Nicolle

Nicolle � filha �nica, tem 8 anos e atualmente cursa o 3� ano do ensino fundamental no Col�gio Federal Pedro II, no Rio de Janeiro

Arquivo pessoal
O conceito de superdota��o � pol�mico. Por um lado, neurocientistas, neuropsic�logos e afins afirmam que apenas crian�as com QI (quociente de intelig�ncia) acima da m�dia s�o superdotadas. Do outro, psicopedagogas e treinadores de esportes, por exemplo, dizem que a superdota��o � mais ampla e que crian�as com altas habilidades em diversas �reas tamb�m s�o superdotadas. A discuss�o vai longe.

Contudo, h� um consenso de que crian�as que realizam um teste de QI, m�trica que mensura a intelig�ncia, e alcan�am um percentil acima de 97, o equivalente a 130 pontos em testes utilizados no Brasil, s�o superdotadas.

O paulistano Theo Costa Ribeiro, de seis anos, � superdotado. Ele pronunciou suas primeiras palavras aos seis meses e com um ano e meio j� formava frases tranquilamente, �poca em que come�ou a frequentar uma escolinha.

"Ele via uma palavra e pedia para a gente explicar o que era cada letra, e depois continuava perguntando, mas n�o eram perguntas bobinhas", conta � BBC News Brasil, Ygor Ribeiro, de 33 anos, pai de Theo, ressaltando que a fam�lia n�o for�ou o menino a nada, mas tamb�m nunca ignorou suas curiosidades.

Na pandemia, enquanto as crian�as estavam aprendendo as letras, Theo, ent�o com tr�s anos, j� lia, escrevia e fazia c�lculos. Em julho do ano passado, ele voltou para a escola e em agosto os pais foram chamados para uma reuni�o. Nessa conversa, eles foram informados que o desempenho do menino era muito acima da m�dia e sugeriram que ele fizesse um teste de intelig�ncia.

"Em seguida n�s fomos atr�s de uma neuropsic�loga, que fez testes de intelig�ncia e tamb�m da parte emocional e motora. Depois, ela deu um laudo que nos surpreendeu um pouco dizendo que o n�vel dele vai al�m de superdota��o. E n�s perguntamos: t�, mais e o que a gente faz com esse menino?", recorda-se Ribeiro, aos risos.


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O laudo de Theo, tanto intelectual quando emocional, apontou um n�vel de intelig�ncia equivalente ao de uma pessoa entre 14 e 15 anos, sendo que ele tinha cinco.

Atualmente, Theo est� cursando o 2º ano em uma escola particular. "Ele pulou o primeiro ano e agora n�s estamos vendo com a escola para no ano que vem ele ir para o 4º ano, inv�s do 3º", diz Ribeiro.


No entanto, isso n�o significa que o menino n�o haja como uma crian�a normal. Ele sempre foi extrovertido, gosta de fazer amizade, brincar, adora as aulas de educa��o f�sica na escola e � apaixonado por dinossauros — motivo pelo qual criou um canal no Youtube (O seu paleont�logo mirim).

"Em alguns momentos ele � uma crian�a de seis anos que gosta de brincar com os dinossauros, assistir a desenhos animados e jogar videogame, mas, em outros, ele ativa esse "m�dulo" adolescente, e da� voc� consegue ter uma discuss�o filos�fica", diz o pai.

"N�s j� tivemos que explicar como acontece a reprodu��o humana, o que � o c�digo gen�tico, porque uma crian�a � loira e outra � morena. Ele � uma mistura de crian�a e adolescente", define o pai.


Theo Costa Ribeiro

"Em alguns momentos ele � uma crian�a de seis anos que gosta de brincar com os dinossauros, mas, em outros, voc� consegue ter uma discuss�o filos�fica", diz o pai de Theo

Arquivo pessoal

E as surpresas n�o pararam por a�: em fevereiro desse ano Theo foi o brasileiro mais novo a entrar para a Mensa internacional — sociedade que re�ne pessoas de alto QI. Hoje, al�m de frequentar a escola, ele faz aulas de futebol e de m�sica.

