
A resposta mais honesta para a pergunta do t�tulo desta reportagem �: depende. Embora n�o seja uma "bala de prata" contra a dem�ncia, os jogos de celular podem, sim, ajudar se a pessoa gosta daquela atividade e sente-se desafiada.
Mas eles devem ser encarados como um complemento �s outras atitudes que fazem bem ao c�rebro durante o envelhecimento, como aprender novas habilidades, ter uma boa alimenta��o e fazer exerc�cio f�sico — e nunca podem ser fonte de isolamento ou substituir o contato com outras pessoas.
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A aposentada Leia Nascimento mostra com orgulho a cole��o de medalhas que mant�m exposta na parede da casa. Aos 65 anos, ela pratica remo, canoagem e stand up paddle em Santos, no litoral paulista.
Certo dia, ela chegou � conclus�o de que a atividade f�sica n�o era mais suficiente. "Sentia que eu precisava exercitar o c�rebro tamb�m", conta.
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Foi a� que ela resolveu se matricular num curso voltado a pessoas com mais de 60 anos que ensina n�o apenas a jogar videogame, como tamb�m a programar e a criar o seu pr�prio jogo eletr�nico.
"Estou amando. Al�m de desenvolver o racioc�nio, a aten��o, a mem�ria e a velocidade, essa � uma oportunidade de socializar. Sempre tem um cafezinho depois da aula", confessa.
Nascimento logo come�ou a incentivar outras amigas a participar da iniciativa. Uma das que toparam o desafio foi Maria Helena Abad, que est� prestes a completar 81 anos.
"No in�cio, quando me falaram que o curso era pra quem tinha 60 anos, pensei que n�o seria capaz, j� que tenho 20 anos a mais", lembra.
"Mas resolvi fazer mesmo assim e est� sendo muito bom. Tenho que prestar aten��o para aprender e aplicar o que o professor nos ensina", complementa.
De fato, os �ltimos anos foram marcados por uma explos�o no mercado dos videogames e dos aplicativos voltados ao treinamento cerebral, especialmente para idosos.
De forma geral, eles prometem manter ou aprimorar atributos como mem�ria, racioc�nio e aten��o — algumas dessas plataformas falam at� em preven��o da dem�ncia.
Experi�ncia de vida real
Nascimento e Abad viram nas aulas de programa��o de jogos uma oportunidade para aprender novas habilidades e criar (ou refor�ar) la�os de amizade.
Ap�s cinco meses de curso, elas n�o se arrependem da decis�o.
"Eu n�o apenas aprendi coisas diferentes, como tamb�m aumentei a satisfa��o com a vida e a autoestima, porque vi do que sou capaz", declara Nascimento.
"Al�m das aulas, agora n�s marcamos encontros no shopping, em que ficamos mexendo no celular e ensinando umas �s outras. Isso � excelente n�o s� pra gente aprender mais, mas tamb�m para estar com os amigos e dar boas risadas."

O programador Fabio Ota � o professor da turma. Ele fundou a empresa ISGame (sigla em ingl�s para "Escola Internacional de Jogos"), pela qual criou um aplicativo de treinamento cognitivo dispon�vel para iOS e Android e tamb�m oferece os cursos para o p�blico com mais de 60 anos nas cidades de Santos, S�o Paulo e Jundia�.
A iniciativa contou com o apoio da Funda��o de Amparo � Pesquisa do Estado de S�o Paulo (Fapesp) e passou por estudos na Universidade Federal de S�o Paulo (Unifesp). Al�m dos especialistas em programa��o, a equipe conta com neurologistas, geront�logos, geriatras, psic�logos e fisioterapeutas.
"Nossas avalia��es mostraram que aprender a jogar videogames est� relacionado a ganhos de mem�ria, concentra��o, planejamento e qualidade de vida", lista.
Al�m do aplicativo, que pretende atingir um p�blico maior Brasil afora, ele acredita que as aulas presenciais permitem criar conex�es e aprofundar o aprendizado.
"N�o queremos formar desenvolvedores de jogos, mas usar essas ferramentas como um meio para a melhora cognitiva", diz.
Interesse em alta
Dentro desse contexto, n�o d� para ignorar o processo de envelhecimento da popula��o no pa�s: o IBGE calcula que 14% das mulheres e 11% dos homens brasileiros t�m mais de 60 anos.
