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Estado de Minas COMPORTAMENTO

O que � ser feminista? Veja um estudo atualizado e as origens do movimento

Feminismo levou a conquistas fundamentais, como o direito de votar, mas a��es contra a domina��o ou opress�o masculina s�o alvos de resist�ncia ou desinforma��o


22/09/2022 14:20 - atualizado 22/09/2022 15:36

Ilustração de feministas
(foto: Daniel Arce Lopez/BBC)

A cada 10 brasileiras, 4 se consideram feministas e 6 rejeitam esse r�tulo. O feminismo no Brasil, ali�s, � mais bem avaliado por homens do que por mulheres. Por outro lado, a maioria das brasileiras defende pautas consideradas feministas: 70% acham insuficiente o espa�o ocupado por mulheres na pol�tica, 85% veem aumento da viol�ncia contra mulheres e 60% avaliam que as leis n�o s�o adequadas para proteg�-las.

 

 


Os dados acima, de uma pesquisa do instituto Datafolha em 2019, resumem uma das principais quest�es atuais em torno do feminismo: por que muitas mulheres defendem bandeiras feministas, mas ainda assim rejeitam o r�tulo?

Esse, obviamente, n�o � o �nico conflito do movimento organizado que surgiu no fim do s�culo 19 em torno da luta pelo direito das mulheres de votar (e de serem votadas) e que hoje abrange uma s�rie de lutas relacionadas � defesa dos direitos das mulheres contra a discrimina��o e a opress�o praticada na grande maioria das vezes por homens.

O movimento centen�rio levou a conquistas fundamentais, como o direito de votar e a redu��o da desigualdade salarial, mas as a��es e declara��es contra a domina��o ou a opress�o masculina foram alvo de tanta resist�ncia ou desinforma��o ao longo dos anos que a palavra feminista algumas vezes se tornou uma ofensa para muitas mulheres e homens.

E por qu�? H� diversos motivos. Em seu livro O Feminismo � para Todos, a escritora e ativista bell hooks (ela assina o seu nome com letras min�sculas) cita um dos principais: muita gente pensa, de forma errada, que o feminismo � "anti-homem". Mas ela explica que, na verdade, o centro do feminismo � ser anti-sexismo (ou anti-machismo), e n�o ser anti-homem.

Para entender todas essas quest�es, a BBC News Brasil explica abaixo as origens do feminismo, as ondas do movimento ao longo dos anos e por que n�o existe um, mas v�rios feminismos. Em seguida, � preciso entender as cr�ticas ao movimento feitas por mulheres negras e por outras que atualmente rejeitam o termo feminista. Depois, vale se debru�ar sobre como as mulheres se tornaram a maioria do eleitorado, mas s� ocupam 15% dos assentos no Congresso brasileiro.

As origens do feminismo

O primeiro registro conhecido do termo "feminismo" data de 1837, em escritos do fil�sofo franc�s Charles Fourier, que comparava a situa��o das mulheres � dos escravizados. � �poca, a palavra derivava o termo em latim femina ("mulher") e remetia a caracter�sticas e qualidades femininas. Mas d�cadas depois passou a ser associado aos movimentos por direitos das mulheres, e a acep��o original caiu em desuso.

Como ocorre com outros termos pol�ticos importantes (como comunista, liberal e conservador), n�o h� consenso sobre o que realmente significa feminismo, considerado um movimento, uma filosofia pol�tica ou uma atitude em rela��o ao mundo.

Mas ainda assim diversas especialistas tentam explicar o que, afinal, � ser feminista.


bell hooks
bell hooks explica que feminismo n�o � ser anti-homem, mas ser anti-machismo (foto: Getty Images)

Por exemplo: para a escritora e pesquisadora brit�nica Rosalind Delmar, em seu artigo "O que � Feminismo?", "uma feminista � no m�nimo algu�m que acredita que mulheres sofrem discrimina��o por causa de seu sexo, que elas t�m necessidades espec�ficas que continuam a ser negadas e desatendidas, e que a satisfa��o dessas necessidades demanda uma mudan�a radical na ordem pol�tica, social e econ�mica".