"O que est� faltando s�o est�mulos do governo e das nossas escolas para dar a essas crian�as o que elas precisam para que sejam "usadas" da melhor maneira poss�vel. N�s, por exemplo, tivemos que entrar com um recurso judicial para conseguir adiantar o Theo do 1º ano. Mas, na verdade, n�s ter�amos que ter um incentivo para que isso fosse feito, n�o ao contr�rio. Ent�o, � como se o governo educacional estivesse segurando essas crian�as intencionalmente para elas n�o avan�arem", lamenta Ribeiro.

O Minist�rio da Educa��o (MEC) foi contatado diversas vezes por e-mail e telefone para explicar o motivo de os pais terem que entrar na justi�a para que essas crian�as avancem na escola. No entanto, at� a publica��o desta reportagem, n�o tivemos resposta desse e nem de outros questionamentos.

"A escola que realmente desenvolve talento � aquela que oportuniza, e n�o a que espera o pai entrar no minist�rio p�blico para conseguir um direito que � assegurado por lei", defende Patr�cia Gon�alves, neuropsicopedagoga, doutora em cogni��o, e especialista em superdota��o.

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Nicolle � uma crian�a superdotada apaixonada por matem�tica, mas sonha em se tornar m�dica.

Nicolle de Paula Peixoto, de oito anos, pronunciou sua primeira palavra aos seis meses: papai. "Com um ano, eu comprava bonecas, mas a brincadeira dela era l�pis e papel. E as pessoas diziam que ela era diferente, mas eu achava que era sentimento de m�e", conta J�ssica Ver�nica de Paula Peixoto, 32 anos, m�e da Nicolle.

Mas os ind�cios n�o paravam. Com dois anos, ela cantava m�sicas e frequentava uma creche. "Nessa �poca, eu recebi uma ficha apontando que ela j� se destacava das demais crian�as", diz a m�e.


No ano passado, atrav�s de um sorteio que contou com a inscri��o de 2.500 crian�as, Nicolle, ent�o com sete anos, foi contemplada ao lado de outras 149 para ingressar numa escola federal no Rio de Janeiro. E foi l� que os pais receberam a indica��o de realizar um teste de QI na menina. "At� a� n�s n�o sab�amos que ela era superdotada", diz Peixoto.

Atualmente, Nicolle est� no 3º ano do Ensino Fundamental. "E agora n�s vamos tentar pular de s�rie porque temos um laudo respaldando isso", explica a m�e. Nicolle � muito curiosa e j� sonha em ser m�dica, embora sua paix�o seja matem�tica.

"Um dia, n�s est�vamos num culto na igreja e ela sentou ao lado de uma colega que levou um livro de matem�tica do 6º ano. A menina estava fazendo c�lculos de m�nimo m�ltiplo comum (mmc), e a Nicolle observando. Quando chegou em casa, ela reproduziu tudo e acertou", comenta a m�e, lembrando que em outra ocasi�o a menina pediu ao pai para ensin�-la a raiz quadrada. "Essa curiosidade e vontade de aprender est� dentro dela", argumenta Peixoto.


Theo com os pais e a irmã

Theo sempre foi extrovertido, gosta de fazer amizade, brincar e adora as aulas de educa��o f�sica na escola

Arquivo pessoal

Quando Nicolle tinha seis anos, ela tamb�m pediu ao pai para ensin�-la a tocar teclado, e ele apenas lhe explicou o b�sico. "Da� quando n�s olhamos ela sentou no banco e come�ou a tocar uma m�sica sozinha", lembra a m�e.

A menina tamb�m n�o apresenta nenhuma dificuldade de relacionamento, ao contr�rio. "Eu n�o sei o que ela tem, mas ela tem muita facilidade para fazer amizade e consegue se adaptar bem a qualquer ambiente", afirma a m�e.

Agora, ela faz parte da Mensa Brasil (sociedade de alto QI) onde integra a equipe de jovens brilhantes, e segue com os estudos normalmente. "Ela diz para mim que nada mudou na vida dela e que ela continua sendo a mesma Nicolle de sempre, porque eu tento ensin�-la que ela n�o � melhor do que ningu�m", conclui Peixoto.

Como identificar uma crian�a superdotada?

