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Estado de Minas COMPORTAMENTO

Como aborto passou de pr�tica comum a estigmatizada e proibida ao longo da hist�ria

Interrup��o volunt�ria da gravidez sempre existiu, por meio de v�rias pr�ticas. Mas aborteiras s�o personagens que aparecem raramente nos estudos


27/06/2022 12:01 - atualizado 27/06/2022 12:05

Protesto pela manutenção do direito ao aborto nos EUA no início dos anos 1990
Protesto pela manuten��o do direito ao aborto nos EUA no in�cio dos anos 1990 (foto: Getty Images)

Engana-se quem pensa que o direito ao aborto � algo novo. Na realidade, a pr�tica era comum na Antiguidade — e foi uma mistura de avan�o cient�fico com dom�nio religioso crist�o em sociedades de patriarcado consolidado que fez com que, com o passar dos s�culos, a interrup��o volunt�ria da gravidez passasse a ser estigmatizada e, muitas vezes, proibida.


"Essa hist�ria longa da quest�o do aborto ï¿½ bastante complexa porque envolve quest�es societ�rias, culturais e religiosas, mas tamb�m o grau de conhecimento cient�fico em rela��o a como se d� o processamento de um novo ser humano no corpo", explica a soci�loga Maria Jos� Rosado, professora da Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP) e presidente da organiza��o Cat�licas pelo Direito de Decidir.

"A quest�o do aborto sempre existiu, por meio de v�rias pr�ticas. Mas as aborteiras s�o personagens que aparecem raramente nos estudos porque � muito dif�cil encontrar registros para fazer um recorte historiogr�fico", diz a historiadora Ma�ra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp).




Rosin ressalta que h� relatos de mulheres "que praticavam abortos tanto para prostitutas como para outras mulheres que engravidavam fora do casamento". "H� todo um componente religioso e moral colocado ali, mais do que tudo a legisla��o do aborto est� sempre colocada como forma a interferir no corpo da mulher", frisa ela.

Tanto na Gr�cia como na Roma da Antiguidade, o aborto era visto como algo comum. A oposi��o � pr�tica, quando havia, n�o se dava em defesa do embri�o ou do feto, mas nos casos em que o pai argumentava que n�o queria ser privado do direito de um filho que julgava j� ser seu. Vale ressaltar que eram sociedades em que a mulher era considerada propriedade de seu marido.

A possibilidade do aborto foi considerada inclusive por te�ricos da �poca. O grego Arist�teles (384 a.C - 322 a.C) escreveu que "quando os casais t�m filhos em excesso, fa�a-se o aborto antes que o sentido e a vida comecem". No seu entendimento, esse marco inicial da vida ocorreria de forma distinta no caso de meninos — a partir do quadrag�simo dia da concep��o — e de meninas — a partir do octog�simo dia.

Religi�o

Na B�blia, tamb�m h� indica��es de que o aborto era praticado nas sociedades antigas do Oriente M�dio. H� uma men��o no Livro do �xodo e, principalmente, uma passagem no Livro dos N�meros. Nesta, est� a instru��o do que fazer "quando a mulher de algu�m se desviar, e transgredir contra ele".

"De maneira que algum homem se tenha deitado com ela, e for oculto aos olhos de seu marido, e ela o tiver ocultado, havendo-se ela contaminado, e contra ela n�o houver testemunha, e no feito n�o for apanhada", enfatiza a passagem.

O texto orienta a apresentar essa mulher a um sacerdote e detalha um ritual com "�gua santa". Muitos interpretam essa passagem como o entendimento de uma pr�tica abortiva.


Estátua de Aristóteles
Fil�sofo grego Arist�teles (384 a.C - 322 a.C) escreveu que 'quando os casais t�m filhos em excesso, fa�a-se o aborto antes que o sentido e a vida comecem' (foto: Getty Images)

Curioso � que, no princ�pio do cristianismo, a nova religi�o se apresentava como um porto seguro para mulheres que n�o queriam abortar, mesmo que estivessem gerando filhos de relacionamentos considerados il�citos — em uma Roma onde a pr�tica era disseminada.

"A quest�o religiosa foi sendo constru�da ao longo do tempo. O mundo antigo era um mundo onde o aborto e o infantic�dio eram pr�ticas muito comuns. Isso aparece nos fil�sofos gregos e no mundo romano", pontua o historiador, fil�sofo e te�logo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "O cristianismo se apresenta como uma tentativa de acolher mulheres que n�o queriam abortar."

"Na medida em que o cristianismo se aproxima e, depois, se apropria do Estado, a gente percebe que a vis�o crist� que antes era marginal passa a fazer prevalecer a vis�o contr�ria ao aborto", conclui Moraes.

A camada te�rica dessa discuss�o sempre foi a ideia de in�cio da vida — ou, de forma religiosa, em que momento a alma seria colocada no novo ser. Para o mundo ocidental, na maior parte do tempo o consenso foi que isso ocorria em algum momento entre a semana 18 e a semana 20 da gravidez, justamente quando passa a ser poss�vel perceber movimenta��es do feto no ventre materno.

"Sobre a quest�o hist�rica, em que sociedade o aborto era aceito ou n�o, e como mudou, na verdade a hist�ria implica n�o s� a cultura de sociedades tradicionais e antigas mas tamb�m o conhecimento, o que se sabia em �pocas antigas a respeito do que seria uma gravidez", pontua a soci�loga Rosado.

Ela ressalta, por exemplo, que entre os ind�genas pr�-colombianos "n�o havia nenhuma restri��o ao abortamento", e que a pr�tica era "uma quest�o resolvida entre mulheres e, mais tarde, por parteiras que cuidavam, realizavam os abortos, muitos por meio de ervas, naturalmente, a partir de conhecimentos ancestrais".