Em pouco mais de tr�s d�cadas, o n�mero de idosos duplicou — e o grupo et�rio que mais cresce � o de pessoas acima dos 80 anos.
A m�dica Sonia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Cl�nicas de S�o Paulo, j� percebe um aumento na demanda por esses jogos entre os pacientes.
"O acesso � internet e aos smartphones se popularizou muito nos �ltimos anos, assim como a disponibilidade desses aplicativos", observa.
Dados compilados pela Fanatee, uma empresa que atua nesse setor, revelam que o mercado de jogos de celular foi respons�vel por 52% de todo o valor movimentado pela ind�stria de videogames no ano passado.
No universo das telinhas, os jogos de palavras, charadas e quebra-cabe�as — que se prop�em a exercitar as habilidades cognitivas de forma direta ou indireta — representaram 25% dos downloads de aplicativos que se encaixam na categoria.
A pr�pria Fanatee � um exemplo de como esse mercado se expandiu nos �ltimos anos: fundado no Brasil em 2013, o est�dio de jogos especializou-se no segmento de Braintainment, termo em ingl�s que significa "entretenimento para o c�rebro".
A companhia tem hoje mais de 140 funcion�rios, atua em 200 pa�ses, disponiliza seus jogos em 11 idiomas e j� ultrapassou a marca de 250 milh�es de downloads.

Para alguns, eles representam uma forma divertida de passar o tempo e preencher os hor�rios livres durante o dia.
A aposentada Vilma L�cia Fernandes, de 67 anos, por exemplo, escolhe um jogo para cada momento do dia.
"Eu fa�o criptogramas quando vou ao banheiro, aquele de encaixar bloquinhos, se preciso esperar uma consulta m�dica ou uma comida no forno, e sempre reservo um momento do dia para fazer sudoku, que exige mais tempo e aten��o", descreve.
A moradora da cidade de Conchas, no interior de S�o Paulo, confessa que, para ela, o objetivo principal nunca foi o de manter o c�rebro afiado.
"Eu jogo porque gosto. Comecei h� 30 anos, resolvendo as charadas em revistas ou jornais, e migrei para os aplicativos de celular", conta.
Para outros, por�m, os jogos representam uma esperan�a de evitar esquecimentos e aprimorar o racioc�nio. � o caso da aposentada Maria Helena Freire, de 79 anos, que vive em Manaus.
"Recentemente, percebi que a mem�ria come�ou a falhar um pouco. Da� resolvi me dedicar aos jogos como uma maneira de ficar mais esperta, de for�ar minha cabe�a a trabalhar", diz.
A ex-professora universit�ria na �rea de pedagogia usa o tablet e o computador para acessar aplicativos de sudoku, palavra-cruzada e alguns que desafiam a formar palavras a partir de um conjunto de letras.
"Eu j� n�o saio tanto e n�o tenho muitas tarefas em casa. No meu tempo livre, fa�o bonecas de pano para doa��o e acesso os aplicativos", resume.
Freire conta que os jogos tamb�m s�o um pretexto para reunir os irm�os, todos com mais de 60 anos.
"Estamos sempre juntos e �s vezes jogamos online, em grupo, cada um de seu computador."
Ser� que funciona?
Por ser um assunto relativamente novo dentro da medicina, os jogos vendidos como "academia para o c�rebro" ainda n�o possuem um n�vel de evid�ncia suficientemente alto para serem oficialmente prescritos como m�todo preventivo ou tratamento para a dem�ncia, avaliam os pesquisadores.
"Os estudos ainda s�o fr�geis e n�o nos permitem afirmar que esses videogames funcionam de forma isolada", analisa o m�dico Marco Tulio Cintra, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.
"Me parece pouco prov�vel que, sem a ado��o de outras medidas, como exerc�cio f�sico, alimenta��o saud�vel e conviv�ncia em sociedade, esses aplicativos funcionem", complementa.

Brucki concorda. "A principal d�vida que temos � saber se aquela habilidade treinada durante um jogo reflete em mudan�as fora das telas, no dia a dia da pessoa", aponta.
Ou seja: ser� que o fato de trabalhar a mem�ria por meio das palavras cruzadas vai fazer com que um indiv�duo se esque�a menos dos objetos e dos compromissos da vida real?
Um dos principais estudos a avaliar todos esses aspectos ficou conhecido pelo acr�nimo em ingl�s Active (ativo, em portugu�s) e foi liderado pelos Institutos de Pesquisa de New England e pela Escola de Medicina da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.