Carla Cristina Garcia, no livro Breve Hist�ria do Feminismo, por sua vez, define o feminismo "como a tomada de consci�ncia das mulheres como coletivo humano, da opress�o, domina��o e explora��o de que foram e s�o objeto por parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob suas diferentes fases hist�ricas, que as move em busca da liberdade de seu sexo e de todas as transforma��es da sociedade que sejam necess�rias para este fim".

Em seu livro O Feminismo � para Todos, hooks diz que feminismo � "um movimento para acabar com sexismo, explora��o sexista e opress�o". Neste livro, ela cita como exemplo sexista a viol�ncia patriarcal, "baseada na cren�a de que � aceit�vel que um indiv�duo mais poderoso controle outros por meio de v�rias formas de for�a coercitiva".

"Assim como a maioria dos cidad�os desta na��o acredita em sal�rios iguais para fun��es iguais, a maioria do pessoal acredita que homens n�o deveriam espancar mulheres nem crian�as. Ainda assim, quando dizem para essas pessoas que viol�ncia dom�stica � um resultado do sexismo, que ela n�o vai acabar enquanto n�o acabar o sexismo, elas n�o conseguem fazer essa dedu��o l�gica, porque isso exige desafiar e mudar maneiras fundamentais de pensar g�nero", escreve ela.

Sexismo � "o conjunto de todos e cada um dos m�todos empregados no seio do patriarcado para manter em situa��o de inferioridade, subordina��o e explora��o o sexo dominado: o feminino", explica a pesquisadora e professora Carla Cristina Garcia (PUC-SP), no livro Breve Hist�ria do Feminismo.

E o que seria o patriarcado de que hooks e outras feministas falam? De acordo com o Dicion�rio Ideol�gico Feminista, organizado pela ativista e psic�loga espanhola Victoria Sau, o patriarcado � uma "forma de organiza��o pol�tica, econ�mica, religiosa, social baseada na ideia de autoridade e lideran�a do homem, no qual se d� o predom�nio dos homens sobre as mulheres, do marido sobre as esposas, do pai sobre a m�e, dos velhos sobre os jovens, e da linhagem paterna sobre a materna".

Segundo esse dicion�rio, o patriarcado "surgiu da tomada de poder hist�rico por parte dos homens que se apropriaram da sexualidade e reprodu��o das mulheres e seus produtos: os filhos, criando ao mesmo tempo uma ordem simb�lica por meio dos mitos e da religi�o que o perpetuam como �nica estrutura poss�vel".

Na hist�ria em quadrinhos Uma Breve Hist�ria do Feminismo no Contexto Euro-Americano, a artista gr�fica Patu e a jornalista e cientista pol�tica Antje Schrupp dizem que feminismo n�o � um programa de conte�do fixo, mas uma atitude orientada pela liberdade feminina e "quem quer entender as ideias feministas precisa sempre enxerg�-las em seu contexto e n�o deve jamais exigir uma defini��o inequ�voca".

Por isso, muitos pesquisadores falam em "feminismos", como feminismo marxista, feminismo negro, feminismo radical, feminismo p�s-moderno (ou interssecional) e feminismo queer (express�o da l�ngua inglesa que significa estranho, exc�ntrico, e era usada pejorativamente para se referir a homossexuais, mas foi reivindicada por movimentos LGBTI, passando a designar comportamentos que n�o se encaixam em padr�es normativos de g�nero).

Ainda assim, mais uma vez, diversos especialistas tentam reunir ou explicar o que grande parte das feministas defendem em comum.


Ativista sufragista do início do movimento feminista
Movimento feminista surgiu em torno da luta pelo direito de votar e ser votada (foto: Getty Images)

De acordo com o Dicion�rio Routledge de Pol�tica, de forma simplificada, o movimento feminista busca direitos sociais e pol�ticos para as mulheres equivalentes aos dos homens. E, apesar das diverg�ncias entre os diversos grupos feministas, o principal pressuposto compartilhado por todos os bra�os do movimento � que fazemos parte de "uma tradi��o hist�rica de explora��o masculina das mulheres, originada inicialmente das diferen�as sexuais que levaram a uma divis�o do trabalho, como, por exemplo, a cria��o dos filhos".

