
S�O PAULO, SP (FOLHAPRESS) - O Brasil corre risco de retorno da poliomielite, doen�a causada pelo v�rus da p�lio e que havia sido erradicada na d�cada de 1990, quando o pa�s se tornou um local livre do pat�geno. Por�m, a queda da cobertura vacinal e a diminui��o da sensa��o de perigo da doen�a, aliadas a uma s�rie de dificuldades estruturais do PNI (Programa Nacional de Imuniza��o), puseram em xeque o certificado de erradica��o da p�lio. E, nos dois �ltimos anos, a pandemia da Covid agravou ainda mais esse cen�rio.
Em setembro, a Opas (Organiza��o Pan-americana para a Sa�de), bra�o nas Am�ricas da OMS (Organiza��o Mundial da Sa�de), declarou o Brasil como pa�s de muito alto risco para p�lio.
De acordo com a pediatra e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imuniza��es (Sbim), Isabella Ballalai, o alerta de muito alto risco do pa�s � devido a uma cobertura vacinal abaixo de 95% em crian�as menores de cinco anos com a possibilidade de reintrodu��o do v�rus a qualquer momento, como aconteceu recentemente em Nova York, o primeiro caso nas Am�ricas desde 1994.
"Esse risco � definido por v�rios crit�rios, e o Brasil, al�m de n�o atingir mais a cobertura vacinal preconizada, tamb�m n�o consegue cumprir com os demais crit�rios", diz a m�dica.
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Atualmente, no pa�s, a cobertura vacinal da poliomielite em crian�as de at� cinco anos est� em 61%, segundo dados do SI-PNI obtidos pela plataforma DataSUS. Nos anos anteriores, essa taxa j� vinha caindo, de cerca de 80%, em 2016, para 70%, em 2020.
Menor cobertura se concentra nas regi�es Norte e Nordeste
Os dados ainda incompletos para este ano mostram que a menor taxa de cobertura vacinal do pa�s se concentra nas regi�es Norte (38,8%) e Nordeste (41%), enquanto a cobertura mais alta � na Centro-Oeste (46,6%).
O esquema vacinal das crian�as com menos de cinco anos consiste em um esquema prim�rio, com vacina de v�rus inativado (chamada de VIP) de tr�s doses, aos dois, quatro e seis meses. J� o refor�o � feito aos 15 meses e aos quatro anos de idade, com a vacina oral de v�rus atenuado, a famosa vacina "da gotinha".
A reportagem ouviu seis especialistas para entender a situa��o atual do Brasil e, segundo eles, em primeiro lugar � preciso entender que a diminui��o da cobertura vacinal � um fen�meno que tem m�ltiplos fatores e n�o � exclusivo do pa�s.
"A queda nas coberturas vacinais � um fen�meno global, n�o � s� aqui, e que acontece desde 2016 e 2017. Em 2018, ap�s uma grande mobiliza��o nacional com os gestores de sa�de conseguimos recuperar [a cobertura vacinal], mas essa queda se acentuou em 2019 e, com a pandemia, esse trabalho ficou prejudicado", explica a epidemiologista e ex-coordenadora do PNI (de 2011 a 2019), Carla Domingues.
Segundo Domingues, alguns desses fatores s�o a pr�pria percep��o de falta de risco da doen�a, uma vez que ela foi erradicada, o desconhecimento da import�ncia da vacina��o e, mais recentemente, a dissemina��o de desinforma��es sobre imuniza��o.
"Se a popula��o n�o v� aquela doen�a como algo grave, embora ela ache importante vacinar, ela n�o vai priorizar a vacina��o, e isso � um dos fatores que contribui para a queda", afirma.
Al�m disso, a dificuldade no acesso � vacina, dado o tamanho do territ�rio brasileiro e as diferen�as regionais, � outro fator. "Uma cidade do tamanho de S�o Paulo tem as suas estrat�gias para ampliar a vacina��o, como abrir os postos aos finais de semana, durante a noite. Mas essas estrat�gias n�o s�o as mesmas do Amazonas, onde � preciso pensar em uma estrat�gia de levar a vacina ativamente para a popula��o", diz.
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Essas atividades, por�m, ficaram prejudicadas nos �ltimos anos com a diminui��o dos recursos voltados para comunica��o, treinamento e prioriza��o da campanha de vacina��o nacional, segundo o infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz.
"As coberturas menores no Norte e Nordeste do pa�s trazem a reflex�o no que diz respeito ao acesso e o que est� sendo feito ativamente. Quanto menor a presen�a de pol�ticas de sa�de da fam�lia no munic�pio, mais dif�cil ser� aumentar a cobertura", explica.
Para o infectologista, seria importante, no cen�rio atual, estrat�gias unificadas de prioriza��o da vacina��o. "Se aquele pai ou aquela m�e n�o consegue levar o filho para vacinar no posto em hor�rio de trabalho, buscar fazer campanhas nas escolas, fazer uma busca ativa, s�o estrat�gias que podem funcionar e melhorar a cobertura."