O trabalho acompanhou mais de 2,8 mil pessoas acima dos 65 anos, que realizaram treinos cognitivos para trabalhar a mem�ria, o racioc�nio e a velocidade do pensamento.
Ao comparar os grupos que fizeram a interven��o com aqueles que foram apenas acompanhados, sem participar dos treinos, os autores conclu�ram que a "gin�stica cerebral" previne o decl�nio cognitivo, embora a tradu��o desses ganhos para a vida cotidiana tenha sido considerada "detect�vel, por�m modesta".
Nem muito, nem pouco
Como as pesquisas nessa �rea ainda est�o em andamento e n�o h� consenso sobre os mecanismos de a��o ou a dose adequada de treinamento cognitivo para cada pessoa, os m�dicos ouvidos pela BBC News Brasil apostam no uso razo�vel da tecnologia e dos jogos.
"Sempre que voc� vai fazer uma mudan�a no estilo de vida ou adotar um novo h�bito, o equil�brio deve ser parte fundamental desse processo", sugere Brucki.
"N�o adianta adotar um jogo de celular e se isolar do resto do mundo, at� porque sabemos que a falta de contato social � uma das piores coisas para o c�rebro e aumenta o risco de decl�nio cognitivo", complementa.
"Uma interven��o com jogos precisa levar em conta o contexto e o passado daquela pessoa. Ser� que ela realmente gosta de fazer aquilo?", questiona Cintra.
O prazer � fundamental na hora de fazer a tal "academia para o c�rebro": se o sujeito n�o curte praticar aquilo e nem fica entretido durante as sess�es, a tend�ncia � que ele abandone a atividade aos poucos.
Ainda nessa seara, outro ponto important�ssimo tem a ver com o desafio: os jogos precisam ser divertidos e interessantes, al�m de sempre exigirem um pouco mais do participante. De nada adianta ficar repetindo sempre uma tarefa igual, com um grau de dificuldade semelhante.
Esses aspectos levantados pelos especialistas v�o de encontro a um manifesto escrito em 2014 por acad�micos da Universidade Stanford, dos Estados Unidos, e do Instituto Max Planck, da Alemanha.
No documento, eles pedem cuidado com propagandas enganosas, principalmente aquelas em que os jogos s�o vistos como a preven��o definitiva da dem�ncia.
"A promessa de uma 'bala de prata' [contra o decl�nio cerebral] contrap�e a mensagem de que o vigor cognitivo � influenciado pelo que vivemos e reflete os efeitos de longo prazo de um estilo de vida saud�vel e ativo", escrevem.

Em outras palavras, o envelhecimento saud�vel depende de h�bitos adotados durante toda a vida, da inf�ncia � velhice. Ter uma alimenta��o equilibrada e variada, fazer atividade f�sica regularmente, nutrir la�os com familiares e amigos e aprender continuamente novas habilidades cria e preserva o que os cientistas chamam de "reserva cognitiva".
Essa tal reserva funciona como uma poupan�a: quanto mais estimulamos o c�rebro, mais fortes e diversas ficam as conex�es entre os neur�nios. Da�, com o envelhecimento, parte dessas habilidades cognitivas at� se perdem, mas ainda h� muitas outras capazes de manter a mem�ria e o racioc�nio em bom estado.
Isso, claro, n�o significa que os jogos n�o ajudem algumas pessoas. Tudo vai depender do contexto e da forma que eles se encaixam na rotina.
"Uma experi�ncia que exige um esfor�o mental, como aprender um idioma, adquirir uma habilidade motora, explorar um novo ambiente e, sim, jogar videogames, vai resultar em mudan�as nos sistemas neurais", apontam os autores do documento de 2014.
"Por�m, � inapropriado concluir por ora que esses treinos modifiquem aspectos al�m daquela atividade e tenham relev�ncia no mundo real, ou que promovam genericamente a 'sa�de do c�rebro'".
Os acad�micos tamb�m refor�am a necessidade de avaliar o uso terap�utico dos jogos caso a caso.
"Se passar uma hora jogando significa ocupar o tempo que seria gasto com caminhadas, aprender outros idiomas, fazer novas receitas culin�rias ou brincar com os netos, pode ser que n�o valha a pena", exemplificam.
"Agora, se o treino cognitivo substituir atividades isoladas e sedent�rias, como assistir � televis�o, a escolha vai fazer mais sentido", concluem.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63250948
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