Hoje, segundo esse dicion�rio, as pol�ticas defendidas por feministas variam bastante, incluindo igualdade de oportunidades, fim da discrimina��o sexual em contrata��es e sal�rios, creches gratuitas para retirar as desvantagens das mulheres no mercado de trabalho e a��es afirmativas contra a desigualdade de g�nero em vagas de emprego, candidaturas pol�ticas e cargos de chefia.

No Dicion�rio do Pensamento Pol�tico, o fil�sofo conservador brit�nico Roger Scruton identifica tr�s reivindica��es frequentes entre feministas modernas, que tamb�m carregam bastante diverg�ncias entre si.

Primeiro, a reivindica��o de que as diferen�as biol�gicas entre mulheres e homens n�o s�o suficientes para explicar as diferen�as atuais em seus comportamentos, papeis e status. Ou seja, essa disparidade � uma cria��o social baseada no poder que deve ser removida.

Segundo, a ideia de que as diferen�as naturais entre homens e mulheres (como atributos f�sicos) n�o podem servir de base para a desvaloriza��o de atributos femininos e valoriza��o dos masculinos.

Terceiro, a ideia de que "as mulheres n�o devem ser incentivadas a pensar que ser completas s� � poss�vel numa rela��o com os homens. Mais especificamente, as mulheres devem parar de pensar suas identidades a partir da apar�ncia aos olhos e mentes dos homens".

Ondas do feminismo: do s�culo 19 at� hoje

Costuma-se dizer que o feminismo teve pelo menos tr�s ondas, em geral ligadas a fases de grande mobiliza��o do movimento feminista branco europeu ou americano. Mas a pr�pria ideia de ondas � criticada por parte do movimento, por, entre outros pontos, ser reducionista ao sugerir uma suposta unidade nas reivindica��es ou sugerir implicitamente que h� per�odos de "calmaria" entre uma onda e outra.

No livro Ideologias Pol�ticas: Uma Introdu��o, o professor e cientista pol�tico brit�nico Rick Wilford (Queen's University) explica que onda � uma met�fora usada para indicar per�odos em que uma mar� de novas ideias feministas surgia para transformar a paisagem pol�tica.

A primeira onda se deu do fim do s�culo 19 at� as primeiras d�cadas do s�culo 20, tendo como principal bandeira o direito de votar e ser votada para as mulheres ao redor do mundo (essa vit�ria sufragista se daria no Brasil em 1932, por exemplo).

Apontava-se � �poca tamb�m como o sistema econ�mico vigente "se beneficiava do trabalho gratuito das mulheres nos n�cleos familiares e da diferen�a salarial entre os sexos para gerar e ampliar lucros", explica a fil�sofa e pesquisadora brasileira Ilze Zirbel (UFSC), em artigo sobre o tema.

Segundo ela, � comum afirmar que as protagonistas da primeira onda eram mulheres de classe m�dia, mas "a maioria das manifestantes presentes nas grandes manifesta��es que deram visibilidade a essa onda era da classe trabalhadora, lutando contra as p�ssimas condi��es de vida e trabalho a que estavam submetidas".

Vale lembrar que a primeira greve geral do Brasil foi iniciada em 1917 por mulheres de uma f�brica t�xtil paulistana. Al�m disso, o chamado Dia Internacional da Mulher (8 de mar�o) teve origem em reivindica��es de oper�rias ao redor do mundo no in�cio do s�culo 20.

A segunda onda ganha for�a nos anos 1960, com um movimento de liberta��o feminina e ligado � ideia de sororidade (uni�o de mulheres com o mesmo fim, segundo o Dicion�rio Priberam da L�ngua Portuguesa), tendo em vista a discrimina��o desigual que atinge mulheres de diferentes classes e etnias.

Em seu livro A M�stica Feminina, um dos principais da segunda onda, a escritora e ativista americana Betty Friedan exorta as mulheres, entre outros objetivos, a se qualificarem, voltarem ao mercado de trabalho e tomarem as r�deas de seus direitos reprodutivos (gra�as ao surgimento da p�lula anticoncepcional), se livrando assim das amarras da vida dom�stica.