Para come�ar, apesar de ser um bom ind�cio, sinais de precocidade n�o define superdota��o — que s� pode ser considerada conclusiva ap�s uma bateria de testes, especialmente de QI, que visam entender a capacidade de processamento intelectual. A avalia��o � feita por psic�logos, neuropsic�logos e/ou psicopedagogos e especialistas no assunto.

Dito isto, algumas caracter�sticas apontadas pela Secretaria da Educa��o Especial do MEC (2006) podem indicar uma eventual superdota��o. Estas s�o:

  • Curiosidade agu�ada;
  • Vocabul�rio avan�ado para a idade;
  • Facilidade de aprendizagem e potencial intelectual muito elevado;
  • Racioc�nio r�pido;
  • Lideran�a e autoconfian�a;
  • �tima mem�ria;
  • Criatividade;
  • Habilidade para adaptar ou modificar ideias;
  • Observa��es perspicazes;
  • Persist�ncia ao buscar um objetivo.

Em contrapartida, crian�as que n�o s�o identificadas precocemente mostram-se desinteressadas pela escola e podem ter problemas de conduta.


"H� muitos superdotados que n�o tiram boas notas na escola por falta de interesse nos estudos, falta de est�mulo. �s vezes, o m�todo de ensino repetitivo e o contexto da sala de aula irrita muito o superdotado e ele n�o desenvolve suas habilidades", assinala Fabiano de Abreu, PhD em neuroci�ncias e bi�logo.

No Brasil, n�o existe um sistema de identifica��o para pessoas superdotadas. Elas s�o "descobertas" pelos pr�prios familiares, escola ou amigos. Frente a isso, pesquisadores estimam que o n�mero de crian�as identificadas seja muito menor do que a realidade. A Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS), por exemplo, estima que 5% da popula��o tem altas habilidades.

E para se ter ideia, de acordo com o Censo Escolar do Brasil, realizado em 2020, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais An�sio Teixeira (Inep), apenas 24.424 estudantes identificados com perfil de altas habilidades/superdota��o estavam matriculados na educa��o especial. "Ent�o esse n�mero n�o chega nem perto dos 5% que os especialistas dizem que temos", comenta Priscila Zaia, supervisora nacional de psicologia da Mensa Brasil.

Muitos superdotados fazem parte de sociedades de alto QI. As mais renomadas s�o:

  • International High IQ - QI acima de 97 de percentil;
  • Mensa - QI acima de 98 de percentil;
  • Intertel - QI acima de 99 de percentil;
  • Triple Nine Society - QI acima de 99.9 de percentil (aqui entra na categoria de g�nio).

Para entrar na Mensa, a crian�a precisa tirar acima de 131 pontos em um teste de QI, na Intertel acima de 135 e na Triple Nine Society, que � a mais restrita, mais de 155. "� importante ressaltar que as sociedades n�o aceitam os mesmos testes. As mais restritas n�o aceitam os testes das demais", pontua Abreu, o neurocientista.

Esportes, artes, desenvolvimento acad�mico: tudo � superdota��o?

De acordo com o Conselho Brasileiro para Superdota��o (ConBraSD), em geral, podemos classificar os superdotados em dois grandes grupos. "O primeiro � aquele dos superdotados acad�micos-- que tiram boas notas e s�o muito bons em aprender os conhecimentos cient�ficos. O segundo grande grupo s�o chamados de produtivos e/ou criativos", disse a entidade em nota enviada � BBC News Brasil.

Para a supervisora de psicologia da Mensa Brasil, a intelig�ncia e as habilidades muito elevadas s�o uma parte da superdota��o.


Criança sorridente com cadernos nas mãos

A intelig�ncia e as habilidades muito elevadas s�o uma parte da superdota��o, aponta especialista

Getty Images

"Por�m, para ser considerado superdotado, o indiv�duo tamb�m deve apresentar outras caracter�sticas associadas aos aspectos emocionais e sociais. � uma pessoa mais sens�vel e com mais empatia, tem um senso de justi�a muito agu�ado, � mais observadora, atenta aos detalhes. E a gente tem tamb�m habilidades que se apresentam al�m da �rea intelectual, que v�o aparecer na m�sica, nos esportes, nas artes, na dan�a", avalia Zaia.

