eram boas pessoas, e eram boas no que faziam, mas voc�s s�o melhores. Agora que elas foram embora, n�o vamos mais pensar nelas. Esta � a oportunidade de voc�s. (...) Tr�s em cada sete pessoas que estavam entre voc�s e o cargo dos seus chefes j� n�o trabalham mais aqui. Esta � sua chance."

Em outro filme, Amor sem escalas (EUA, 2009), o infort�nio da demiss�o � rapidamente convertido na oportunidade de buscar os pr�prios sonhos, conforme orienta��o dada pelo personagem de George Clooney, que viaja pelo mundo para dispensar pessoas.

LEIA TAMB�M: Busca por felicidade � ego�sta e gera culpa, diz autor de "A ditadura da felicidade" 

T�cnicas como as dos personagens "se tornaram �teis no mundo corporativo contempor�neo ao transferir o �nus da responsabilidade sobre a empresa para os assalariados e administrar estes em termos de sua felicidade pessoal", escrevem o psic�logo espanhol Edgar Cabanas e a soci�loga marroquina Eva Illouz no livro Happycracia: fabricando cidad�os felizes, que acaba de ser lan�ado no Brasil pela editora Ubu.

Na publica��o, os autores percorrem os rastros de perdas e mal-estar deixados pelo discurso que estabelece a felicidade individual como meta suprema de vida e destacam os efeitos colaterais em rela��o aos �mbitos pessoal, profissional e social.

No mercado de trabalho, a felicidade — at� ent�o um objetivo esperado a partir da atividade laboral — se tornou um requisito para a contrata��o, manuten��o e promo��o do cargo.

Assalariados felizes representam a garantia de que "trabalhar�o ao m�ximo, continuar�o motivados, sentir�o prazer pelo que fazem e aumentar�o a produtividade", exemplificam no livro.

Especialmente diante de adversidades, com a promo��o de atitudes como a resili�ncia e a autogest�o, caberia aos funcion�rios os custos psicol�gicos das fragilidades e instabilidades de uma empresa.


Retrato de Eva Illouz, que sorri timidamente
'Muitos governos est�o tentando substituir uma redistribui��o justa de recursos pela felicidade. Isso � algo que deve nos preocupar', diz Eva Illouz (foto: Divulga��o/Premier Parall�le)

Isso quer dizer que n�o importam as condi��es de trabalho, se s�o prec�rias ou exaustivas: a receita transmitida ao trabalhador � a de que com mais empenho, resili�ncia e positividade ele pode mudar sua realidade e se esbaldar no copo meio cheio. O copo vazio, indesejado, transparece problemas como o burnout, esgotamento f�sico e mental advindo da atividade profissional, e adoecimentos ps�quicos, como a depress�o.

Segundo Illouz e Cabanas, a influ�ncia da felicidade no ambiente corporativo n�o se deu por acaso e � encontrada tamb�m nas gest�es governamentais, com destaque para as adeptas do neoliberalismo.

� derivada do significativo impacto provocado pela psicologia positiva, apresentada no ano 2000 em um manifesto do psic�logo e ent�o presidente da Associa��o Americana de Psicologia Martin Seligman com o prop�sito de difundir uma ci�ncia focada nas emo��es positivas e na autodetermina��o como caminho para a felicidade.

A proposta, de acordo com os pesquisadores, foi acolhida n�o s� por acad�micos, pela imprensa, formadores de opini�o e o grande p�blico, como tamb�m por economistas e pol�ticos que viram na felicidade a chave para mensurar o sucesso de uma sociedade.

Metodologias foram criadas para quantificar crit�rios subjetivos como bem-estar, equil�brio e prazer, e �ndices de felicidade passaram a nortear pol�ticas p�blicas em v�rios pa�ses, em detrimento de a��es voltadas � distribui��o de renda e � promo��o de direitos.

Circo, em vez de p�o


Barra de pesquisa do Google com termo 'como ser feliz' e lista de outras perguntas que as pessoas costumam fazer, como 'O que é ser feliz de verdade?' e 'Por que não consigo ser feliz'
Buscas comuns no Google sobre felicidade (foto: Reprodu��o/Google)

"N�o h� nada de errado em buscar a felicidade. � de fato um direito fundamental. Os indiv�duos t�m o direito de definir por si mesmos o que os faz se sentir bem", argumenta Eva Illouz em entrevista � BBC News Brasil.

"Estudamos a psicologia positiva, que � uma distor��o muito espec�fica da ideia de felicidade, se tornou uma subdisciplina da economia e serve ao prop�sito de muitos pa�ses, democr�ticos e ditatoriais. Muitos governos est�o tentando substituir uma redistribui��o justa de recursos pela felicidade. Isso � algo que deve nos preocupar", complementa Illouz, que � diretora da Escola de Altos Estudos em Ci�ncias Sociais, na Fran�a.