Ilustração sobre desigualdade de gênero, com mulher cuidando de criança enquanto homem faz planos
Desigualdade de oportunidade entre os g�neros est� no centro de diversas batalhas das feministas (foto: BBC)

Por outro lado, durante a segunda onda, diversas pensadoras feministas (como Angela Davis e L�lia Gonzalez) ganharam proemin�ncia questionando justamente ideias baseadas no ponto de vista das mulheres brancas e mais ricas. Um exemplo: muitas mulheres negras no Brasil, al�m das atribui��es dom�sticas e maternas, j� estavam inseridas no mercado de trabalho h� d�cadas em postos como comerciante informal e empregada dom�stica (geralmente sob condi��es bastante prec�rias).

E o que significa "liberta��o"? E como essa palavra se diferencia de "emancipa��o"?

No Dicion�rio de Pol�tica organizado por Norberto Bobbio e outros, a cientista pol�tica e professora italiana Ginevra Conti Odorisio (Universidade Roma Tre) ressalta que "emancipa��o", simbolizada pela luta do direito ao voto, consistia na "exig�ncia da igualdade (jur�dica, pol�tica e econ�mica) com o homem, mas mantinha-se na esfera dos valores masculinos, implicitamente reconhecidos e aceitos". A liberta��o, no entanto, prescinde "da 'igualdade' para afirmar a 'diferen�a' da mulher, entendida n�o como desigualdade ou complementaridade, mas como assun��o hist�rica da pr�pria alteridade e busca de valores novos para uma completa transforma��o da sociedade".

A ideia de uma terceira onda surgiu por volta dos anos 1990, �poca em que a m�dia, segundo Ilze Zirbel, divulgava que as jovens seriam "p�s-feministas", porque entendia-se que o feminismo havia garantido diversas conquistas (como acesso a educa��o e emprego) e, portanto, havia perdido sua raz�o de existir. Algo que, obviamente, n�o � uma realidade para todas as mulheres.

E pelo que elas lutavam? "Para aquelas a quem o acesso � educa��o, ao saneamento, ao aborto seguro, ao div�rcio, � mobilidade b�sica estavam garantidos por lei, foi poss�vel focar mais intensamente em outras quest�es. Para as que n�o viviam esse tipo de realidade, foi necess�rio seguir lutado por direitos m�nimos de cidadania. Outras pautas seguiram sendo comuns � maioria: a luta contra a explora��o, a viol�ncia f�sica e psicol�gica, o feminic�dio, a discrimina��o no trabalho, as jornadas duplas ou triplas, os privil�gios masculinos."

Al�m disso, explica a pesquisadora, as descri��es sobre a terceira onda costumam ressaltar disputas e debates internos, sugerindo de forma equivocada que as fases anteriores tiveram unidade de demandas e de identidade (o que � ser mulher). "Feministas latinas, negras, revolucion�rias, prolet�rias, l�sbicas, pr�-sexo, antipornografia (dentre outras) fomentaram o debate feminista por todo o s�culo 20, evidenciando a grande diversidade do feminismo (de indiv�duos, grupos, pautas, estrat�gias)."


Mulheres com bandeiras da diversidade
Para Judith Butler, as pessoas t�m seu g�nero designado ao nascer de acordo com seu sexo biol�gico e que isso determina a forma como s�o tratadas na sociedade ao longo da vida (foto: Getty Images)

Em mapeamento das mais diversas categorias ou vertentes do feminismo, a antrop�loga e professora brasileira Fabiana Martinez (UFG) explica que geralmente o movimento tra�a a trajet�ria dos femininos a partir de "uma preocupa��o com igualdade e semelhan�a nos anos 1970, passando por diferen�a e diversidade nos anos 1980 e indo em dire��o � fragmenta��o dos anos 1990".

Hoje, conta a pesquisadora, essa fragmenta��o � potencializada pela internet, mais especificamente nas redes sociais, onde experi�ncias s�o compartilhadas a ponto de ganharem um car�ter coletivo.

Segundo ela, o ciberfeminismo impulsionou diversas campanhas no Brasil a partir de 2015, numa esp�cie de "Primavera Feminista" mobilizadas em redes sociais, hashtags, ruas e passeatas. Esses atos problematizam quest�es como "o machismo, a viol�ncia contra mulheres, o ass�dio sexual, o estupro, a pedofilia, a seguran�a das mulheres em vias p�blicas, o racismo e as leis sobre o aborto e o feminic�dio".