A mesma vis�o � partilhada pelo pediatra e professor associado da Faculdade de Medicina da USP Gabriel Oselka. "Ningu�m mais conhece um caso de poliomielite, n�o existe essa percep��o de risco. Antes, a popula��o adulta inteira era 'imunizada' pela chamada imunidade de rebanho por causa das altas coberturas vacinais e hoje, com a falta de percep��o do risco, isso j� deixou de ser uma realidade."
Fake news aparece como obst�culo
O m�dico, que coordenou a��es de imuniza��o no estado de S�o Paulo, lembra ainda que essa vis�o, aliada �s fake news, criou um terreno f�rtil para a atua��o dos grupos antivacina nos �ltimos anos.
A queda nas coberturas, aliada a outros dois fatores para os quais h� pouca informa��o no pa�s, como a vigil�ncia ambiental (busca por amostras do v�rus em redes de esgoto) e a notifica��o dos chamados efeitos adversos relacionados � vacina, pode ainda mascarar a real dimens�o da circula��o da p�lio no pa�s, explica o diretor de imuniza��es da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), Renato Kfouri. "A introdu��o da vacina oral como refor�o aos 15 meses [1 ano e meio] e 4 anos faz com que o v�rus seja naturalmente eliminado nas fezes, mas fazemos pouco a vigil�ncia do v�rus nas redes de esgoto."
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Para a epidemiologista e professora da Universidade Federal do Esp�rito Santo (Ufes) Ethel Maciel, � necess�ria a substitui��o completa da vacina atenuada pela de v�rus inativado. "Em um pa�s como o Brasil com muitas fam�lias sem saneamento b�sico e um cen�rio de baixa cobertura vacinal, � sem d�vida preocupante jogar v�rus vacinal no esgoto, podendo causar uma reintrodu��o do v�rus."
Um dos casos de notifica��o de efeito adverso grave possivelmente relacionado � vacina ocorreu no �ltimo dia 6, no Par�, quando a Secretaria de Estado de Sa�de notificou a presen�a de poliov�rus nas fezes de uma crian�a com paralisia fl�cida aguda, que pode ser um efeito relacionado � vacina. O Minist�rio da Sa�de ainda n�o concluiu a investiga��o.
Na avalia��o de Maciel, a recupera��o da cobertura vacinal deve passar obrigatoriamente por uma pol�tica p�blica de prioriza��o da imuniza��o. "Sem d�vida o questionamento por parte de autoridades da sa�de da seguran�a e da efic�cia das vacinas contribu�ram para essa diminui��o nas coberturas. A operacionaliza��o das campanhas, que � por parte dos munic�pios, ainda tem funcionado, mas se n�o h� uma inten��o nas tr�s esferas para estimular a vacina��o, vai ser dif�cil recuperar."
Saiba mais sobre a poliomielite
O que � a poliomielite?
A poliomielite � uma doen�a infecciosa causada pelo v�rus da p�lio e se manifesta com mais frequ�ncia em crian�as de at� cinco anos de idade. Na maioria dos casos, a poliomielite � assintom�tica ou apresenta sintomas como febre, diarreia, v�mito e dores no corpo, mas em cerca de 5% dos casos ela pode causar a paralisia infantil, com sequelas na vida adulta
Quais tipos de v�rus da p�lio?
Existem tr�s tipos do v�rus da p�lio (sorotipo 1, 2 e 3). Atualmente, os casos de v�rus selvagem em circula��o s�o do tipo 1. As vacinas de v�rus atenuado orais (VOP) s�o bivalentes e cont�m apenas as formas 1 e 3. J� as vacinas inativadas possuem a prote��o tamb�m contra a forma 2.
Onde esses v�rus ainda s�o encontrados?
Em praticamente todo o mundo, o chamado v�rus selvagem da p�lio foi erradicado, sendo end�mico atualmente em apenas dois pa�ses, o Paquist�o e o Afeganist�o. Em fevereiro de 2022, o Malawi, pa�s da �frica Oriental, registrou pela primeira vez desde 2009 um caso de v�rus selvagem no continente africano. O v�rus era similar ao encontrado no Paquist�o e foi classificado como um caso importado
H� cura? Como se proteger?
A poliomielite n�o tem cura, mas ela pode ser prevenida com a vacina��o. Em 2010, a OMS preconizou que os pa�ses substitu�ssem a imuniza��o com a vacina da poliomielite oral (VOP), da fabricante Sabin, pela vacina de v�rus inativado (VIP), da fabricante Salk, uma vez que os casos de p�lio vacinal continuam a aparecer todo ano no mundo devido � excre��o nas fezes do v�rus ap�s a imuniza��o com a vacina atenuada. A mudan�a, por�m, � lenta e em muitos pa�ses pode causar os chamados surtos de p�lio vacinal, como ocorreu recentemente em Nova York
Quando houve o �ltimo caso?
Foram registrados surtos de p�lio vacinal em 2022 em Nova York (EUA) e em Israel. Al�m disso, amostras recolhidas do esgoto encontraram o v�rus da p�lio em Londres (Inglaterra). No Brasil, o �ltimo caso registrado de poliomielite foi em 1989, com alguns poucos casos at� 1994 de v�rus vacinal encontrado em amostras de crian�as com suspeita de p�lio vacinal.