"Se voc� mensura a felicidade e declara que este � o objetivo da pol�tica, acaba considerando melhor ter pa�ses profundamente desiguais do que sociedades mais igualit�rias, simplesmente porque as pessoas na �ndia declararam que s�o mais felizes do que as pessoas na Fran�a."

Na pr�tica, explica a soci�loga, a busca pela satisfa��o dos cidad�os substitui os princ�pios de liberdade e justi�a.

"Se eu criasse uma sociedade de jogos e assim fizesse as pessoas felizes, esta seria uma sociedade melhor?", questiona.

Em entrevista � BBC News Brasil, Illouz e Cabanas alertam que um dos problemas de apresentar a felicidade como o objetivo mais fundamental a ser perseguido na vida � negligenciar valores t�o importantes quanto, como igualdade, solidariedade ou justi�a.

"Ignora-se completamente o fato de que estes outros valores s�o necess�rios para ser feliz. Poucos fatores s�o t�o determinantes para a felicidade quanto a desigualdade, por exemplo."

"De fato, talvez nenhum outro fator sociol�gico esteja mais forte e claramente relacionado ao bem-estar e � sa�de mental do que a desigualdade. Os dados sobre isso s�o s�lidos e convincentes: as taxas de doen�a mental s�o inconfundivelmente mais altas em sociedades com maiores diferen�as de renda", explicam os pesquisadores.

Cada um por si

N�o � de hoje que a felicidade � um desejo t�o valioso. Mas seus par�metros mudaram e passaram a orbitar em torno do "eu", de forma que ser feliz passou a ser uma busca pessoal, associada � aquisi��o e ao desenvolvimento de tr�s caracter�sticas psicol�gicas: a autogest�o emocional, a autenticidade e o florescimento.

Para hospedar a felicidade dentro de si, h� uma ind�stria � disposi��o, na qual s�o ofertados cursos, servi�os terap�uticos e de coaches, treinamentos da for�a interior, literatura de autoajuda, palestras motivacionais, t�cnicas de medita��o, aplicativos medidores de bem-estar e aconselhamentos.

Edgar Cabanas, que � professor e pesquisador na Universidade Camilo Jos� Cela, em Madri, explica � BBC News Brasil que a no��o de felicidade analisada no livro estabelece que a vida boa n�o seria uma quest�o social, cultural e pol�tica, mas uma quest�o de escolha individual, responsabilidade pessoal e fatores subjetivos como atitude e for�a de vontade.


Edgar Cabanas em frente a mapa na rua, olhando para longe com sorriso contido
Para Cabanas, a promessa de que a felicidade depende de n�s � atraente, mas 'bastante m�ope e problem�tica' (foto: Divulga��o/Premier Parall�le)

Sob esta premissa, ao olharmos para nossa realidade, n�o surpreende que muitos considerem que as mais de 660 mil mortes por covid-19 no Brasil n�o devam ter impacto sobre a produtividade e a sociabilidade das pessoas. Basta buscarem uma sa�da dentro de si.

Segundo Cabanas, a promessa de que a felicidade depende de n�s e apenas de n�s � atraente, mas "bastante m�ope e problem�tica".

"Por um lado, negligencia o fato de que n�o podemos alcan�ar uma vida boa na aus�ncia de boas condi��es sociais e de vida: precariedade, desigualdade ou incerteza s�o determinantes para os indiv�duos serem felizes, mas esta no��o de felicidade nega esse fato."

Por outro lado, complementa o pesquisador, as pessoas se tornam injustamente respons�veis por sua felicidade e infelicidade.

"Quando as coisas d�o errado, isso acarreta um enorme fardo para os indiv�duos que sofrem n�o apenas por seu infort�nio, mas tamb�m pelo sentimento de culpa que vem com a ideia de que eles, e s� eles, s�o a causa de suas dores e problemas."

O estigma da insatisfa��o

A press�o por ser feliz exp�e ainda a confus�o entre sa�de e normalidade. Cabanas afirma que o discurso dominante da felicidade diz que apenas pessoas felizes s�o indiv�duos bem ajustados e funcionais, enquanto n�o ser ou n�o se sentir feliz o suficiente � um sinal de desajuste pessoal e sa�de (mental e f�sica) ruim.

"Isso n�o est� correto. Muitas pessoas s�o perfeitamente funcionais, saud�veis e n�o necessariamente afirmam ser felizes. Pelo contr�rio, muitas pessoas que afirmam ser felizes apresentam problemas de sa�de mental e desajuste social."

O psic�logo acrescenta que este segundo grupo de pessoas � especialmente problem�tico.