Em um de seus estudos sobre o tema, a pesquisadora analisa as principais vertentes feministas citadas nesses ambientes digitais: feminismo negro, feminismo interseccional (ou p�s-moderno), feminismo radical, feminismo liberal/libert�rio, transfeminismo, feminismo marxista/socialista/materialista e feminismo queer/LGBT.

Influenciado por feministas como a escritora francesa Simone de Beauvoir, o feminismo marxista, por exemplo, "entende que a causa da subordina��o feminina est� na organiza��o da economia e no mundo do trabalho", explica Martinez. Isso inclui, entre outros elementos, o papel feminino na esfera dom�stica como reprodutora da fam�lia e a desigualdade de classe entre mulheres (patroas e empregadas).


ícones de aplicativos de redes sociais
Redes sociais impulsionaram expans�o e diversifica��o do feminismo (foto: Getty Images)

O feminismo radical (conhecido tamb�m como radfem), por outro lado, � influenciado por ativistas como as escritoras canadense Shulamith Firestone e americana Andrea Dworkin, al�m da pr�pria Beauvoir. Uma das que mais crescem na internet, essa corrente defende que "a raiz da domina��o masculina estaria no patriarcado, nos pap�is sociais intr�nsecos ao sistema de g�nero" e faz cr�ticas a "estruturas que consideram refor�ar o g�nero e seus efeitos como a maternidade, a feminilidade, a pornografia e a prostitui��o", explica Martinez.

H� tamb�m o feminismo queer ou LGBT. Entre 1988 e 1993, a fil�sofa e escritora americana Judith Butler publicou trabalhos considerados hoje base de �reas de estudos conhecidas como teoria queer e de g�nero, segundo as quais h� uma diferen�a entre o sexo biol�gico e as identidades masculina e feminina que, al�m de serem formadas por aspectos f�sicos, seriam tamb�m constru��es sociais por receberem influ�ncias hist�ricas e sociais.

Para ela, na sociedade contempor�nea, as pessoas t�m seu g�nero designado ao nascer de acordo com seu sexo biol�gico e que isso determina a forma como s�o tratadas na sociedade ao longo da vida. "Claro que h� aspectos nossos que s�o s�lidos, mas tamb�m � verdade que, dependendo da forma como somos criados, da cultura em que vivemos, diferentes possibilidades de desejo emergem em n�s. Ser humano � viver na interse��o entre biologia e cultura", disse ela � BBC News Brasil em 2017.

"Muitos n�o querem flexibilizar as categorias de g�nero, mas, para outros, � uma quest�o de vida ou morte", afirmou Butler. "Assim, mulheres percebem que podem fazer mais, homens podem se expressar mais, o amor gay e l�sbico torna-se leg�timo, as pessoas queer se veem como parte do mundo. O g�nero abre para elas a possibilidade de respirar, viver, pertencer. � um espa�o de compaix�o para a luta que enfrentam."

As mulheres que rejeitam o r�tulo de feminista e as cr�ticas das mulheres negras

"Algu�m que lute por igualdade das minorias de um modo geral — e, consequentemente, da mulher — n�o tem como n�o ser feminista", disse a senadora Simone Tebet (MDB-MS), hoje candidata � Presid�ncia, em entrevista � BBC News Brasil em 2021. "(Mas) tenho dificuldade de falar que eu sou feminista."

E por qu� essa dificuldade? "� um termo que agora voc� n�o consegue mais nem definir, � uma coisa que n�s vamos ter que voltar a discutir: o que � o feminismo? O que � ser feminista no Brasil, que tamb�m n�o se iguala a ser feminista em outros pa�ses? (...) Eu t� dizendo que, de modo geral, como tudo no Brasil tamb�m, est� polarizado e h� certo radicalismo. �s vezes, n�o me enxergam como feminista, ou, �s vezes, eu tenho dificuldade, tamb�m, em dizer que sou, embora seja, porque h� uma pauta ou outra em que pode ser que eu n�o me enquadre nesse perfil", disse a candidata.