Patr�cia Gon�alves, neuropsicopedagoga, doutora em cogni��o e especialista em superdota��o concorda e ressalta que a lei diz que o conceito de superdota��o se refere �queles que apresentam um potencial elevado nas mais variadas �reas do conhecimento, sejam eles isolados ou combinados.

Pol�mica

Mas o assunto � pol�mico.


"N�o h� um consenso na literatura cient�fica, mas, para mim, a corrente que faz mais sentido separa a superdota��o que, necessariamente, � intelectual", defende Patr�cia Rzezak, neuropsic�loga, doutora em Ci�ncia pela Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (USP).

Segundo a especialista, que � s�cia do Instituto Brasileiro de Superdota��o e Dupla Excepcionalidade, al�m da superdota��o, h� pessoas que t�m altas habilidades e, essas sim, podem ser espec�ficas.

"Posso ter uma crian�a com uma habilidade art�stica ou atl�tica extremamente desenvolvida, ou um potencial espec�fico voltado para �rea de exatas. Mas eu n�o chamo isso de superdota��o, mas sim de altas habilidades. Mas cada especialidade tem um conceito", pondera Rzezak.

O que faz com que uma crian�a seja superdotada?


Nicolle junto com os pais

Pais contam que Nicolle � muito curiosa e j� sonha em ser m�dica, embora sua paix�o seja matem�tica

Arquivo pessoal

Segundo os especialistas, crian�as superdotadas t�m um volume maior de massa cinzenta em algumas regi�es cerebrais, e isso faz com que as sinapses (conex�es) ajam mais r�pido do que o normal. Isso ocorre porque a mat�ria cinzenta influencia o c�rtex frontal, bem como certas estruturas que afetam o pensamento.

"O c�rebro de pessoas superdotadas � diferente, por isso realmente elas s�o mais desenvolvidas intelectualmente. Elas t�m os neur�nios maiores, mais robustos e com maior alcance, e as conex�es sin�pticas s�o mais intensas e duradouras fazendo com que o c�rebro (n�o a cabe�a!) seja maior. E tudo isso envolve o c�rtex pr�-frontal, que responde pela tomada de decis�es, l�gica, preven��o, mem�ria e aten��o", explica Abreu, o neurocientista.

Alguns estudos t�m mostrado que os sistemas de mem�ria cerebral de crian�as com habilidades intelectuais excepcionais s�o de tamanhos e conex�es diferentes de crian�as com desenvolvimento t�pico. Outros refor�am que as crian�as superdotadas t�m uma topologia de rede cerebral mais integrada e vers�til.


A supervisora de psicologia da Mensa Brasil, Priscila Zaia, lembra que a superdota��o n�o � um quadro m�dico. "Ela n�o se constitui como um transtorno do neurodesenvolvimento, mas sim como um funcionamento do indiv�duo. N�s entendemos a superdota��o como um constructo, um aspecto psicol�gico", diz.

Como deve ser a educa��o dessas crian�as?

No Brasil, as crian�as superdotadas t�m o direito assegurado por lei de entrarem em um programa de inclus�o educacional, a chamada educa��o especial, voltada a todos os indiv�duos que possuem qualquer tipo de dificuldade (auditiva, visual, cognitiva) ou facilidade de aprendizagem (altas habilidades/superdota��o), em todas as fases de ensino. "� uma educa��o diferenciada para aqueles que precisam de algo que n�o consta no curr�culo regular", explica Zaia.

A educa��o especial � mandat�ria para a rede p�blica e privada de ensino, mas ela s� pode ser concretizada se houver recursos. No caso das escolas p�blicas, esse atendimento tamb�m pode ser feito atrav�s de n�cleos e centros especializados ou parcerias com institui��es de ensino superior.

"N�o nos faltam leis para assegurar esse direito, mas tanto a escola p�blica quanto a particular, ainda tem pr�ticas muito embrion�rias no sentido de desenvolver os respectivos potenciais dos superdotados", conclui Gon�alves, neuropsicopedagoga e especialista em superdota��o.

- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62611143

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