"Muitas pessoas se sentem pressionadas a se apresentarem mais felizes do que realmente s�o, mesmo em circunst�ncias adversas. Uma das consequ�ncias prejudiciais da tirania da felicidade e do pensamento positivo � que somos obrigados a dizer que nos sentimos melhor do que realmente nos sentimos porque a infelicidade ou o mal-estar tornaram-se sinais de uma psique defeituosa."

Desta forma, a infelicidade transformou-se em estigma social e, como tal, tende a ser vivenciada como algo vergonhoso para muitos.

"N�o h� nada de errado em n�o se sentir bem. � apenas normal. Como afirmamos no livro, o problema surge quando transformamos a felicidade no novo normal. Isso n�o � apenas irreal, mas tamb�m pode ser muito prejudicial."

A soci�loga Eva Illouz lembra que buscar a pr�pria felicidade a todo custo tem o pre�o de descuidar de outros aspectos da exist�ncia humana:

"Estar envolvido em iniciativas coletivas, ser sens�vel aos defeitos e falhas do mundo, n�o ver a insatisfa��o como uma patologia."

Viciados em bem-estar

Bem-estar e prazer, comumente associados �s f�rmulas de felicidade, s�o um convite irrecus�vel da nossa �poca. No entanto, estabelecem uma perigosa rela��o com os v�cios, pondera a psiquiatra americana Anna Lembke, autora de Na��o Dopamina: por que o excesso de prazer est� nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar, dispon�vel recentemente no Brasil pela editora Vest�gio.

No livro, a professora de psiquiatria e medicina da depend�ncia da Universidade de Stanford, nos EUA, examina os comportamentos compulsivos aparentemente inofensivos que se desenvolvem sob o pretexto de se sentir bem. O bem-estar sem limites � bastante custoso, ela adverte.

A dopamina, neurotransmissor comumente associado �s nossas atividades prazerosas, pode tamb�m protagonizar sofrimento, j� que prazer e dor s�o processados em regi�es sobrepostas do c�rebro que funcionam como uma balan�a.

Em outras palavras, quanto maior o deleite, maior o grau de padecimento necess�rio para o equil�brio cerebral.


Foto de Anna Lembke sorrindo ao ar livre
'Estamos reprogramando nossos c�rebros para precisarmos de cada vez mais recompensas para sentir qualquer prazer', diz Anna Lembke sobre a felicidade em tempos de redes sociais (foto: Divulga��o/Steve Fisch)

Com plena oferta e demanda por felicidade, viver vai se tornando cada vez mais desafiador em termos de equil�brio, especialmente quando olhamos nossas redes sociais ou as op��es de entretenimento e consumo. Um mundo euf�rico e promissor parece estar ao alcance de um clique.

"A tecnologia permitiu nos isolar de muitas experi�ncias fisicamente dolorosas e aumentar nosso acesso ao refor�o de drogas e comportamentos com o toque de um dedo. O resultado � que estamos a bombardear o caminho de recompensa do nosso c�rebro com dopamina", adverte a autora em entrevista � BBC News Brasil.

"Coisas boas em excesso acabam por ser algo ruim, e o resultado � que estamos reprogramando nossos c�rebros para precisarmos de cada vez mais recompensas para sentir qualquer prazer, enquanto que o menorinconveniente se tornou uma esp�cie de tortura. Estamos mudando fisiologicamente os nossos c�rebros para precisarmos de mais prazer e sermos capazes de tolerar menos dor."

Tudo isso acontece em uma cultura que determina evitar a dor a qualquer custo, lembra Lembke. Medicamentos, drogas e compuls�es aparecem como aliados nesta miss�o imposs�vel, enquanto n�o observamos uma diminui��o de casos de depress�o e ansiedade.

"A ideia de que a vida deve ser uma grande festa e que devemos ser felizes o tempo todo � uma ilus�o, mas que nossa cultura comprou. O resultado � que, quando n�o estamos felizes, pensamos que algo est� errado conosco, que estamos doentes, azarados ou alguma combina��o desse tipo. A verdade � que a vida � principalmente sobre estar descontente, e momentos de verdadeira felicidade s�o fugazes, muitas vezes espont�neos."

Al�m de suas possibilidades de aproxima��o, as redes sociais tamb�m se tornaram uma maneira de 'drogar' a conex�o humana, de modo que deslizar para a direita ou para a esquerda tem tudo a ver com dopamina e excita��o, exemplifica Lembke.

"A 'numerifica��o' da experi�ncia, na forma de rankings e curtidas, torna a experi�ncia mais parecida com uma droga, e menos como um relacionamento. De qualquer forma, quanto mais pudermos tornar as redes sociais mais sobre conex�es humanas aut�nticas e menos sobre ficar chapado, melhor", completa.

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