Para Tebet, o importante nessa discuss�es s�o atitudes, e n�o r�tulos. "Sou uma pessoa de centro e tenho horror a essa polariza��o. Uma pessoa de centro como eu tem dificuldade at� de se adjetivar: sou feminista ou n�o sou feminista? N�o importa. N�o adianta voc� ser rotulada e n�o seguir a cartilha, n�? Ent�o, o que importa s�o seus gestos e sua hist�ria."


empregada doméstica limpa porta
Uma das principais cr�ticas ao movimento feminista d�cadas atr�s era de que ele falava em acesso ao mercado de trabalho ignorando o fato de que muitas mulheres negras j� trabalhavam h� d�cadas em condi��es prec�rias (foto: Getty Images)

Um estudo com 27 mil pessoas nos EUA em 2016 mostrou que dois ter�os dos entrevistados acreditavam que a igualdade de g�nero � importante, um aumento em rela��o a 1977, quando pesquisas similares apontavam que um quarto dos entrevistados pensava assim.

Em uma pesquisa feita no Reino Unido em 2018, 8% das pessoas disseram concordar com pap�is de g�nero tradicionais — que o homem deve trabalhar e que as mulheres devem cuidar da casa. O �ndice era de 43% em 1984.

Se muitas pessoas acreditam que a igualdade de g�nero � importante, e ainda n�o foi atingida, porque n�o h� tantas pessoas — especialmente jovens mulheres — se identificando como feministas?

Pode ser que elas n�o se sintam representadas pelo termo, afirmam especialistas. Segundo pesquisas, mulheres de baixa renda tendem a se identificar menos com a palavra "feminismo". Isso n�o significa, por�m, que elas n�o defendem bandeiras feministas.

Cerca de 1 em cada 3 pessoas entre as classes mais altas se consideram feministas, de acordo com uma pesquisa feita na Gr�-Bretanha em 2018. Em compara��o, nas classes mais baixas 1 em cada cinco pessoas se identificam com esse termo.

Mas, por outro lado, pessoas de baixa renda s�o t�o propensas a apoiar direitos iguais para homens e mulheres quanto pessoas de classes mais altas. Em todas as faixas socioecon�micas, em cada 10 pessoas, 8 concordam que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos, de acordo com uma pesquisa brit�nica de 2015.

A quest�o racial tamb�m parece afetar a maneira como a palavra "feminista" � vista. Pesquisas com jovens dos EUA mostram que cerca de 12% das mulheres latinas se identificam como feministas, mas que o �ndice sobe para mulheres negras (21% se consideram feministas), asi�ticas (23%) e brancas (26%).

Quase 75% de todas as mulheres disseram que o movimento feminista fez "muito" ou "algo" para melhorar a vida das mulheres brancas. Mas o �ndice cai para 60% quando a pergunta � se o feminismo conquistou muito para mulheres de todas as etnias. Entre as mulheres negras, s� 46% acham que o feminismo melhorou a vida de mulheres de todas as etnias.

Em artigo sobre o tema, a fil�sofa e professora brasileira Halina Leal (Universidade Regional de Blumenau) explica que grande parte das feministas negras apontam que tanto o movimento feminista quanto o movimento negro "falharam e ainda falham ao negligenciar as peculiaridades das necessidades das mulheres negras".

Como no momento em que somente os homens negros obtiveram direito ao voto nos Estados Unidos ou quando feministas brancas trataram apenas as necessidades de mulheres brancas de classe m�dia e alta fosse comuns a mulheres de todas as ra�as, etnias e classes sociais.


Manifestante com cartaz escrito Sou Mãe e defendo o aborto legal e seguro
Direito � uma das principais quest�es que dividem as mulheres (foto: Getty Images)

"Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a prote��o paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? N�s, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majorit�rio, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como fr�geis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante s�culos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas", afirma a escritora e fil�sofa Sueli Carneiro no artigo "Enegrecer o Feminismo: A Situa��o da Mulher Negra na Am�rica Latina a partir de uma perspectiva de g�nero".

Essa diferen�a j� havia sido levantada um s�culo antes, mais especificamente no discurso "Eu n�o sou mulher?" proferido em 1851 por Sojourner Truth, abolicionista americana, ex-escravizada e ativista dos direitos das mulheres negras.