"O que aconteceu no Ocidente foi que a influ�ncia judaico-crist� se tornou muito forte, ao mesmo tempo em que se desenvolveu o dom�nio dos homens na sociedade, o patriarcado. Para n�s, mulheres, a possibilidade de controlar aquilo que queremos ou n�o fazer com nossos corpos � fundamental", acrescenta a soci�loga.

Novo Mundo

Na Am�rica colonial, por exemplo, pr�ticas de abortamento foram incorporadas mesmo por fam�lias de colonizadores. Em geral, contudo, era um tabu, mantido em segredo — seja por raz�es religiosas, seja pela moralidade, pois o procedimento costumava ser utilizado para interromper gravidezes oriundas de adult�rios.

No s�culo 19, contudo, come�aram a surgir leis espec�ficas contra o aborto nos Estados Unidos. Em 1900, ali s� era aceita a pr�tica em casos de not�rio risco de vida para a m�e.

Essas legisla��es ecoavam as discuss�es que vinham da Inglaterra, onde desde 1803 o aborto podia ser punido at� mesmo com a pena de morte. L�, o aborto em caso de risco de vida para a gestante s� foi autorizado por lei a partir dos anos 1920.

E se na Antiguidade mulheres procuraram ref�gio no cristianismo para condenarem o aborto, na Am�rica do s�culo 19, o incipiente feminismo foi a salvaguarda argumentativa para quem se posicionava contra a pr�tica.

A precursora da luta feminista Susan Brownell Anthony (1820-1906) considerava o aborto como "assassinato de crian�as". A tamb�m ativista Alice Stokes Paul (1885-1977) classificou o aborto como "a explora��o final das mulheres".


Em protesto nos EUA, pessoas seguram placas com os dizeres 'Pare o aborto agora'
Em protesto nos EUA, pessoas seguram placas com os dizeres 'Pare o aborto agora' (foto: Getty Images)

O pano de fundo para essas vis�es � o mesmo que hoje condena o aborto, afinal: o prisma machismo da sociedade. Afinal, se o aborto era utilizado como uma tentativa de acobertar um adult�rio, como se a tal honra fosse maior do que o direito da mulher de ter aquele filho, as feministas precisavam lutar contra essa imposi��o. Hoje, se a criminaliza��o do aborto impede que as mulheres exer�am o controle sobre seus corpos e tenham direito � escolha, as feministas entendem a necessidade de lutar pela libera��o.

"Em v�rios casos, n�o s� no cristianismo, a principal causa para se criminalizar a pr�tica n�o � a vida em quest�o, mas, na verdade, o poder dos homens", analisa a soci�loga Rosado. "Porque aquilo que se desenvolvia no corpo feminino era considerado de alguma maneira propriedade dos homens. E, portanto, a mulher n�o poderia dispor desse ser que se desenvolvia sem o que o homem permitisse."

Onda conservadora

"O controle do corpo da mulher est� sempre colocado em pauta, est� sempre pressuposto. E o [direito ao] aborto � fundamental porque temos de ter o direito de decidir sobre nosso corpo", afirma a historiadora Rosin. "Uma mulher n�o � um hospedeiro, n�o � uma chocadeira."

"Em �ltima inst�ncia, [praticar ou n�o o aborto] essa � uma decis�o da mulher, n�o deveria, um tema t�o espinhoso e t�o delicado, um tema como este n�o deveria ser politizado nesse n�vel", diz Moraes.

O historiador demonstra preocupa��o porque "a onda conservadora que vemos nos Estados Unidos" tem "reflexos aqui, porque o Brasil � uma c�pia malfeita do que acontece l�, uma esp�cie de puxadinho".

"� um tema que inicialmente quem assumia uma posi��o muito clara era a Igreja Cat�lica, mas que os evang�licos acabaram copiando esse modelo tamb�m. Determinados grupos encontraram no assunto um tema catalisador, que aglutina, faz com que vire uma bandeira. S�o grupos mais conservadores, mais radicais, fundamentalistas", explica Moraes.

"� um aspecto de manifesta��o de uma onda conservadora muita forte e os grupos conservadores no Brasil copiam esses exemplos norte-americanos tentando cooptar pessoas para essa causa, demonizando quem � contr�rio", complementa ele. "E essas mesmas pessoas que assumem uma posi��o 'a favor da vida', s�o pessoas que defendem a pena de morte. H� contradi��es nesse sentido."


Protesto a favor do aborto em São Paulo, 2017
Especialistas se preocupam com os reflexos da onda conservadora dos Estados Unidos no Brasil (foto: Getty Images)

Rosado acrescenta que "essa discuss�o sobre uma vida" a partir da concep��o "� moderna, muito recente". "Ela se desenvolveu naquele setor mais conservador da sociedade, que passou a penalizar as mulheres, criminal e religiosamente, considerando o aborto um delito sujeito a pena ou um pecado sujeito a uma pena simb�lica", diz a soci�loga.

Para a antrop�loga Debora Diniz, professora na Universidade de Bras�lia (UnB), "nunca foi uma quest�o sobre um processo evolutivo da sociedade", mas sim um indicativo de "maior ou menor fragiliza��o democr�tica desde que come�amos a tratar de direitos das mulheres e direitos humanos".

"Desde o momento em que temos Estado com suas pr�prias leis, [permitir ou n�o o aborto] � um sinal de estabilidade democr�tica e de prote��o aos direitos fundamentais", defende a pesquisadora. "O que est� ocorrendo nos Estados Unidos parece um contraprocesso hist�rico de direitos fundamentais, porque houve uma fragiliza��o democr�tica no per�odo do governo [Donald] Trump."

'Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61950222'

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