"Aquele homem ali diz que � preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, � preciso carreg�-las quando atravessam um lama�al, e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ningu�m me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E n�o sou eu uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu bra�o! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros, e homem nenhum conseguiu me superar! E n�o sou eu uma mulher? Consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem — quando tinha o que comer — e aguentei as chicotadas! N�o sou eu uma mulher?", afirmou Truth.

"Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, � ser objeto de tripla discrimina��o, uma vez que os estere�tipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo n�vel de opress�o", diz a fil�sofa, professora e ativista brasileira L�lia Gonzalez.

Ou seja, "as experi�ncias das mulheres negras n�o se inserem nem no ser mulher nem no ser negro", resume Leal.

Por isso, Carneiro explica que enegrecer o movimento feminista brasileira significa, entre diversos outros pontos, tratar de viol�ncia racial contra mulheres negras, formular pol�ticas p�blicas tamb�m para doen�as que atingem mais a popula��o negra e contestar "mecanismos de sele��o no mercado de trabalho como a 'boa apar�ncia', que mant�m as desigualdades e os privil�gios entre as mulheres brancas e negras".

Mulheres no centro das elei��es no Brasil

Em 2002, as mulheres passaram a ser maioria no eleitorado do Brasil, e hoje, duas d�cadas depois, representam 53% do total — s�o 78 milh�es de eleitoras, ante 69,5 milh�es de eleitores. Mas ainda est�o longe da representa��o equivalente no Congresso. Elas somam 15% das cadeiras, metade da m�dia latino-americana.

Em 2018, houve uma transforma��o nesse campo: foi a primeira elei��o presidencial desde a redemocratiza��o em que houve uma diferen�a entre o voto masculino e o feminino para um candidato competitivo � Presid�ncia: Jair Bolsonaro (ent�o-PSL, hoje PL).


manifestantes contra bolsonaro no protesto conhecido como Ele Não
Manifesta��o contra Bolsonaro batizada de Ele N�o (foto: AFP)

De 1989 a 2014, homens e mulheres sempre votaram de forma equivalente nos principais candidatos presidenciais, mesmo nas elei��es com candidatas com chance de vit�ria ou eleitas, como Marina Silva (Rede) e Dilma Rousseff (PT).

S� que na �ltima elei��o surgiu uma disparidade de g�nero. Segundo an�lise do cientista pol�tico e especialista em elei��es Jairo Nicolau, em seu livro O Brasil Dobrou � Direita, 64 homens a cada 100 votaram em Bolsonaro. J� apenas 53 em cada 100 mulheres fizeram o mesmo.

Para a pesquisadora Cecilia Machado, da FGV, em artigo sobre o tema, a principal hip�tese � que esquerda e direita no Brasil n�o tinham "posi��es marcadamente antag�nicas com rela��o ao papel das mulheres na sociedade", como ocorre nos EUA desde os anos 1980, quando o Partido Republicano passou a adotar uma postura antiaborto, por exemplo.

Mas em 2018, Bolsonaro "iniciou no pa�s uma discuss�o francamente aberta sobre como ele v� o papel da mulher na sociedade", afirma Machado, e se tornou assim o "grande respons�vel pela disparidade de g�nero nas inten��es de voto que surgiu no Brasil".

Nicolau aponta outras hip�teses para o apoio desproporcional entre homens e mulheres, entre eles o hist�rico pol�tico de Bolsonaro (ligado �s demandas de militares, uma categoria majoritariamente masculina) e as bandeiras defendidas por ele (como armamento da popula��o) que t�m mais acolhida entre o eleitorado masculino.

O presidente refutou os dados que apontam uma maior rejei��o feminina a sua candidatura. "Segundo pesquisa, as mulheres n�o votam em mim, a maioria vota na esquerda. Agora, n�o sei, pesquisa a gente n�o acredita, se h� rea��o por parte das mulheres, faz uma visitinha em Pacaraima, Boa Vista, nos abrigos, e v� como � que est�o as mulheres fugindo do para�so socialista defendido pelo PT", disse Bolsonaro, em refer�ncia a imigrantes oriundos da Venezuela.

A elei��o de 2018 teve outro fato in�dito ligado �s mulheres: foi a primeira disputa em que pessoas sa�ram em massa �s ruas n�o para apoiar um candidato presidencial preferido, mas para protestar contra outra. No caso, o movimento #EleN�o impulsionado por mulheres de esquerda em redes sociais que resultou em dezenas de manifesta��es ao redor do pa�s contr�rias a Bolsonaro.

Mas logo ap�s os protestos o candidato cresceu nas pesquisas eleitorais. Nicolau explica que os dados dispon�veis n�o permitem saber com certeza o impacto positivo ou negativo no resultado eleitoral desses protestos, mas o pesquisador estima que "os efeitos devem ter sido mais para refor�ar a identidade e os valores dos eleitores que j� haviam feito suas escolhas (contra ou a favor de Bolsonaro) do que para influenciar maci�amente a defini��o eleitoral fora do c�rculo de pessoas mais ativas na pol�tica".

Nicolau lembra como as pesquisas de inten��o de voto indicavam ao longo da campanha de 2018 um apoio reduzido a Bolsonaro no eleitorado feminino, mas essa situa��o perdeu for�a a poucos dias da vota��o. Ele aponta algumas hip�teses. Uma delas � que historicamente o volume de indecisos � bem maior no eleitorado feminino nos dias que antecedem o pleito. "Outro fator a ser considerado � o efeito da mobiliza��o pr�-Bolsonaro de algumas lideran�as evang�licas, segmento religioso majoritariamente composto por mulheres."

Um estudo liderado pela antrop�loga e professora brasileira Isabela Kalil (Fespsp) afirma que as an�lises sobre a subida eleitoral de Bolsonaro depois dos protestos do "Ele N�o" devem levar em conta tanto "tra�os fortes de antifeminismo no eleitorado feminino" quanto fatores como "mudan�as nas estrat�gias de campanha do candidato, a declara��o de inten��o de voto de l�deres religiosos, a��es de propaganda por parte de seus apoiadores e sua alta hospitalar (depois do atentado)".

Segundo esse estudo, Bolsonaro conseguiu atrair diferentes grupos de eleitoras, entre elas aquelas que enxergavam a educa��o como um grande campo de batalha contra "doutrina��es" da esquerda e aquelas que se veem como mulheres bem-sucedidas que atingiram seus objetivos por m�ritos pr�prios, sem precisar de ajuda de feministas e sem abrir m�o da feminilidade.


Manifestante pró-Bolsonaro no movimento Ele Sim
Movimento Ele N�o deu origem a rea��es de mulheres que votavam em Bolsonaro (foto: AFP)

Uma das principais cr�ticas feitas ao feminismo � de que parte de suas lutas atuais n�o atendem �s demandas das "mulheres comuns".

Muitas pensadoras feministas, no entanto, argumentam que o feminismo pretende justamente que todas as mulheres tenham a liberdade e a oportunidade de fazer suas escolhas sobre suas vidas, seja trabalhar dentro de casa ou fora dela, por exemplo.

O neologismo empoderamento, inclusive, � usado como s�mbolo dessa meta, de empoderar, de garantir a possibilidade de escolha.

Segundo a economista e professora de origem indiana Naila Kabeer (London School of Economics), ele � "o processo atrav�s do qual aqueles/as a quem era negada a capacidade de fazer escolhas estrat�gicas para sua vida adquirem tal capacidade", explica a antrop�loga e professora brasileira Cec�lia Sardenberg (UFBA) em artigo com um panorama do conceito.

Nesse sentido, poder � a capacidade de fazer escolhas (e de ter alternativas).

E isso passa, segundo a ativista e escritora indiana Srilatha Batliwala, tamb�m citada por Sardenberg, por construir sua pr�pria autonomia ao se ter controle sobre recursos materiais, intelectuais e ideol�gicos. "Recursos, que t�m estado, em grande parte, sob o controle masculino." Ainda que seja um percurso individual, Sardenberg ressalta que essas mudan�as "n�o acontecem sem a��es coletivas" e conscientiza��o.

*Com informa��es adicionais de Rafael Barifouse, da BBC News Brasil em S�o Paulo

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62551293

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